quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Livro Reis de Congo de Oswald Barroso - 1996




TEATRO POPULAR TRADICIONAL
REIS DE CONGO
OSWALD BARROSO
Este livro é para,
Rejane Reinaldo, Pedro Ângelo e João Victor,
brincantes do meu Reisado.
Meus agradecimentos,
aos mestres e brincantes dos Reisados e Congos cearenses,
aos atores e músicos da Cia. de Brincantes Boca Rica,
a Elói Teles, Fernando Piancó, Tica Fernandes,
Rosemberg Cariry e Cristiana Parente,
pela colaboração.
REISADO
“Que anjos são esses
que andam guerreando?”
Tropel de passos
que abala a terra.
Sobre o rosto ralo
brilho de cetins e pedrarias.
Sobre o corpo gasto
cintilações de anéis e coroas.
Sobre a pele pobre
turbilhões de cores e miçangas
levitações de sedas
tatuagens e tinturas.
Quem são esses homens
de tez encardida
e passos graciosos?
Quem são esses magos
de magras figuras
e riso na boca?
Quem são esses reis
sem níquel no bolso
mas fartos de festa?
Deviam se maldizer e dançam.
As cabeças erguem hirtas
feito hóstias consagradas.
Brincam com o nunca visto
e põem pra ninar o espanto.
A dor arrastam maneira
como um arado sonâmbulo
riscando o ar de figuras.
Portam arneses e aldravas
qual vaqueiros encourados
em seus pavões de metal.
Nos seus espelhos de água
a lua bóia fatídica
e o sol retira faíscas
com seu rubro esmeril.
Serão eles cientistas
buscando o cálculo exato?
Serão eles reis sem terra
deserdados retirantes?
Ou serão os reis cruzados
os doze pares de França
os reis escravos do Congo
a rainha negra de Angola?
Em que portugais e espanhas
forjaram suas espadas?
De que áfricas longínquas
de que mil e uma noites
vêm suas vozes estridentes?
Serão hyppies, andarilhos,
serão profetas em bando
ou poetas saltimbancos?
Serão santos nos andores
procissão de peregrinos?
Ou serão os alquimistas
da pedra filosofal?
De onde vem o cortejo
que brinca na travessia
e abre nesse deserto
as sete portas do riso?
Quantos reinos submersos
quantos verões de esperança
quantos vales e desertos
quantos sertões de desejos
eles trazem na garganta?
Quantas paixões quantas pontes
quantos gritos retumbantes
quantos milênios de riso
quantos duros continentes
as almas de quantos reis
nessas vestes encarnadas?
Serão escravos que sonham
com a carta de alforria?
Serão roceiros sem terra
procurando o paraíso?
Ou serão dez astronautas
a rastearem cometas?
(O brilho de seus espelhos
talvez seja a estrela guia.)
Para onde vai tão ligeiro
o cortejo peregrino,
que caminhos são os seus
que batalhas descortina?
Vai pra guerra guerrear
em nome do Deus Menino.
É de aço sua espada
é de ouro seu dedal.
Reis com sono, reis cansado,
reis de bailes e roçado.
O que será que o move
na caminhada sem fim?
Serão os gestos dos rios
mimetizando espantalhos
a voz de pedras e bichos
cantando o viço das plantas
ou serão da seriema
os passos que se disfarçam?
Era noite ou era dia
quando eu vi essa folia?
Serão catedrais de marfim
o que carregam nas ancas?
Quantas terras-do-sem-fim
nessa marcha palmilharam?
Na procura de que luas
de que sóis, eles caminham,
trazendo bois coroados,
jaraguás e zabelinhas?
Que mandagascás procuram
que bagdás, alexandrias?
Serão videntes em busca
da fonte das utopias
ou serão os construtores
de Babel com sua torre?
Será que muito desejam
falar com Deus nas alturas?
Quem são os guerreiros
da eterna batalha
que a luz do sol renova?
Quantos dragões ferozes,
eles terão que vencer
antes que finde a jornada?
Será que querem salvar
a princesa Genoveva,
ou será que se dirigem
ao Reino do Vai-não-torna?
Procuram outras galáxias
ou serão esses artistas
eles mesmos as estrelas
os signos do zodíaco?
Mas que palavras escreve
esse alfabeto de passos
de danças e de combates?
O que me dizem essas almas,
que o coração não diviso?
Como posso seus enigmas
desvelar se não os ouço?
Será preciso descer
ao porão das heresias
pra conhecer seus desígnios?
Sonham com Miami, Amsterdã,
com a Comuna de Paris?
Sonham alcançar o Arco do Triunfo?
A ponte de Praga com seus quinze arcebispos e sete reis?
Ou a ponte de Avignon, a que tem o destino interrompido?
Será seu inimigo o turco infiel
ou será a morte com seus carrascos?
Seguem para Belém, ou querem levantar
a mais alta torre, o mais alto arranha-céu?
Querem ser Deus, por acaso,
ressuscitar no terceiro dia?
Ou querem dar vida aos corpos inanimados,
achar o segredo da eterna juventude?
Moisés transpôs o Mar Vermelho com seu povo
em busca da redenção por Deus prometida.
Colombo descobriu o caminho das Américas
imaginando ter encontrado o Paraíso.
Antônio Conselheiro cortou os sertões
pra levantar a cidade de Belo Monte
e esperar a vinda do Rei Dom Sebastião.
Prestes varou todo o Brasil com sua coluna
mas não sabia ainda de que mundo era seu reino.
Pra que Terra Sem Males, pra que Babilônia
seguem esses reis no seu rumo sempiterno?
É inverno e eles ainda brincam.
Batem os tambores, tangem as violas,
sopram os pífaros. É inverno
e eles ainda brincam.
INTRODUÇÃO
Este livro é o primeiro de uma série que pretendo publicar sobre o teatro tradicional
popular. Inicialmente, estava previsto reunir os resultados de pesquisa e recriação teatral por
mim realizadas, em conjunto com os atores e músicos da Companhia de Brincantes Boca
Rica, que resultaram na elaboração, montagem e circulação da peça A Comédia do Boi.
Entretanto, devido ao volume e importância do material coletado, que já exigia o espaço de
um livro inteiro, resolvi fazer constar apenas no apêndice matérias mais diretamente ligadas
ao processo de criação da peça citada, que deverá merecer um estudo mais aprofundado em
uma próxima publicação.
De fato, quando propusemos no início de 1995, a realização do Projeto Boca Rica
que tinha por objetivos a pesquisa, experimentação e recriação do teatro tradicional popular,
queríamos apenas pontuar de um modo mais sistemático um processo de busca iniciado, pelo
menos, 17 anos antes. Isto porque, já em 1978, lancei-me na pesquisa, como teatrólogo e
estudioso da cultura, das manifestações do teatro tradicional popular.
Na época, eu fazia parte da equipe de pesquisadores do então Centro de Referências
Culturais - CERES, da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará e, como tal, viajava
freqüentemente pelo interior cearense. Pesquisando artesanato e literatura de cordel, nossa
equipe visitou dezenas de municípios. Porém, como ator e escritor de textos teatrais minha
atenção voltou-se, particularmente, para as manifestações cênicas que ia encontrando no
caminho: Dramas, Fandangos, Caninhas-Verde, Danças do Coco, Danças de São Gonçalo,
Pastoris, Bumbas-meu-boi, Congos, Bandas Cabaçais etc. e, principalmente, os Reisados que
passei a reputar como a mais rica delas. Sobre estes últimos, concentrei minhas observações.
Durante as viagens, os Reisados apareceram inicialmente no Cariri e em grande
quantidade. Fiz meus primeiros registros sonoros de espetáculos (junto com registros visuais,
em fotografia e filme super-8) e entrevistas com mestres e brincantes em Barbalha, Juazeiro
do Norte e Crato. Datam desta época os contatos com o Mestre Luís Vitorino do sítio Pelo
Sinal em Barbalha, com o Mestre Aldenir no sítio Baixio Verde no Crato, com o Mestre Tico
no sítio Buriti e com vários mestres da zona urbana de Juazeiro do Norte (entre outros, Zuza
Cordeiro, Sebastião Cosmo, Margarida e Miguel Francisco).
Da equipe de pesquisadores do CERES, estiveram comigo no trabalho de coleta de
dados junto aos reisados, Carlos Lázaro, José Carlos Matos, Ângela Linhares, Caio Sílvio
e Edvar Costa. O material colhido serviu para a elaboração de dois filmes curta-metragem
em super-8, em parceria com Carlos Lázaro, que ainda hoje existem. O primeiro tem por
título Reis do Cariri e mostra espetáculos de Reis de Bailes e Reis de Congo, incluindo uma
Quilombada (ou Quilombos) que é o encontro e a batalha entre dois grupos de Reisado. O
segundo ainda inacabado que iria se chamar Reis de Bailes tematiza a ligação entre a vida
comunitária do sítio Pelo Sinal e a brincadeira do Reisado.
Além disso, aproveitei o Reisado como fonte de inspiração para a elaboração dos
textos teatrais, O Reino da Luminura ou A Maldição da Besta-Fera e O Pão, bem como
para a encenação dos mesmos pelo Grupo Independente de Teatro Amador, o primeiro com
espetáculo dirigido por José Carlos Matos e o segundo, por mim próprio, nos anos de 1978 e
1983, respectivamente.
O segundo ciclo de minhas pesquisas sobre Reisado deu-se no ano de 1989, por
ocasião do Projeto Festas e Folguedos realizado por uma equipe de pesquisadores da
Secretaria de Cultura do Estado do Ceará sob a minha coordenação. Faziam parte da equipe
de pesquisa, Cica de Castro, Olga Paiva, Martine Kunz, Edvar Costa e o fotógrafo Dário
Gabriel, além de mim.
Desta vez, revisitamos o Cariri e estendemos nossas viagens para as mais diferentes regiões
do Estado na busca específica de festas e folguedos populares. Particularmente, dediquei-me,
junto com Cica de Castro, à pesquisa dos folguedos e, especialmente, do Reisado. Colhemos
então cerca de 60 horas de gravações sonoras, contendo registros de espetáculos e entrevistas
com mestres e brincantes de mais de uma dezena de municípios cearenses (entre eles Crato,
Juazeiro, Barbalha, Milagres, Jardim, Campos Sales, Aracati, Itaiçaba, Canindé, Fortaleza,
Maracanaú, Sobral, Meruoca e Camocim). Conhecemos, na ocasião, os demais tipos de
Reisados, Reis de Couro (ou Careta, como atualmente é mais conhecido), Reis de Caboclo
(denominação dada por mim, com base no fato de que o corpo de brincantes é formado
por índios, chamados de caboclos pelo povo) e um Reisado urbano que chamam de Boi,
simplesmente.
Neste mesmo ano, realizei ainda pesquisas de campo em diversos assentamentos de
trabalhadores rurais beneficiados pela Reforma Agrária. Foram registrados espetáculos e
realizadas entrevistas com brincantes de Camocim, Acaraú, Monsenhor Tabosa, Itapipoca
e Santa Quitéria, por ocasião de projetos ligados à Secretaria de Agricultura/Incra. O
material coletado está perfeitamente preservado com parte das fitas inclusive transcritas, mas
permanece quase todo inédito devido à interrupção do projeto Festas e Folguedos por motivo
de minha transferência para a França, onde passei cerca de um ano.
Finalmente, o terceiro ciclo de pesquisas de campo teve início em 1995 e estende-se
até o presente. Está sendo levado adiante pelo Projeto Boca Rica
que reúne os atores e músicos da Companhia de Brincantes Boca Rica sob a minha
coordenação. O projeto que teve em seu primeiro ano a promoção da Secretaria de Cultura
do Estado, atualmente, desenvolve-se em nome da Fundação Amigos do Teatro José de
Alencar com o apoio cultural de diversas empresas, entre as quais a Petrobrás e as Lojas
Ocapana, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura nº 12.464, de 29 de junho de
1995.
Como procedimento inicial, realizamos, em março de 1995, um Curso de Iniciação às
Artes Cênicas Populares Tradicionais com 45 horas/aula, do qual participaram 38 alunos. Em
sua programação, o curso abordou os temas: “Tradição e Vanguarda”, “O Mundo Anímico:
Mito, Magia e Imitação”, “O Grotesco no Carnaval Popular”, “A Cultura Cômica Popular”,
“Matrizes e Formas Fixas na Cena Popular Tradicional”, “Formação Étnica dos Folguedos”,
“A Festa dos Caretas - uma Visão Antropológica”, “As Artes Populares Tradicionais
na História da Arte”, A Dança nos Folguedos Populares”, “O Mamulengo Popular”, “A
Música dos Folguedos Populares”, “A Arte Cênica Popular Tradicional na Arte-Educação”,
“Experiência de Recriação da Cultura Popular Tradicional no Cinema” e “Arte Cênica
Popular Tradicional como Patrimônio Histórico-Cultural”. Tais temas foram desenvolvidos
em aulas teóricas e práticas (com auxílio de recursos audiovisuais) pela professora Erotilde
Honório e por mim próprio (em sua maioria), além de pelos professores Cláudia Leitão,
Luiza de Teodoro, Elzenir Colares, Augusto Oliveira, Izaíra Silvino, Ângela Linhares,
Rosemberg Cariry e Olga Paiva.
No final do curso, foram selecionados os participantes da equipe do projeto num total
de 31, entre pesquisadores, atores, bonequeiros e músicos.
Com eles, passamos a desenvolver uma série de oficinas e treinamentos, reunindo não apenas
a equipe do projeto mas também grupos de animadores culturais ligados a órgãos públicos
e jovens atores de bairros da periferia de Fortaleza. Estas atividades buscaram desenvolver
uma expressão cênica baseada nos princípios do realismo grotesco e na linguagem popular
de rua, incluindo a construção de personagens e de situações dramáticas. Contou entre os
instrutores, além de alguns dos professores já citados, com a participação da atriz Rejane
Reinaldo e dos atores Gonçalves da Silva e Omar Rocha.
Em junho, reduzimos a equipe do projeto para um grupo 15 pessoas, entre atores e
músicos. Com eles preparamos um espetáculo que chamamos experimental, a partir de um
argumento dramático escrito por mim e de exercícios de improvisação cênica. O argumento
baseou-se no enredo do entremez do Boi como aparece nos Reisados e Bumbas-meu-boi.
Fundamentalmente, nas ocorrências que envolvem o casal de zanis do Reisado, Mateus e
Catirina, a morte e a ressurreição do Boi. Inspirou-se ainda na forma como vive José Maria
Viana, um Mestre de Bumba-meu-boi, que reside no bairro do Pirambu, em Fortaleza.
Imigrante do meio rural, ele tenta preservar na cidade o imaginário de seu mundo de origem,
povoando a pequena casa onde mora com animais os mais diversos, como boi, cavalo, bode,
cachorros e passarinhos, aos quais trata como semelhantes, compartilhando com eles o
espaço restrito e a intimidade.
Em nossos ensaios, buscamos construir cenas que desenvolvessem os acontecimentos
ligados ao conflito que resulta na morte do Boi, executado por Mateus a pedido de Catirina e
na posterior ressurreição do animal. Detalhamos as características dos personagens principais
e criamos novos personagens. Procuramos colocar a história do Boi numa realidade
contemporânea e urbana, destacando o que há de universal em seu mito, a morte do Boi-pai
pelo filho que quer se afirmar como indivíduo independente e, posteriormente, o resgate do
pai pela ressurreição do Boi, a superação da morte pela arte e a restauração do equilíbrio na
vida.
Criado o espetáculo de 40 minutos de duração que chamamos de “O Mistério do
Boi Tungão”, partimos para o contato com os grupos cênicos populares tradicionais.
Conhecemos o trabalho de alguns Bois, de Fortaleza, e viajamos ao interior do Estado.
Visitamos os municípios de Guaramiranga, Crato, Aratuba, Pacoti, Beberibe e Granja. Em
todos eles, trocamos espetáculos e técnicas com companhias de Reisado, entrevistamos
mestres e brincantes. No Crato, fizemos um estágio de uma semana no distrito de Bela Vista
com os reisados dirigidos pelo Mestre Aldenir Calou, quando tivemos oportunidade de
conhecer de perto a vida e o trabalho artístico dos brincantes, realizar treinamentos conjuntos
e até mesmo espetáculos.
Desenvolvendo e refazendo constantemente o pequeno espetáculo- experimental
por nós criado, chegamos ao final do ano (dezembro de 95) com uma montagem completa,
resultado de todo o processo até então decorrido. Denominamos a peça de “A Comédia
do Boi” (estamos publicando o texto em apêndice, neste livro) e estreamos em temporada
no Theatro José de Alencar, em Fortaleza. Mesmo sendo bem acolhido pelo público, o
espetáculo estava demasiado longo (cerca de 1h40 de duração) e o trabalho dos atores ainda
não satisfatório.
Continuamos nossa pesquisa, nossos treinamentos e ensaios, no decorrer da circulação
do espetáculo. Voltamos ao interior. Estivemos novamente no Crato, onde entrevistei pela
primeira vez o Mestre Dedé Luna e nosso espetáculo contou com a participação especial
do Reisado das Meninas do distrito de Bela Vista. Fomos a Quixadá, Guaramiranga,
Juazeiro do Norte, Limoeiro, Maracanaú, Milagres, Granja, Sobral e Barbalha. Conhecemos
novos Reisados e assistimos a uma apresentação da companhia de Congos de Milagres.
Aperfeiçoamos a montagem de nossa peça, retiramos cenas, cortamos partes do texto e
chegamos ao tempo de pouco mais de uma hora de espetáculo.
Participaram desta experiência como membros da Companhia de Brincantes Boca
Rica os atores Rejane Reinaldo, Gonçalves da Silva, Sâmia Bittencourt, Teta Maia,
Silvana Garcia, Cláuber Mateus, Karin Virgínia, Socorro Marques, Gilvan da Silva, além
dos músicos Marcos Maia, Myreika Falcão, Nádia Almeida, Teresa Tavares e Teddy
Aldous Williams. De modo mais direto, na coleta e organização dos dados da pesquisa,
colaboraram a atriz e professora de Sociologia, Rejane Reinaldo, e a musicóloga
Myreika Falcão que, inclusive, estiveram individualmente em outros municípios,
Canindé e Aquirás, respectivamente, onde colheram material de campo. Cabe ressaltar
ainda, a participação do violonista e professor de música Marcos Maia, que não apenas
acompanhou nosso espetáculo em sua circulação como é o responsável, junto com
Tarcísio José de Lima, pela elaboração das partituras musicais das peças registradas neste
livro.
No final de 1996, conseguimos o apoio do Ministério da Cultura, através do Pronac/
Fundo Nacional da Cultura, para o Projeto Cena Popular em Livro, proposto por mim
em nome da Fundação Amigos do Theatro José de Alencar. Tal projeto, que resultou na
publicação do presente livro, proporcionou além do mais a realização de algumas viagens e
treinamentos que envolveram não apenas os atores e músicos da Companhia Boca Rica, mas
também brincantes de inúmeros reisados.
Toda esta experiência, que terá seu relato concluído por mim numa próxima
publicação, ajudou-me substancialmente na compreensão dos significados do universo
simbólico do Reisado, bem como de sua estética. Só ajudado por uma pesquisa viva como
a realizada pelo Projeto Boca Rica, foi-me possível completar, de modo satisfatório, a
descrição pormenorizada do espetáculo e do universo artístico do Reisado.
Vale acrescentar ainda a importância para meus estudos de espetáculos vistos fora
do Ceará, como apresentações de reisados e folguedos outros presenciados em Laranjeiras/
Sergipe (em 1995), Lisboa, Marrocos, Praga, Fortaleza e Paris, especialmente do espetáculo
do Balé de Senegal, apresentado em Fortaleza no ano de 1993 e da peça A Tragédia do
Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno de Baltazar Dias, apresentada pelo
Teatro Tchiloli de São Tomé na Maison des Cultures du Monde, em Paris, no ano de
1990.
Ao lado dessas atividades, fiz um trabalho de pesquisa bibliográfica em bibliotecas
e livrarias de Fortaleza, Juazeiro do Norte, Salvador, Laranjeiras, Paris, Barcelona,
Madrid, Lisboa e de algumas cidades do Marrocos, o que resultou no acúmulo de quase
300 (trezentas) publicações (na maior parte livros, mas também artigos) em processo de
leitura. Tenho em mãos não apenas a literatura brasileira mais importante sobre o Reisado,
mas também uma série de publicações que rastream suas origens medievais, sem contar
as obras de referência teórica sobre sociologia da cultura e antropologia cultural, além de
estudos específicos sobre arte e teatro e de obras informativas acerca da formação da cultura
brasileira.
Acompanhando todo este processo de quase 20 anos de pesquisa, desenvolvi uma
certa reflexão teórica (elaborada mais em pensamento que na escrita) sobre a cultura popular.
Parte desta reflexão está no livro Cultura Insubmissa (1982), uma coletânea de artigos e
reportagens, publicado em parceria com Rosemberg Cariry, e em artigos publicados no
jornal O Povo. Outra parte está transmudada em ficção e/ou literatura artística em minhas
peças teatrais e no livro Romeiros que trata da religiosidade popular.
Certamente, como teatrólogo interessa-me o Reisado enquanto manifestação cênica
porque encontro nele as características do teatro primordial, fonte de pesquisa e renovação
do fazer teatral. E não é por acaso. Nos diversos momentos da história dos movimentos
artísticos, a recorrência ao tradicional faz parte de um processo de depuração de cada arte,
no sentido de romper com tudo que lhe é acessório, para afirmar sua especificidade. Este
trabalho é operado pela vanguarda ao longo de sucessivas revoluções que, segundo Pierre
Bourdieu, “conduzem de cada vez a nova vanguarda a opor em nome do regresso ao rigor
das origens, à ortodoxia, uma definição mais pura do gênero”. (BOURDIEU 1989, p. 296)
A compulsão em tornar-se semelhante, presente mesmo nos animais (vide a mímesis
operada pelos camaleões), é inerente ao gênero humano. Na imitação da natureza, o homem
encontrou o referencial primeiro de sua linguagem, da expressividade de seus gestos e
movimentos. A arte nasceu com o imaginário anímico nas práticas mágicas e narrativas
míticas. Quem já assistiu a, por exemplo, uma apresentação da Banda Cabaçal dos Irmãos
Anicetos do Crato (ou de muitos outros grupos populares tradicionais), sabe ao que estou
me referindo. Quando os Anicetos apresentam-se, toma corpo e voz a natureza, nos gestos
e movimentos dos brincantes, no som dos instrumentos musicais. A vida recria-se, o mundo
ganha alma.
Mas a faculdade mimética constitui-se também uma limitação a ser superada,
enquanto signo de dependência do homem aos poderes da natureza. Ao artista
contemporâneo cabe
ir além do horizonte da arte popular tradicional, sem contudo romper com este referencial.
Para Jürgen Habermas, “a tarefa de humanidade consiste em liquidar aquela dependência,
sem que as forças da mímesis e o fluxo das energias semânticas se extingam; pois, com isso,
malograria a capacidade poética de interpretar o mundo à luz das necessidades humanas”.
(HABERMAS 1990, p. 193)
A arte ocidental, entretanto, realizando esta ruptura, perdeu muito da sua vitalidade.
Séculos de civilização coisificante, de submissão ao mercado, de convencionalismos e
maneirismos deformantes, afastaram-na de seu sentido primordial e da própria vida. Fizeram
definhar em ortodoxias e modismos seu vigor original, sua espontaneidade, sua força criativa
e seu impulso analógico.
Daí a recorrência à arte popular tradicional como referência para um trabalho que
busque retomar para o teatro suas funções expressivas, cognitivas e comunicativas originais;
e ao Reisado, particularmente, por seu forte envolvimento na vida comunitária e pelos
vínculos simpáticos que ainda mantém com o meio natural.
No Ceará, área de nossa pesquisa, ele aparece em quase todas as regiões com maior ou
menor freqüência. Apresenta, pelo menos, cinco tipos bem definidos e inúmeras variantes.
Um primeiro é o Reis de Couro (ou Reis de Careta), característico do Sertão Central (zona
da pecuária), que tem por núcleo dramático uma família patriarcal formada pelos Caretas,
assim chamados por usarem máscaras tradicionalmente de couro (porém, na atualidade,
mais frequentemente de tecido). A família é chefiada por um casal de velhos pecuaristas,
espirituosos e bem-humorados, e os filhos distribuem-se em profissões diversas (magarefe,
poeta, vaqueiro etc.). Como variante deste Reisado aparece, principalmente no Litoral Oeste,
um outro onde as figuras principais são os Papangus, tipos cômicos (como os Caretas)
vestidos em mortalhas brancas que os cobrem da cabeça aos pés.
Um segundo é o Reis de Congo, tem seu centro de ocorrência no Cariri, zona de
engenhos de cana (para fabricação de rapadura e aguardente), onde a presença do negro foi
marcante. Seus números musicais (tocados, dançados e cantados) e seus quadros dramáticos
são encenados por um grupo de personagens organizados em uma hierarquia que mescla
elementos da economia açucareira e pecuária e das cortes medievais, comandada por
um Mestre. Por fora dessa estrutura verticalizada, correm dois personagens exceções, o
Mateus e sua mulher, Catirina, ambos negros e ex-escravos que atuam com liberdade total
de improvisação junto ao público e aos demais brincantes do Reisado, desobedecendo às
ordens do Mestre e fazendo galhofa com os mais respeitosos valores morais constituídos,
sejam profanos ou religiosos. Como variante deste Reisado, aparece em Juazeiro do Norte
o Guerreiro, folguedo importado de Alagoas, do qual só conhecemos, no Ceará, o de
Dona Margarida. Influenciado mas diferente do guerreiro alagoano, o Guerreiro de Dona
Margarida guarda a particularidade de ser brincado quase exclusivamente por mulheres e
de juntar às personagens do Reis de Congo, personagens do Pastoril, entre elas diversas
Estrelas, a Sereia, a Baiana etc.
Um terceiro tipo de Reisado é o Reis de Bailes que encontramos com poucas
ocorrências no Cariri cearense. Reproduz a estrutura das contradanças dos bailes medievais,
com colunas de Damas e Galantes movimentando-se em bailados cuidadosamente
coreografados. Suas encenações incluem pequenas peças dramáticas, geralmente criticando
costumes.
A um quarto tipo de Reisado demos a denominação de Reis de Caboclo, por ter
seu corpo de brincantes formado de índios (ou caboclos, como são chamados). Seus
componentes aparecem com arcos e flechas e dançam à semelhança dos Caboclinhos.
Seu tipo mais puro é encontrado na Serra da Meruoca (município de Sobral), mas aparece
também em Camocim e outras localidades da zona Norte do Estado. Parece guardar
reminiscências das encenações organizadas pelos jesuítas nos aldeamentos missionários.
Há um quinto tipo de Reisado, marcadamente urbano, que comumente toma a
denominação de Boi. Seu centro de difusão é Fortaleza. Revela influências marcantes do
circo, da umbanda e do carnaval (dos maracatus, principalmente), é eminentemente profano
e tem uma estrutura um tanto indefinida onde também aparecem as personagens do Pastoril.
Parece uma forma de reisado ainda em transição. Também em Sobral, o Reisado guarda a
denominação de Boi e revela fortes características urbanas.
Aliás, regra geral, nos vários tipos de Reisado o entremez principal é o que se
desenrola tendo por centro o Boi, sua morte e ressurreição, o que faz com que, muitas vezes,
o Reisado tome a denominação de Bumba-meu-boi, Boi de Reis, Boi Bumbá ou simplesmente
Boi, em alguns Estados do Nordeste.
Dentre as várias modalidades de Reisado registradas no Ceará, uma toma mais
apropriadamente esta denominação e é considerada, por muitos Mestres, como o Reisado
propriamente dito. Trata-se do chamado Reis de Congo, ao qual resolvi dedicar este livro
que, como disse, abre a série de publicações que pretendo editar sobre o teatro tradicional
popular.
Também conhecido como Reisado de Congo, este Reisado originou-se da fusão do
folguedo dos Congos com o Bumba-meu-boi e outros Ranchos de Animais. Aparece com
maior incidência no Sul do Estado, notadamente na região do Cariri. Tem como elemento
estruturante de seu espetáculo a temática dos Reis. Seus quadros principais tratam de cenas
da vida real com seus cortejos, embaixadas, batalhas, bailes, cruzadas, entronamentos,
destronamentos, morte e ressurreição, onde exterioriza-se o arquétipo do Rei. Mas também
inclui uma série de entremezes retirados do Bumba-meu-boi e que também aparecem em
outros tipos de reisado, nos quais estão presentes todos os elementos do realismo grotesco e
do carnaval popular.
Esta riqueza e complexidade de elementos explica minha escolha recair no Reis de
Congo, não só para iniciar a publicação dos resultados da minha pesquisa como para servir
de base principal ao nosso trabalho de recriação teatral. No corpo deste livro a ele dedicado,
começarei por estudar suas raízes históricas e sociais, localizando suas origens na formação
da sociedade brasileira. Em seguida, deter-me-ei no estudo específico sobre os Congos,
folguedo que lhe dá origem, para finalmente dedicar o capítulo principal do livro à descrição
detalhada e comentada do espetáculo e do universo social e artístico que cerca o Reisado de
Congo. Em apêndice, inclui o diário de viagem do estágio que realizamos em Bela Vista,
Crato, e o texto completo da peça A Comédia do Boi.
Atualmente, todo o material colhido ao longo dessas pesquisas encontra-se arquivado
no Museu da Imagem e do Som da Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, do
qual sou pesquisador. Deste modo, as fotos de ensaios e espetáculos, registradas em 1978, de
autoria de Carlos Lázaro, foram-me cedidas gentilmente, para publicação, pelo citado MIS.
Capítulo I: Origens e Surgimento do Reisado
1a. Parte: A SOCIEDADE COLONIAL NO NORDESTE
ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Quando da época dos descobrimentos, Portugal era uma sociedade mercantil
capitalista, mal saída do feudalismo medieval, que utilizava o trabalho escravo e estava
organizada politicamente sob a forma monárquica. Sua estrutura social assentava-se na
tradicional fórmula dos três estados: nobreza, clero e povo. Foi sob o influxo desta base
social e apoiado nesta concepção de hierarquia que Portugal empreendeu a colonização
brasileira.
Tanto a escravidão quanto a empresa açucareira já eram conhecidas pelos lusitanos.
Euclydes da Cunha informa que, já em 1530, havia em Lisboa mais de 10.000 negros
(CUNHA 1963, p. 69) e Gilberto Freyre observa que, na época do descobrimento do Brasil,
em Lisboa, escravos mouros e negros perfaziam quase a metade da população. (FREYRE
1978, p. 225)
O açúcar, originário das baixadas de Bengala e do Sudoeste Asiático, penetrando na
Ásia e no norte da África, introduziu-se na Europa através dos árabes, atravessando a Grécia
e a Itália, até alcançar Espanha e Portugal. Foi nas ilhas atlânticas (Açores, Canárias, Cabo
Verde, São Tomé e Madeira), porém, que os portugueses desenvolveram suas experiências
primeiras na atividade açucareira.
Especialmente na ilha de São Tomé, “o sistema de grande lavoura do Atlântico
assumiu sua forma característica”. (SCHWARTZ 1988, p. 28) Essa ilha, descoberta pelos
portugueses em 1471, foi transformada em entreposto do tráfego de escravos a partir da
década seguinte. Schwartz conta que, no início do século XVI, a população de São Tomé era
constituída de 600 brancos, o mesmo número de mulatos, dois mil escravos que trabalhavam
na lavoura, acrescidos de cinco a seis mil cativos em trânsito.
Também o caldeamento étnico tivera início não apenas em Portugal (com negros
africanos, árabes e principalmente mouros) como nas ilhas atlânticas (entre brancos e negros
e entre as diversas nacionalidades negras). Em São Tomé, mais acentuadamente, já se
desenvolvia o entrelaçamento cultural que viria misturar elementos culturais europeus com
traços das diferentes culturas africanas.
Segundo Antonil (ANTONIL 1967, p. 159), as primeiras levas de negros vindos ao
Brasil compunham-se de ardas, minas, congos, de São Tomé, de Angola, de Cabo Verde e
alguns de Moçambique. Já Gilberto Freyre anota a chegada posterior de negros maometanos,
malês muçulmanos, de nações mais adiantadas, como os haussás e jejês, que sabiam ler e
escrever em árabe. Para o autor de Casa Grande & Senzala, veio para o Brasil o de melhor da
cultura negra da África. (FREYRE 1978, p. 299)
Organizados em sociedades diferenciadas que variavam entre hordas e monarquias
mais ou menos avançadas, em muitas áreas do continente africano, os negros já criavam
gado, utilizavam o couro e usavam o boi no transporte de fardos. Os bantos e congos, muito
numerosos no Brasil, domesticavam inclusive o porco, a galinha e o cachorro. Em numerosas
etnias africanas, os artistas ocupavam lugar de honra. (FREYRE 1978, p. 309)
Os ameríndios, primitivos habitantes das terras brasílicas, viviam em estágio
civilizatório anterior ao das grandes nações africanas que já conheciam o uso do metal.
Seminômades, organizavam-se em sociedades segmentárias, com atividade econômica
basicamente coletora, complementada por uma agricultura rudimentar. Como os africanos,
animava-os um imaginário mítico, assentado no animismo mágico.
O português encontrou-os dispersos, divididos em nações e tribos que guerreavam
entre si e falavam diferentes línguas. Conheciam a cerâmica, os desenhos figurativos e
abstratos, praticavam danças rituais, ornavam e pintavam o corpo, possuíam uma vasta
tradição oral e uma rica farmacopéia empírica. Habitavam tabas compostas de grandes
habitações capazes de alojar dezenas de pessoas que constituíam núcleos familiares
numerosos. Tinham nos padrões das tabas e habitações representações do cosmos social e
religioso. Sua organização política baseava-se na liderança dos tuxauas (chefes) e pajés,
contando, em muitos casos, com a instância de um conselho tribal.
Do encontro destas três sociedades, da branco-européia, da ameríndia e da negroafricana,
sob a hegemonia da primeira, veio a formar-se a sociedade brasileira. Tal encontro,
entretanto, deu-se de maneira absolutamente desigual, sob o controle do português, com
o negro escravizado e disperso e com o índio também disperso e despreparado para o
enfrentamento de uma empresa colonizadora.
A ação dos lusitanos no território recém-descoberto iniciou-se com atividades
extrativistas, relações de escambo e, logo em seguida, com a escravização do indígena.
Teve na produção açucareira seu primeiro empreendimento de vulto. Combinou com ela
atividades outras como a mineração, a pecuária e a exploração de outras culturas.
Já em 1570, havia em Pernambuco 23 engenhos e 13 anos depois este número havia
aumentado para 66, onde trabalhavam cerca de dois mil escravos africanos e um número
duas vezes maior de escravos índios. (SCHWARTZ 1988, p. 46)
A SOCIEDADE AÇUCAREIRA
Uma Sociedade Polarizada
Empresa inicial da colonização no Brasil, a economia açucareira organizou um
microcosmo representativo do conjunto da sociedade brasileira. Nela, aparecem os grandes
traços da sociedade portuguesa idealizada e transplantada, com as devidas modificações,
para o Novo Mundo. Particularmente, é reproduzido na Colônia um certo senhorialismo
português como forma de exercício da autoridade.
Adaptando-se plenamente ao regime da grande lavoura implantado pela sociedade
açucareira, tal senhorialismo recriou, em terras brasileiras, o ideal da nobreza. Com base na
posse territorial, o “senhor” pôde estabelecer seu poder, exercendo o controle patriarcal sobre
o que se poderia chamar “sua grande família”, que além do núcleo central, incluía inúmeros
agregados e dependentes.
Como bem observa Gilberto Freyre, foi esta família patriarcal o grande motor da
colonização no Brasil, “a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as
fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política,
constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o rei de
Portugal quase que reina sem governar”, (FREYRE 1978, pp. 18/19) isso porque, no Brasil
colonial, a autoridade era exercida como poder local pelos “cabeças” dessas grandes
famílias, homens ricos e poderosos, legitimados com o título de “senhor”.
De todos os que estivessem incluídos em seu universo de poder, fossem escravos,
assalariados ou familiares, o senhor exigia completa submissão, exercendo sobre eles o poder
incontestável de arbítrio. A ele cabia dar o exemplo, mandar e proteger “sua gente”; aos
demais restava servir, obedecer e zelar pelo poder do senhor.
Frente à sua autoridade, desaparecia inclusive a distinção entre escravos e homens
livres, pois ele tratava a todos como servos. Filhos e escravos igualavam-se ante o senhor, a
quem deviam pedir a bênção e o perdão, pois ele poderia tanto ser violento e cruel, quanto
generoso. Era a um só tempo pai e carrasco.
Na sociedade açucareira, o senhor de engenho era a figura maior. Dele dependiam
todos, desde os lavradores que forneciam cana para seus engenhos, até os escravos,
passando pelos trabalhadores das mais diversas ocupações e condições sociais. Embora a
atividade açucareira se assemelhasse em muito a uma empresa capitalista, no seu imaginário
predominavam elementos de inspiração medieval, como família, obrigação, lealdade, honra e
clientelismo.
Porém, o fato de o Brasil ser uma colônia, modificava, em nosso meio, os ideais da
sociedade portuguesa. Assim é que muitos dos privilégios senhoriais eram estendidos a todo
europeu, transformando-o em um “gentil-homem”, em potencial. (SCHWARTZ 1988, p.
212) Entre os da raça branca, a diferença entre fidalgos e plebeus tendia a desaparecer, afinal
ambos eram colonizadores.
Favorecia esta nivelação o fato de à pequena população branca-européia de então
opor-se um dilatado número de índios e negros socialmente degradados. Tal antinomia entre
brancos-senhores e não brancos-servos (colonizadores e colonizados) só era quebrada em
casos não muito freqüentes de discrepâncias econômicas, que permitiam a existência de
negros alforriados que trabalhavam por conta própria e tinham escravos, e de brancos pobres
que viviam sujeitos a todo tipo de coerção, em condições de semi-escravidão.
Ao lado do senhorialismo e com ele entrelaçado, a escravidão foi a instituição que
marcou por excelência a sociedade colonial brasileira. A divisão entre escravos e livres era
sua distinção social máxima. Originalmente não baseada na raça (no Portugal quinhentista
havia escravos mouros e judeus), entretanto, a partir do final do século XVI, “a escravidão no
mundo português passou a ser cada vez mais associada aos africanos e seus descendentes”.
(SCHWARTZ 1988, p. 214)
Associados à violência exercida pelos senhores contra seus escravos, as
discriminações raciais e o instituto da escravidão penetraram o conjunto da sociedade
brasileira, afetando a vida da população em todo o raio de suas ações. Seu imaginário
exerceu uma influência tão forte na formação do brasileiro que até hoje seus efeitos se fazem
sentir. Schwartz cita “inúmeros casos de libertos que possuíam escravos, de posse de cativos
até mesmo por agricultores pobres, e até da existência de escravos que adquiriam escravos”.
(SCHWARTZ 1988, p. 215) Ter escravos tornou-se meio de vida. Muitos senhores viviam
folgadamente, sem nem mesmo organizar qualquer atividade produtiva, só de alugar seus
escravos.
A relação dos senhores (e senhoras) de engenho com seus escravos dava vazão às
mais aberrantes formas de sadismo por parte dos primeiros. Ao mesmo tempo despertava
sentimentos masoquistas nos segundos, deformando suas personalidades.
O trabalho no engenho de açúcar fazia-se intenso, exaustivo e, em muitos casos,
embrutecedor. Antonil relata não poucos casos de escravas que forneciam cana às moendas
serem por elas engolidas. O trabalho nas fornalhas, com escravos presos a correntes, foi
comparado por ele ao sofrimento das almas no inferno, tão desagradável era. (ANTONIL
1967, pp. 164/165)
Uma sociedade complexa
Entretanto, em que pese a polarização entre homens livres e escravos, senhores e
servos, colonizadores e colonizados, a sociedade colonial brasileira e seu microcosmo,
a sociedade açucareira foi um universo rico em complexidades e diferenciações sociais.
Esta riqueza originava-se na divisão social do trabalho e na diversidade de ocupações e
especialidades encontradas na economia açucareira.
Schwartz contou cerca de 80 ocupações ou especializações diferentes para 1.900
escravos na zona rural, em inventários de 50 engenhos e lavouras de cana, cobrindo o
período de 1713 a 1826. (SCHWARTZ 1988, p. 136) Além disso, havia uma boa quantidade
de atividades, não raras vezes exercidas por homens livres, em forma de assalariamento ou
remuneração por serviço, como as dos barqueiros, canoeiros, calafates, carapinas, carreiros,
oleiros, vaqueiros, pastores, pescadores, artesãos outros dos mais diversos ofícios, lavradores
etc.
Acompanhava esta divisão social do trabalho toda uma gradação racial valorativa que
definia a posição do indivíduo na sociedade de forma mais ou menos fixa. A pirâmide desta
gradação mostra a seguinte seqüência, a partir de cima: brancos ricos (senhores), brancos
remediados (comerciantes, funcionários administrativos, clérigos); brancos pobres (artesãos
e pequenos comerciantes); mestiços (caboclos: brancos com índios, mulatos: brancos com
negros; cabras: índios com negros - os mestiços ocupavam-se, geralmente, em atividades
que demandavam alguma especialização); negros forros (exerciam, geralmente, atividade
independente e com alguma especialização); índios aldeados ou aculturados (ocupavamse
em trabalhos pesados); negros ladinos (faziam trabalhos pesados ou com alguma
especialização); negros boçais, recém-chegados da África (exerciam trabalhos pesados); e
gentios, ou índios bravios (avessos ao trabalho nos moldes dos portugueses).
Mesmo entre os escravos, variava a condição social, pois fora criada a figura do
“coarctado”, isto é, do escravo a quem o proprietário dera o direito de pagar pela própria
alforria, o que lhe valia vários privilégios, entre os quais uma certa liberdade de movimento.
Assim é que o trabalho no engenho criou não apenas oportunidade de ocupação para
indivíduos livres e mestiços, como criou diferenciações entre os próprios cativos. Os
trabalhadores livres tendiam a ocupar as funções mais especializadas, porém, em vários
engenhos, os cativos chegavam a desempenhar todas as tarefas. Escravos negros, vindos das
ilhas atlânticas, eram empregados em vários ofícios especializados nos engenhos. Muitos
deles provinham da África Ocidental, de culturas onde trabalhavam com ferro, gado e outras
atividades úteis para a lavoura açucareira.
Verificava-se, também, uma certa divisão de trabalho por sexo e idade: enquanto as
mulheres trabalhavam nas caldeiras ou alimentando de cana as moendas, os meninos tangiam
os bois ou os cavalos que as impulsionavam. (SCHWARTZ 1988, p. 138) Nos canaviais, as
mulheres negras auxiliavam os homens, recolhendo a cana cortada por eles.
Contribuiu também para a complexidade das distinções e relações sociais na sociedade
açucareira sua relação de complementaridade e de associação com atividades outras,
como a pecuária, a mineração, o cultivo do fumo, além do fato de a atividade açucareira
desenvolver-se não tão distante dos centros urbanos de Recife/Olinda e de Salvador.
Os negros costumeiramente viviam confinados à área de controle dos seus
proprietários, muitas vezes impedidos de manter laços cotidianos com
os indivíduos de seu mesmo grupo étnico e mesmo com os membros de sua família. Só no
ambiente urbano encontraram maiores oportunidades de alargamento do convívio social. No
perímetro da cidade podiam acumular algum dinheiro para comprar a liberdade, exercendo
atividades como “negros de ganho” (escravos de aluguel) que os permitia viver e trabalhar
por conta própria. Não foi por acaso que as grandes rebeliões negras na Bahia, do início do
século XIX, foram tramadas nas áreas urbanas.
Resumindo as características da sociedade escravocrata colonial, Schwartz diz que ela
“herdou concepções clássicas e medievais de organização e hierarquia, mas acrescentou-lhes
sistemas de gradação que se originaram da diferenciação das ocupações, raça, cor e condição
social, diferenciação esta resultante da realidade vivida na América. Foi uma sociedade
de complexas divisões de cor e de diversas formas de mobilidade e mudança: contudo,
foi também uma sociedade com forte tendência a reduzir complexidades a dualismos
de contraste - senhor/escravo, fidalgo/plebeu, católico/pagão - e a conciliar as múltiplas
hierarquias entre si, de modo que a gradação, a classe, a cor e a condição social de
cada indivíduo tendessem a convergir.” (SCHWARTZ 1988, p. 209)
Cultura, Conflitos e Imaginário
Ao confrontar a sociedade gerada em torno do açúcar com a sociedade pecuária, que
na mesma época estendia-se pelo interior nordestino, Câmara Cascudo prefere destacar
uma de suas características. Diz ele: “O ciclo da cana-de-açúcar, presidido pela casa-grande
do engenho, é a utilização em massa do trabalho humano, escravo até 1888 e hoje no
regime jornaleiro ou de tarefa contratual. As tarefas obrigam aos movimentos idênticos dos
trabalhadores nos diversos grupos, aberturas de valas para irrigação, plantação ou soca de
cana, limpa...” (CASCUDO 1956, p. 9)
De fato, no engenho e na economia açucareira, em geral, o trabalho era intenso, não
sobrando aos escravos tempo significativo para o lazer. Além do mais, apesar do fabrico
do açúcar ser uma atividade complexa, apenas o mestre de açúcar e o feitor-mor tinham
a oportunidade de ter uma idéia geral do conjunto de suas etapas, do começo ao fim. Os
demais trabalhadores eram escalados para serviços específicos e distintos e, à maneira da
indústria moderna, eram apartados do produto final de seu trabalho.
Em tal forma de atividade produtiva semi-industrial o incentivo negativo ao trabalho
não bastava, isto é, eram insuficientes os castigos e ameaças de privações como ocorria aos
escravos fujões ou faltosos que tinham por punição os açoites ou o trabalho sob grilhões,
nas fornalhas. Determinadas tarefas do trabalho produtivo exigiam perícia, zelo e, por vezes,
criatividade em sua execução e isto só podia ser obtido com a boa vontade do executante.
Daí as pequenas vantagens oferecidas aos escravos que se ocupavam dos serviços
especializados, como uma ração suplementar, maior liberdade de movimentos, mais tempo
de descanso, possibilidade de pequenas pagas etc.
Além disso, os escravos utilizavam artimanhas diversas, quando não a fuga ou a
rebelião aberta, para atenuar as agruras do trabalho. Schwartz dá notícias que no engenho
Santana (na Bahia) “os escravos descobriram serem os problemas físicos e psicológicos uma
das mais eficazes formas de fugir da organização da vida na propriedade.” (SCHWARTZ
1988, p. 319)
Em 1789, neste mesmo engenho, um grupo de escravos fujões (evadiram-se depois
de matar o feitor), após muitas perseguições e combates, propôs um tratado de paz.
Nele, exigiam, para voltar ao engenho, melhores condições de trabalho e, entre outras
reivindicações, o direito de “brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos sem
que nos impeça e sem que seja preciso licença.” (SCHWARTZ 1988, p. 142)
Embora habitasse na casa-grande, junto ao engenho, o senhor mantinha-se distante de
seus escravos e demais trabalhadores. Diferentes eram sua alimentação, seu vestuário, seus
divertimentos e riscos profissionais. (CASCUDO 1956, p. 9) No engenho e no canavial, seu
poder de violência fazia-se representar pelos feitores, no geral odiados pelos escravos. Não
poucas eram as vezes em que os cativos, vítimas da brutalidade dos feitores, tentavam a
intercessão do senhor. Os engenhos baianos, geralmente de pequeno e médio porte, com um
número reduzido de escravos, permitiam o controle estreito dos feitores sobre os escravos.
Mas nas unidades maiores que chegavam a reunir 150 cativos o anonimato permitia a estes
alguma liberdade de movimentos.
Câmara Cascudo viu nos engenhos esta “fórmula de aglutinação coletivista”, um meio
dissuasivo aos vôos criativos da arte e às iniciativas do heroísmo individual. Para ele, “o
ciclo da cana-de-açúcar não pode produzir o cangaceiro, o cantador de pandeiro e de viola,
o improvisador, o dançarino solista, o artesão independente, o cavalariano afoito, o beato
aliciante, o jagunço, o fanático”. Cascudo observa, não de todo sem razão, que no engenho,
“o canto será sempre uníssono e coral”, isto porque “a mentalidade surge condicionada aos
interesses imediatos do grupo humano a que pertence o trabalhador”. (CASCUDO 1956, p.
9)
Mas, ao fazer tal afirmação, Cascudo por certo não levou na devida conta que os
negros de diversas maneiras buscavam não só se apegar às suas antigas manifestações
culturais, como criar novas formas de expressão. Contra esta pretensão, contava o empenho
dos brancos em manter-lhes dispersas as etnias, bem como em exercer o controle e a
imposição cultural. Além do mais não eram muitas as oportunidades que os africanos tinham
de retomar o contato com suas terras de origem.
Entretanto, a grande concentração de populações negras nas zonas açucareiras,
favorecia o florescimento de traços culturais próprios. Na Bahia, por exemplo, na década
de 1820, cerca de dois terços da população era composta de negros livres ou forros.
(SCHWARTZ 1988, p. 329)
Ora, como se sabe, a cultura negro-africana não era de modo nenhum coletivista e
uniformizadora. Pelo contrário, em suas manifestações artísticas (diferentemente do que
acontece com os ameríndios) destaca-se a livre vazão da individualidade e dos impulsos
pessoais. Veja-se, por exemplo, o caso da dança, onde sempre aparece o dançarino solista e
onde se permite toda sorte de improviso.
Já em 1711, Antonil dá notícias das artes negras nos engenhos de cana. Reporta-se ao
dilema vivido pelos senhores frente aos folguedos praticados por seus escravos. A questão
era: permiti-los ou proibi-los? Em defesa da proibição, argumentava-se que tais folguedos
religavam os escravos às suas antigas nações, reacendiam hábitos bárbaros e tiravam-nos do
trabalho. Antonil considerava o inconveniente de tal posição: “Negar-lhes totalmente os seus
folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos,
de pouca vida e saúde. Portanto, não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis,
cantos e bailes por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegraremse
inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora
do Rosário, de São Benedito e do orago da capela do engenho, sem gasto dos escravos,
acudindo o senhor com sua liberalidade...” (ANTONIL 1967, p. 164)
A citação tão longa de Antonil, justifica-se porque revela já no início do século XVIII,
um folguedo de “reis” no engenho e de um rei negro. Tais festas, além de permitidas pelos
senhores, deviam ser por eles financiadas, ao parecer de um homem tão zeloso pela boa
ordem social como Antonil. Aliás, estas festas não eram privilégio do Norte, pois Mello
Morais Filho registra uma coroação de reis negros no Rio de Janeiro, a partir do ano de
1748. A festa se dava em torno do Santo Rei Baltazar, o negro entre os Reis Magos, que
era relacionado ao Rei de Congo pelos brincantes. Tais festejos, ocorridos no campo de
São Domingos, em torno da capela de Nossa Senhora de Lampadosa, prolongaram-se, pelo
menos até 1811 e tinham ritual semelhante aos atuais Congos, lembrando também (no cortejo
de majestades, feiticeiros e balizas negros) os Maracatus. (MORAIS FILHO 1946, pp. 381 a
386)
Já os batuques, reuniões de negros em torno da dança (muitas vezes erótica), da
música e da religião, pelo contrário, eram considerados permissivos e perigosos, razão pela
qual eram proibidos. No final do século XVIII, na Bahia, os minas realizavam batuques em
segredo, tendo negras como líderes, altares de ídolos e bênçãos com sangue de galo.
No trabalho de cristianização de negros, gentios e mestiços, a Igreja, se por um lado
reprimia os traços de violência e luxúria, contidos nas culturas pagãs, por outro, procurava
aproveitar-se da inclinação animista e fetichista de negros e índios. Deste modo, buscava
atraí-los, incorporando elementos seus às festas e rituais cristãos. Na Bahia, as procissões de
“Corpus-Christi”, incluíam músicos, bailarinos e mascarados “em saracoteios lúbricos”, no
dizer de Gilberto Freyre. (FREYRE 1978, p. 249)
Ainda é o mesmo Freyre que descreve uma procissão de “Corpus-Christi”, em 1733,
desta vez em Minas, como uma verdadeira parada de paganismo ao lado do cristianismo.
Entre outros “destaques”, havia turcos e cristãos, a Serpente do Éden, os quatro pontos
cardeais, a lua rodeada de ninfas e, no final, caiapós e negros congos “dançando à vontade
suas danças gentílicas e orgásticas em homenagem dos Santos e do Santíssimo.”
(FREYRE 1978, p. 249)
Nos engenhos de cana, a presença da Igreja era de importância vital para a boa
ordem dos trabalhos. Ao lado da casa-grande, havia uma capela. O padre encarregado da
cristianização dos negros, quando não era um dos filhos do senhor do engenho, estava a
seu serviço, recebendo dele remuneração. No máximo, tinha o cuidado de hospedar-se em
separado da casa-grande.
As festas juninas coincidiam com o final da safra açucareira e em agosto retomava-se
o trabalho no engenho, com a benção da moenda. Abria-se a moagem com o padre benzendo
tudo quanto era máquina, bicho e gente, e com o proprietário passando as primeiras canas.
Tanto quanto os senhores, os escravos levavam a cerimônia a sério, ao ponto de recusaremse
a trabalhar se as moendas não fossem abençoadas. Benzia-se tudo, escravos, moenda,
caldeira, assim como os carros de boi vindos dos canaviais, “enfeitados com guirlandas feitas
de canas compridas amarradas com fitas coloridas.” (SCHWARTZ 1988, p. 96)
Irmandades religiosas negras já existiam no final do século XV, em Lisboa e Lagos.
(SCHWARTZ 1988, p.23) No Brasil, estas irmandades remontam aos primeiros séculos
da colonização, particularmente as de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário.
Representavam uma tentativa de substituir a agregação dos negros em torno de seus reis,
atraindo-os para a órbita do catolicismo. Seguiam a linha da evangelização “pela música,
pelo canto, pela liturgia, pelas profissões, festas, danças religiosas, mistérios, comédias;
pela distribuição de verônicas com agnus-dei, que os caboclos penduravam no pescoço, de
cordões, de fitas e rosários; pela adoração de relíquias do Santo Lenho e de cabeças das Onze
Mil Virgens.” (FREYRE 1978, p. 52)
Assim é que por esta via oblíqua e um tanto quanto inversa, o cristianismo dos
portugueses foi paganizado por índios e negros. Em muitos casos, fica difícil saber-se quem
aculturou quem. Nina Rodrigues surpreendeu em Penedo (Alagoas) uma “Festa dos Mortos”,
de nítida influência muçulmana, relacionada com as fases da lua. Os brincantes, usando
túnicas alvas, adoravam a Estrela d’Alva, a Lua e dançavam imitando os astros. (FREYRE
1978, p. 393) É provável que mais que através dos portugueses essas influências tenham
chegado pelos negros muçulmanizados.
Brincantes representando estrelas fazem-se presentes também no Pastoril, onde
além da estrela guia dos pastores ao presépio, aparecem muitas outras estrelas. O mesmo
fenômeno de apropriação mútua parece acontecer também no Reisado, onde os reis podem
ser tanto de nações africanas, coroados por seus súditos, quanto os “três Reis Magos” (sendo
que um deles, Baltazar, é também negro).
Como esclarece Gilberto Freyre, as irmandades de pretos que tinham São Benedito
ou Nossa Senhora do Rosário como patronos “foram verdadeiras organizações de disciplina
com “reis de Congo” exercendo autoridade sobre “vassalos”. (FREYRE 1978, p.356) Para
o inglês Henry Koster, contratado para administrar um engenho pernambucano, no início
do século XIX, a instituição dos Reis de Congo no Brasil, longe de ameaçar a ordem no
engenho, ajudava a disciplina dos escravos: “os reis de Congo eleitos no Brasil rezam a
Nossa Senhora do Rosário e trajam à moda dos brancos; eles e seus súditos conservam, é
certo, as danças do seu país; mas nas suas festas admitem-se escravos africanos de outras
regiões, crioulos e mulatos que dançam da mesma maneira; essas danças atualmente são
mais danças nacionais do Brasil do que da África.” (KOSTER 1816, p. 411)
No entanto, embora vistas como inofensivas por muitos, coroações de reis fictícias
representavam muitas vezes ensaios para o que se concretizaria depois na vida real. Em
1807, na Bahia, os haussás elegeram um “governador” que tinha como “secretário” um
pardo livre. A conspiração deu-se durante o ciclo natalino, fato não incomum porque,
costumeiramente, os negros aproveitavam o movimento das festas religiosas (Corpus Christi,
Semana Santa e Natal) para empreenderem suas fugas e rebeliões. (SCHWARTZ 1988, p.
386)
Portanto, não era de todo injustificado o temor do senhor do Engenho Moçape, em
Sergipe de El-Rey, que em 1818, perguntava ao Governador ser prudente permitir os festejos
a São Benedito naquele ano. Isso porque era costume entre cativos e forros coroar-se como
“reis”, durante aquelas celebrações.
Tanto cabia a pergunta do temeroso senhor que, na década seguinte, a Bahia assistiu a
dez revoltas de negros e Sergipe a cinco, sendo que em Cachoeira, no ano de 1826, um “rei”
dos negros liderou uma insurreição. (SCHWARTZ 1988, p. 391)
A SOCIEDADE PECUÁRIA
Uma Sociedade Guerreira
Durante todo o período colonial, os sertões do Nordeste foram palco de pelejas
contínuas entre chefes guerreiros. Disputava-se o domínio territorial em nome de poderosas
famílias. Após as incursões pioneiras dos bandeirantes paulistas, aprisionando índios e
extorquindo riquezas, abriu-se o ciclo das “bandeiras de gado”, no dizer de Câmara Cascudo.
Senhores de guerra, dentre eles os da poderosa Casa da Torre, constituiriam, “com fome
de terra e força irresistível, a expansão do instinto povoador, alargando os limites numa
cega, diária e quase inconsciente impulsão natural de posse dos terrenos pela pecuária. É
um avanço irradiante, contínuo, geração a geração, manadas de gado conduzidos pelos
guerreiros emplumados e capatazes que são os melhores mosquetes da época.”
(CASCUDO 1956, p.2)
Este ciclo de entradas teve início ainda no século XVI, mas conheceu intensidade
maior após 1654. Eram seus protagonistas chefes militares que comandavam exércitos
regulares, com milhares de índios e centenas de mulatos e brancos. Usavam a estratégia da
ocupação de fato para obter a ocupação de direito. E na falta de homens suficientes para
ocupar tão vastos territórios (alguns desses domínios eram maiores que alguns países da
Europa), ocupava-se com gado.
A unidade de ocupação era a fazenda que somava território de dezenas de léguas
quadradas e muitos milhares de cabeças de gado. Marcos de expansão guerreira, as fazendas
muniam-se de fartos meios de defesa e até de ofensiva. (ABREU 1963, p. 279) Manoel
Domingos observa que para alguém aventurar-se a encabeçar partidos na “guerra do sertão”
precisava reunir poder econômico, parentela grande, armas e saber guerreiro, sendo a
questão primeira a força militar. (DOMINGOS, Manuel: Mudança Social no Nordeste;
Curso de Mestrado em Sociologia, UFC, 1994.2)
A Igreja atuava nessa disputa por meios singulares. Sob o pretexto da catequese,
aldeava índios, utilizando-os como mão-de-obra, tanto para o trabalho produtivo, quanto na
defesa e na ampliação de suas propriedades.
Uma primeira ordem de conflitos, dessa natureza, opunha colonizadores e colonizados,
isto é, portugueses (e seus aliados) e nativos, na luta pela posse territorial. Num segundo
momento, colonizadores lutavam entre si, em uma série de disputas particulares, nas quais
confrontavam-se igreja, sesmeiros (proprietários de direito) e grandes posseiros (ocupantes
de fato). Num terceiro momento, ocupado o território, as disputas mesmo assim continuaram,
opondo fazendeiros a fazendeiros.
A vitória nestas disputas pendia para aquele que ostentava maior força militar.
O poderio econômico para ser bem sucedido havia de ser traduzido em força militar. A
dominação territorial e a propriedade da terra eram mais conseqüência do que fonte de poder.
A força militar, por sua vez, tinha a ver com a posse de armamentos, mas também ligava-se
ao carisma militar, à capacidade de liderança e de alargamento das relações de parentela.
Tratava-se de uma guerra entre bandos senhoriais, feita em nome da tradição das grandes
famílias.
A sociedade colonial sertaneja, sendo uma sociedade de guerra, tinha o imaginário
povoado de um heroísmo guerreiro que reavivava os ideais guerreiros da Idade Média
européia na qual elementos como honra, palavra, lealdade e, principalmente, valentia
possuíam um valor simbólico inestimável.
Ao contrário do que ocorria no litoral, a presença do Estado no interior do que hoje
se chama Nordeste era praticamente nula. A pouca legislação que havia relativa a estes
territórios caía no vazio. Na prática, o Governo colonial atinha-se a reconhecer a autoridade
de fato do poder local. Senhores de guerra eram feitos capitães-mores e seus bandos de
vassalos e jagunços (sua cabroeira, como se dizia) eram elevados à condição de milícias.
Deste modo, o senhor de fato passava a ser o senhor de direito, exercendo o arbítrio e a
violência em nome do Rei. Poder econômico, poder político e poder militar confundiam-se,
resumindo-se numa só pessoa, o potentado local.
A Geografia da Pecuária
As “bandeiras de gado”, inicialmente, penetraram o interior seguindo o curso do rio
São Francisco. À medida que avançavam, iam fixando pequenas unidades de ocupação,
que eram os “currais” de gado. Chamava-se curral um cercado de pau-a-pique para guardar
o gado durante a ferra e apartação. Ao seu lado, levantava-se uma pequena casa de taipa
coberta com palha para os vaqueiros. No mais, um cavalo e uma “semente de gado” (que
variava de 50 a 200 cabeças) eram suficientes para estabelecer o início de uma fazenda. Com
o crescimento do rebanho, aumentava-se o número de vaqueiros e de cavalos, plantavamse
algum legume e algumas fruteiras em torno da casa e era tudo. A garantia da posse do
território ficava por conta do proprietário, mais senhor de guerra que fazendeiro, que vez por
outra percorria a extensão de seus domínios para desalojar algum intruso.
Geralmente, um senhor de guerra possuía inúmeros currais. Nos maiores, chegava a
empregar no máximo 20 vaqueiros, pois um só podia cuidar de mais de 100 cabeças de gado.
Deste modo, a população de um curral era extremamente pequena, mesmo que guardasse um
rebanho numeroso. (SPIX E MARTIUS, p. 238)
Os limites das fazendas de gado eram imprecisos, não havia cercas nem valados. O
gado era criado em liberdade e o rebanho de uma fazenda vivia misturado com os das outras,
sendo identificado pela marca do ferro da fazenda à qual pertencia.
Ocupava-se um vastíssimo território com um pequeno número de pessoas, resultando
uma região parcamente povoada e uma vida isolada para seus habitantes. O contato mais
freqüente daqueles vaqueiros, perdidos nas lonjuras dos sertões, era com os índios, quando
não, eles próprios eram índios ou deles descendentes. Schwartz observa que “quanto mais
distantes das áreas densamente colonizadas ou das cidades costeiras, maior a tendência de os
colonos e seus descendentes adotarem costumes índios.” (SCHWARTZ 1988, p. 67)
O gado, vivendo à solta, em pastos naturais, exigia vastas extensões de terra para ser
criado. Além disso, a ausência de cercas tornava a pecuária incompatível com a agricultura.
A escassez de povoamento somada à falta de agricultura e ao isolamento impedia a formação
de aglomerados urbanos.
Só do século XVIII em diante, os fazendeiros passaram a viver com suas famílias no
interior. Apareceram então as primeiras casas sólidas e espaçosas. Ao lado delas, levantamse
capelas, bolandeiras para o fabrico da farinha, teares, engenhos de rapadura, cavalos e
negros. (ABREU 1963, p. 150)
No Ceará, a entrada do gado, vindo da Bahia, deu-se, inicialmente, a partir do curso
do rio São Francisco, desviando-se pelos riachos da Terra Nova e da Brígida, para atingir as
terras cearenses pelo Cariri. Em seguida, uma estrada percorrendo a Zona Costeira, desde
Recife, atingia a foz do rio Acaraú, no Litoral Norte do Ceará.
A confluência dessas duas correntes, baiana e pernambucana, resultou que, findo o
século XVII, já estivesse todo o Ceará ocupado pelos colonizadores, com “os índios uns
reduzidos a aldeias, outros vivendo em paz, ao lado dos colonos.” (ABREU 1963, p. 150)
A criação de gado tomava quase toda a extensão de seu território, complementada por uma
pequena e rudimentar agricultura para consumo local.
Economia e Cultura
A pecuária foi, em resumo, o meio ideal naquele momento para assegurar o domínio
de vastos territórios. Requeria pequeno investimento, expandindo-se com facilidade, dado
seu caráter quase extrativista. A interferência humana para a reprodução do gado era mínima.
O pasto natural apenas demandava para sua renovação queimas periódicas (uma técnica
rudimentar que contribuiu decisivamente para o empobrecimento geral do solo do semi-árido
nordestino). Os custos humanos e materiais maiores eram com o transporte.
Além disso, como muito bem observou Manuel Domingos, em seu curso sobre
Mudança Social no Nordeste (DOMINGOS, curso citado), a economia pecuária era
insensível à crise de mercado. Para seu pessoal diminuto, as fazendas eram auto-suficientes
em alimento. Não se perdia a produção no caso de uma crise de mercado. Bastava reter
o boi no pasto. E as secas que no futuro viriam a dizimar grande parte do rebanho vacum
da região só vieram a tornar-se calamidades no século XIX, entre outras coisas, devido ao
adensamento populacional e à degeneração do solo.
No entanto, a pecuária colonial, por seu caráter extensivo, era estagnante, isto é,
mantinha por séculos a área de sua abrangência sem mudanças sociais significativas. Foi esta
pecuária que instaurou no Brasil a grande propriedade com as mazelas que mais tarde viriam
se revelar.
A zona do gado era uma zona de lonjuras, grandes distâncias e populações esparsas.
Viabilizava-se no semi-árido, articulando-o com zonas de refrigério em regiões menos secas,
para onde o gado deslocava-se num estio mais forte. Povoava, mas não tão densamente,
o longo das “estradas”, através das quais o gado era levado para ser vendido nas cidades
litorâneas, Recife e Salvador principalmente (depois Aracati e Fortaleza, no Ceará).
Durante a Colônia, não produziu grandes aglomerados urbanos. Martius, em viagem
ao Piauí, em 1819, viu Oeiras, então sua Capital, localizada no coração da zona pecuária,
como “um povoado insignificante que consta de algumas ruas irregulares, com casas
baixas de barro caiadas de branco.” (SPIX E MARTIUS, p. 239) Contava então com 14.074
habitantes. Icó e Sobral, no Ceará, não eram muito diferentes e o Crato, um pouco maior,
beneficiava-se por uma próspera lavoura de cana.
Embora assentando-se em unidades semi-isoladas, a zona pecuária mantinha relações
com as regiões vizinhas. Sua população, pelo menos as partes branca e negra, e em muitos
casos mesmo a índia, procedia do litoral, com o qual não cortava de todo os laços, mercê do
comércio de gado. Particularmente, com a zona açucareira, estas relações se mantinham,
pois a pecuária abastecia de carne e couro o mundo dos engenhos de cana. Além do mais, os
próprios engenhos não prescindiam da criação de bois, pois muito deles eram puxados por
parelhas destes animais.
Daí, traços culturais numerosos da sociedade açucareira do litoral imigrarem para o
interior com os rebanhos de gado. Acrescente-se a este fato a proliferação de lavouras de
cana e engenhos de rapadura ao longo do rio São Francisco e em pequenos encraves mais
úmidos no semi-árido, como as serras e o Cariri.
Sediando-se no sertão, porém, estas influências culturais assentavam-se por largo
tempo, tomando, num desenvolvimento quase autônomo, feições locais. Ao contrário da
sociedade açucareira, onde era marcante a presença do negro, na pecuária dominavam
brancos, índios e mestiços, embora o negro não estivesse de todo ausente. Natural, portanto,
que na sociedade pecuária domine a tradição portuguesa, fundida a traços culturais
ameríndios.
Euclydes da Cunha observa que: “Caldeadas a índole aventureira do colono e a
impulsividade do indígena, tiveram, ulteriormente, o cultivo do próprio meio que lhes
propiciou, pelo insulamento, a conservação dos atributos e hábitos avoengos, ligeiramente
modificados apenas, consoante as novas exigências da vida.” (CUNHA 1963, p. 72) E mais
adiante: “Ora toda essa população perdida num recanto dos sertões, lá permaneceu até agora,
reproduzindo-se livre de elementos estranhos, como que insulada, e realizando, por isso
mesmo, a máxima intensidade de cruzamento uniforme capaz de justificar o aparecimento de
um tipo mestiço bem definido, completo.” (CUNHA 1963, p. 74)
No geral, principalmente nos séculos iniciais da colonização, tratava-se de uma
sociedade pobre e iletrada. Antonil observa que os homens vestiam couro e pareciam tapuias
(índios bravios de língua travada) e que em suas cabanas de palha, por vezes, faltavam até
panelas de barro. (ANTONIL 1967, citado no prefácio de A. P. Canabrava, pp. 107/108) A
fonte de alimento quase única era o boi. De resto, alguma agricultura rudimentar (mandioca
e milho), poucos frutos silvestres e o mel. Com as engenhocas e alambiques, chegou a
rapadura e a cachaça.
O Sertanejo
Ao sertanejo pobre que não conseguisse se alçar à condição de vaqueiro, restava tãosomente
a perspectiva de tornar-se agregado (morador) de um fazendeiro qualquer. Preso à
terra do patrão, não tinha casa, terra ou gado seus. Plantava uma roça de milho e mandioca,
acaso obtivesse permissão (o que nos dois primeiros séculos da colonização era raro). Em
tudo será dependente do fazendeiro, trabalhando para ele em regime de servidão (jornaleiro)
e podendo ser expulso ao seu bel-prazer.
Como vaqueiro, seus horizontes serão bem mais promissores. Terá direito a um em
quatro bezerros nascidos no rebanho sob sua custódia e, um dia, poderá tornar-se também um
fazendeiro. “Guardará a fazenda, (...) vestirá roupa de couro, correrá nas vaquejadas fazendo
proezas. Terá fama como pegador de gado, ou como capador de animais, ou ainda como
curador de feridas e bicheiras.” (BARROSO 1956, p. 177) Ostentará cheio de orgulho a glória
do nome de vaqueiro.
Se for dado a sonhos, sonhará em conquistar os amores da filha do fazendeiro. E
se acaso for bem sucedido em seu intento, enfrentará a oposição do fazendeiro. Pois este
procura para sua filha um marido branco, que mantenha ou “melhore seu sangue”, e o
vaqueiro quase sempre é índio, preto ou mestiço.
O vaqueiro não se conformará com sucesso tão desditoso, pois ele é valente e no
sertão a valentia tem valia maior até do que a honra e a lealdade. E a realidade vira lenda,
romance de cordel, com juras de paixão infinitas, fugas temerárias, perseguições atrozes e
finais mais felizes na ficção do que na vida real.
No cotidiano, porém, o vaqueiro dono da fazenda e o vaqueiro do seu gado, parecem
companheiros. Dando campo juntos, sua alimentação e seu vestuário são os mesmos.
Galopam nos mesmos cavalos e “na caatinga e carrascal, caçando o marruá, a técnica não
selecionava senão o mais digno para ser o “esteira” (parceiro que funciona como auxiliar na
pega do boi) e o outro o derrubador, pear ou mascarar a rês atrevida.” (CASCUDO 1956, p.
11) Os filhos de ambos serão criados juntos e receberão a mesma formação.
No período em que o dono da fazenda morava fora de seus domínios, a autonomia
do vaqueiro era maior. De sua inteira responsabilidade era o que ocorria de bom e mau
na fazenda. Seu contato com o fazendeiro não se fazia com freqüência e resumia-se às
prestações de conta sobre o progresso do rebanho, feitas pelo vaqueiro com toda a confiança
do patrão.
Muitas vezes ex-escravo, o vaqueiro via-se, nesta condição, investido de uma
independência e de uma responsabilidade por ele até então desconhecidas. À sua iniciativa
estão entregues o gado, a casa e os cavalos. Livre, cavalgará os tabuleiros e a caatinga,
perseguindo o gado arisco e tresmalhado, ganhará em audácia, autodeterminação,
criatividade, capacidade de improvisação e mando próprio. Na fazenda, é sua a autoridade.
Diferentemente do que ocorre no mundo açucareiro, cheio de feitores, mestres,
contramestres e apontadores, na sociedade pecuária não há uma fiscalização direta sobre o
vaqueiro. Este solidariza-se com os companheiros quando algum “pede campo” na captura
de uma rês desgarrada. Mas, em geral, o vaqueiro só tem a quebrar sua solidão a companhia
do gado.
Da liberdade que desfruta, do arrojo que o trabalho lhe exige, desenvolve-se nele
o sentimento de individualidade e uma certa inclinação para o heroísmo pessoal. Daí
nasce o cantador repentista, o “cavaleiro andante” das vaquejadas, o beato e o cangaceiro.
Ou como apropriadamente anota Câmara Cascudo: “A solidão ensinava-o a povoar de
criações individuais o seu ermo, fazendo a sua viola, indo tomar parte nos bailes vizinhos.”
(CASCUDO 1956, p.9)
Mas a reclusão nos campos isolados da caatinga torna também o vaqueiro um cultor
da tradição. Vassalo e leal amigo de seu patrão, em tudo lhe é fiel. Para que as contas sejam
ajustadas, na “repartição” da boiada, basta sua palavra. No sertão, admite-se o crime por
ciúme ou vingança. A desonestidade, porém, é imperdoável. Da lealdade de um vaqueiro não
se duvida.
O tradicionalismo do vaqueiro e o conservadorismo da sociedade pecuária são assim
descritos por Gustavo Barroso: (O sertanejo) “planta e colhe de tal modo, porque era assim
que seu pai colhia; cria assim, porque desta maneira seu avô criava. Despreza instrumentos
de lavoura, desdenha armas de repetição. Durante séculos, a fisionomia da sociedade
sertaneja não se tem modificado numa só linha em nenhuma de suas atividades, quer morais,
quer físicas, quer psíquicas. O sertanejo é inalterável no seu modo de vestir, de falar, de
plantar, de criar, de viver.” (BARROSO 1956, p. 165)
Esta opinião sobre o conservadorismo da sociedade pecuária, notadamente no que
diz respeito ao período colonial, mas também posteriormente, recebe a concordância
de outros autores consagrados de sua historiografia como Euclydes da Cunha, Câmara
Cascudo e Capistrano de Abreu. Euclydes, inclusive, responsabiliza o “círculo estreito”
da atividade pecuária pelo retardamento do desenvolvimento psíquico do sertanejo. Isto
explicaria, segundo ele, a permanência do vaqueiro “na fase religiosa de um monoteísmo
incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio
e do africano.” (CUNHA 1963, p. 122) Para aquele autor, daí originaram-se os sentimentos e
a fé que animaram os protagonistas da tragédia descrita em “Os Sertões”.
A degradação do meio-ambiente pelas permanentes queimadas a que estava sujeita
a mata nativa, empobrecendo-lhe a flora e conseqüentemente a fauna, tornou sempre mais
difícil a sobrevivência do homem no semi-árido, área por excelência da pecuária. Preso à
terra, sua existência passa a fazer-se em luta aberta com o meio. As secas pouco a pouco
aparecem como calamidades sociais. Daí, na opinião de Gustavo Barroso, “os dois aspectos
do caráter do homem do sertão: a tenacidade na luta, quando o meio o hostiliza e procura
esmagá-lo, o descuido, a indolência e a imprevidência de quem repousa, nos tempos bons.”
(BARROSO 1956, p.167)
Euclydes da Cunha, autor da talvez mais extensa caracterização do sertanejo, o vê
como um homem de personalidade dupla ou pelo menos mutável. Segundo observou, o
sertanejo alterna momentos de máxima quietude com momentos de máxima agitação, a
exemplo da natureza que o cerca.
Para Euclydes da Cunha, o sertanejo aparenta indolência, abatimento, até mesmo uma
humildade deprimente. Vive imerso numa longa apatia, vítima de uma preguiça invencível,
de cócoras, escorado, anda sem aprumo e tem os membros desarticulados. Porém, quando
a ocasião apresenta-se, suas energias adormecidas desencadeiam-se e ele transfigura-se,
empertiga-se, toma aspecto dominador, desassombrado, forte e, como um titã potente, lançase
feito um “centauro bronco”, um acrobata, torna-se um campeador medieval com sua
armadura de couro, perseguindo o boi bravio na caatinga fechada, rompendo o espinheiro
intransponível.
Em casa, longe do campo, é tímido e triste. Sua vida tormentosa, permanentemente
ameaçada pela catástrofe das intempéries, pelos abruptos contrastes entre secas e enchentes,
o faz parecer um “guerreiro antigo exausto da refrega”, “um combatente de batalhas sem
vitórias”, permanentemente temeroso quanto ao futuro. Em sua luta selvagem, é ele “um
condenado à vida”. Sua alma, entretanto, embala-se na “cadência langorosa das modinhas.”
(CUNHA 1963, p. 101)
Gustavo Barroso, em seu livro Terra de Sol, reproduz com outras palavras esta
descrição. Em alguns pontos, vai mais longe. Euclydes da Cunha fala da vestimenta
monótona e feia do sertanejo, dos seus descantes de viola que “lembram e deslembram horas
fatigadas”, intercalados por momentos de sapateado, ao som do pandeiro e do repenicado da
viola. Demorando-se mais na descrição do modo de trajar quase sombrio do sertanejo, diz
Gustavo Barroso: “Veste de couro pardo avermelhado ou de algodões azulados, cinzentossujos,
raiados de escuro, sempre de cores indecisas, tristes, feias, como a vaga cor do chão
que a estiagem calcina. Gosta, nos dias de gala, de uma mancha de cor berrante na roupa
usual: um laço de fita encarnada no chapéu, uma ampla gravata cor-de-rosa vivo”.
Adiante, o autor de Terra de Sol comenta acerca do gosto musical do sertanejo: “A
voz arrastada, doce e queixosa, tem um descanso e um vagar de lamento. Os seus cantos
são melopéias nostálgicas, de ritmo vagaroso que demora no ar. Lá um ou outro baiano
repenicado lembra um laço escarlate na cor-escura dos trajes pela sua disparidade com todas
as outras manifestações musicais...” (BARROSO 1956, p.159)
Mas Gustavo Barroso cuida em atribuir ao sertanejo um outro sentimento não
percebido por Euclydes da Cunha. Trata-se de “um vago, inexplicável desejo de ver novas
terras” que por vezes se apodera do homem do sertão, não apenas como decorrência da
seca, porém mesmo em ocasiões onde se põe solitário a observar o horizonte. Então surge o
que Gustavo Barroso nomeia “a estranha vontade de emigrar que fermenta n’alma de todo
sertanejo.” (BARROSO 1956, p. 159)
A vaquejada (ou festa de apartação) e a feira eram as ocasiões extracotidianas na vida
do vaqueiro. Principalmente a primeira, em que ele era o protagonista principal e vivia seu
momento de glória. Inicialmente, a vaquejada acontecia em função da apartação do gado
(ferra e divisão dos rebanhos), uma vez por ano, de junho a julho. Depois, as vaquejadas
foram realizando-se em separado da útil apartação do gado, em forma de puro jogo,
ostentação de força e destreza de cavaleiros, como nos torneios da Idade Média.
A Desagregação
O apogeu da “civilização do couro” no Nordeste parece ter durado até o início do
século XIX. Martius fala de fazendas opulentas no interior do Piauí e Maranhão (SPIX E
MARTIUS, p.262), às quais poderíamos acrescentar outras tantas no Ceará, ainda no século
XVIII, a exemplo da fazenda dos Feitosas nos Inhamuns. Segundo ele, nas cidades do sertão
havia comércio movimentado, lojas com chitas, artigos de ferro, porcelana e louças de barro,
vinhos, licores e gêneros diversos importados de Portugal. (SPIX E MARTIUS, p. 263)
A partir daí, começaram a surgir sinais que desencadeariam o processo de degeneração
da sociedade pecuária. Na opinião de Manoel Domingos, esta degeneração deu-se de modo
lento e prolongado, estendendo-se até nossos dias. Contribuíram para tal o empobrecimento
progressivo do pasto, resultado das repetidas queimadas; o conseqüente definhamento do
rebanho e o aumento da população, com a introdução nas fazendas do pequeno agricultor.
Para responder ao novo quadro que se desenhava, os fazendeiros passaram a consorciar a
pecuária com outras atividades, como a produção de algodão, a lavoura de subsistência e o
extrativismo vegetal.
Em meados do século XIX, as fazendas de gado haviam diminuído. Já não possuíam
extensões de três léguas, mas meia de frente por uma de fundo, na maioria. Com o algodão
e a lavoura de subsistência, o processo de derrubada da mata acelerou-se. Vieram o cercado
de arame, a cerca divisória, as cancelas, as porteiras de passagem e as mangas, terrenos
cercados para o gado engordar. “O arame deu ao vaqueiro, pela primeira vez, a impressão
dominadora da posse alheia, a imagem do limite.” (CASCUDO 1956, p. XII)
As cidades do litoral cresceram como resultado do comércio animado pela produção
vinda do interior. Agora não eram mais as boiadas que vinham percorrendo o sertão para
serem vendidas “vivas” nas feiras do litoral. Elas endereçavam-se aos portos mais próximos
e, transformadas em charque, eram embarcadas nos navios para os grandes centros urbanos.
Exportava-se ainda algodão e a produção extrativista vegetal do sertão (maniçoba, oiticica,
cera de carnaúba etc.), em troca da intensificação da importação dos mais diversos produtos
(industrializados, na maioria) de procedência européia.
A ligação do sertão com o litoral estreitou-se. Ocorreu, no interior, uma diversificação
dos grupos sociais e uma complexificação das relações entre os diversos segmentos da
sociedade. Só, então, começaram a surgir expressões culturais mais ricas e complexas, como
o beatismo, o cangaceirismo e, mais tarde, as danças dramáticas e a literatura de cordel.
COINCIDÊNCIAS E APROXIMAÇÕES
A Simpatia do Homem pelo Boi
O homem primitivo tem-se como parte de uma natureza onde todos os seres, sejam
animais, vegetais ou minerais, sejam fenômenos naturais, como o vento, a chuva, o rio
etc., são animados, isto é, possuem alma. Nesta visão anímica do mundo, não há diferença
essencial entre o homem e os outros seres, seja de natureza física, intelectual ou moral, já
que todos eles possuem um sopro espiritual que lhes dá vida e torna possível a interação
recíproca.
Assim, é possível ao homem comunicar-se com eles por meio dos mecanismos da
magia simpática que são essencialmente dois: a contiguidade e a similitude. A contiguidade
corresponde à metonímia e é a propriedade de estar junto, de ser diretamente afetado, de o
todo ser atingido pela parte. Em semiótica, na relação do signo com o objeto, corresponde ao
índice.
Quando uma jovem oferece ao noivo, como lembrança, um cacho de seus cabelos,
está lançando mão desse mecanismo. O cacho de cabelos passa a representá-la perante o
noivo. O mesmo se dá quando um índio representa um animal, usando sobre seu corpo uma
pele do mesmo. Também é conhecido, entre os praticantes da magia simpática, o ato de rezar
sobre um pedaço de unha, uma casca de ferida, ou mesmo uma peça íntima do vestuário
de determinada pessoa para atingi-la. Há como que uma transferência de significado, onde
aquela parte mínima da pessoa ou mesmo aquele objeto a ela estreitamente ligado passa a
significá-la, no sentido de representá-la.
É dentro dessa lógica, que o vaqueiro cura o gado pelo rastro, ou seja, reza sobre
as marcas das pegadas que a rês deixa no chão, como se rezasse sobre seu próprio corpo.
Também a publicidade moderna usa abusivamente desse procedimento, quando, por
exemplo, associa determinados produtos à imagem de uma bela mulher (sem nenhuma
relação aparente), fazendo-os aparecer juntos repetidas vezes. Na propaganda política há
o clássico exemplo do “papagaio de pirata”, quando se tenta transferir o prestígio de um
determinado político para um candidato, fazendo-o aparecer seguidamente junto a ele.
A similitude corresponde à metáfora, é o mecanismo da analogia, da imitação. Em
semiótica, na relação entre o signo e o objeto, corresponde ao ícone. É o procedimento por
excelência da arte (embora ela lance mão freqüentemente da contiguidade). Quando o índio
procurando comunicar-se com a chuva produz sons que se assemelham aos seus, usando um
“pau de chuva” (um talo de taquara ou bambu ocado, repleto de pequenas sementes no seu
interior), está lançando mão da similitude. Do mesmo modo, quando um bailarino, com seus
movimentos, busca imitar o vento, está tentando tornar-se semelhante a ele.
Os índios brasileiros e mesmo em boa medida os africanos que aqui aportaram como
escravos viviam esse mundo anímico, em que os homens mantinham laços simpáticos com
a natureza, especialmente com os animais. Gilberto Freyre vê uma “certa fraternidade”, um
“certo lirismo” nas relações do homem com o animal. Cita Koster que “encontrou entre os
jibaro o mito de ter havido época em que os animais falavam e agiam do mesmo modo que
os homens.” (FREYRE 1978, pp. 98/99)
Aos ameríndios, os animais pareciam seres a eles em tudo semelhantes, familiares e
parte de suas vidas, “companheiros de afeição e brinquedo e não bestas para o trabalho”,
segundo Gilberto Freyre. Aves amansadas serviam de bonecas para os curumins. As
representações ameríndias freqüentemente tomam forma animal. Seus contos fingem vozes
de animais, suas danças imitam seus movimentos, seus objetos repetem-lhes as formas e até
suas criações fantásticas, suas máscaras e totens, reproduzem, em parte ou no todo, animais
existentes ou imaginários.
Gilberto Freyre lembra que “são muitas as histórias, de sabor tão brasileiro, de
casamento de gente com animais, de compadrismo ou amor entre homens e bichos”. E
faz ligações destas histórias com costumes aparentemente extravagantes do homem rural,
como “uma atitude de tolerância, quando não de nenhuma repugnância, pela união sexual
do homem com a besta; atitude generalizadíssima entre os meninos brasileiros do interior.”
(FREYRE 1978, p. 140)
No sertão pecuário, de população rarefeita e comunicações difíceis, muitas vezes,
o homem tem nos animais seus companheiros mais constantes, entre eles, o cavalo, o
cachorro e, especialmente, o boi. Campeando pela caatinga, cuidando no curral ou tangendo
nas longas travessias, o boi é a companhia inseparável do vaqueiro. Tal é sua intimidade
com esse animal, que o vaqueiro conhece cada rês pelo nome, pelas cores, pelos sinais
particulares, pelas “marcas”, pelo barulho do chocalho, quando não pelo rastro.
As “marcas”, desenhos simbólicos apostos com ferro em brasa no lombo, e cortes na
orelha, identificando à propriedade a qual pertence a rês, o vaqueiro conhece não apenas as
de seu rebanho, mas as de todos aqueles da vizinhança e até de fazendas bem distantes. É
capaz, ainda, de descrever a árvore genealógica de cada rês, de conhecer-lhe os costumes
(onde bebe, onde pasta), de saber-lhe as doenças e mazelas (qual delas tem feridas, bicheiras
ou anda envenenada com tingui).
Nas secas, quando o destino do vaqueiro e da boiada parece unir-se ainda mais e a
sobrevivência do gado faz-se a mercê das iniciativas do homem, a relação entre eles parece
humanizar-se, especialmente. “O sofrimento de ver a gadaria morrer, como el-rei dom
Sebastião, devagar, despedindo-se com os olhos desesperados de toda a paisagem cruel. A
luta para erguer as reses caídas. Queimar o cardeiro, o xiquexique, para eliminar a defesa
espinhenta e dar ao gado uns vinte dias de vida lenta.” (CASCUDO 1956, pp. XVI/XVII)
Tudo isso aproxima homem e bicho.
Gustavo Barroso descreve o trabalho paciente e fatigante do vaqueiro em levantar
o gado abatido pelos padecimentos da seca e sustentá-lo na “rede”, uma rústica armação
de madeira, de modo a que não se entregue de todo ao desânimo. Descreve ainda o labor
penoso de cavar e manter a cacimba do gado e os demais cuidados insanos para prover-lhe
de alimento e água. O vaqueiro sofre vendo o padecimento do gado que a ele em tudo parece
semelhante ao seu. “O gado passa com lentidão, rente à cerca do açude: põe a bronca cabeça
por cima, fita, fita cobiçosamente aquelas mesquinhas nódoas verdes, e de triste e esfomeado
urra que faz pena.” (BARROSO 1956, p. 31)
A empatia que se estabelece entre homem e boi parece cobrir-se de uma emoção que
contagia a ambos, durante as caminhadas através das distâncias que ligam os currais às feiras
onde o gado vai ser vendido. O prenúncio da separação e do abate posterior dos rebanhos
envolve a travessia de sentimentalidades. “A toada plangente do aboiar, dizem os vaqueiros,
tem a propriedade de “humanizar” o gado, tornando-o triste e cismarento. Às vezes, até lhe
escorrem dos grandes olhos baixos grossas lágrimas vagarosas.” (BARROSO 1956, p. 51)
Mesmo quando persegue o gado na caatinga, em temerária disparada, seja na simples
lida diária, seja nas festas de apartação ou vaquejada, a empatia entre vaqueiro e boi não é
interrompida. Assim é que o caçador vê-se na figura da caça, o perseguidor na do perseguido,
pois ele tem no boi, a um só tempo, o adversário e o protegido. Ainda quando o boi é
para ele um desafiante perigoso, sua admiração não cessa. Ao contrário, parece crescer.
Como o antropófago, a tal ponto identifica-se com o adversário valioso, que cobiça as suas
qualidades.
É o que fica evidente no romanceiro popular dedicado aos barbatões, bois bravos
desgarrados, não domesticados, sem ferro ou sinal, sem dono, difíceis de serem dominados.
Ao vaqueiro, atrai o desafio de submeter tais reses bravias, não pela simples posse do animal,
mas pela glória que a façanha proporciona, e “conseguindo pegá-los, não os tomam para si,
ferram-nos para o santo padroeiro da freguesia.” (BARROSO 1956, p.44)
Para contar a vida, paixão e morte dos barbatões, cantadores de viola e poetas de
bancada desenvolveram todo um ciclo de romances muito apreciados pelos sertanejos.
Nas palavras de Câmara Cascudo, são “memórias dos animais famosos pela resistência em
escapar aos vaqueiros melhores, atravessar as secas, ocultos, famintos e livres, reaparecendo
com o halo de invencibilidade que os ilumina de uma glória humilde e teimosa na memória
coletiva. O cantador identifica-se com o seu modelo. Vive suas façanhas, defendendose,
acusando, zombando da perseguição, despedindo-se liricamente das malhadas onde
descansou nas horas ardentes do meio-dia, das bebidas fiéis e escondidas, poços misteriosos,
recantos saudosos. Descreve sua morte, citando seu matador.” (CASCUDO 1956, p. 29)
O romance de boi barbatão de registro mais antigo (1792) é o famoso Rabicho da
Geralda, onde o poeta fala por meio do boi, ou melhor, é o boi que narra. Diz assim:
“Eu era um boi liso, rabicho,
Boi de fama conhecido.
Minha senhora Geralda
já me tinha por perdido”.
Há ainda o Boi do Victor que assim se apresenta:
“Digo eu, Boi do Victor,
Nesta terra conhecido.
A grandeza do meu nome
Neste mundo tem corrido”.
O Boi Pintadinho que dá nome a um Reisado de Camocim:
“Eu sou o Boi Pintadinho,
Boi corredor de fama,
Que tanto corro no duro
Como na Várzea de lama”.
Há uma série infindável de bois, vacas e romances famosos como o Boi Espácio, a
Vaca do Burel, o A-Bê-Cê do Boi de Prata, o Boi Liso, o Boi Adão, o Boi Moleque, o Boi
Misterioso, o Boi de Quixelô, a Décima do Bico Branco, a Décima do Boi Guerreiro, a Vaca
Melindrosa, o Boi Barroso, o Boi Amarelo, o Boi Preto Mascarado, o A-Bê-Cê do Estrela,
a História do Boi Mandingueiro e do Cavalo Misterioso, e o Boi Tungão, do cearense Pedro
Boca Rica.
No Nordeste açucareiro, a presença do boi também foi relevante, embora a vida
econômica não girasse em torno dele, como na pecuária. À primeira vista, nos canaviais não
cabia o boi. Sua presença, estragando a plantação, foi causa de muita briga entre senhores
de engenho e lavradores, desde os primórdios da colonização. Mas o boi, além de ser fonte
indispensável e principal de alimentos (carne, leite e derivados) para a população litorânea,
fornecia ainda couro e sebo e era utilizado nos engenhos, tanto no transporte de cana, quanto
como força motriz das moendas. Grandes boiadas chegavam quase diariamente às feiras
situadas na orla marítima da zona da mata, onde eram comercializadas.
Pelo menos para os escravos, o engenho movido a boi parecia mais seguro. Os
engenhos maiores, movidos a água, bem como as moendas movimentadas por cavalos,
freqüentemente amputavam os braços das escravas que alimentavam de cana as moendas,
quando não as matavam: o de água, porque só com alguma demora podia ser interrompido
em sua movimentação, quando a moenda “engolia” os dedos de alguém; o movido a
cavalo porque, aos gritos da escrava acidentada, os cavalos espantavam-se e imprimiam
maior velocidade à moenda. Os bois, ao contrário, frente à ordem de parar, estancavam
imediatamente, permitindo minimizar o acidente. (SCHWARTZ 1988, p. 131) Daí a
preferência dos escravos em trabalhar nos engenhos com os bois.
Cada uma dessas moendas era movimentada por parelhas de dois ou quatro bois
ligados à extremidade de cada uma das duas ou três barras que moviam os tambores. Devido
ao revezamento necessário entre as parelhas de bois para dar descanso aos animais, estima-se
que eram precisos 60 deles em cada engenho. Acrescente-se a esses, os bois indispensáveis
ao transporte da cana, os bois na engorda para corte e as vacas leiteiras, e chega-se ao
número de mais de uma centena de reses, convivendo com os trabalhadores nos engenhos,
em curral cercado e pasto cultivado.
Era o boi, portanto, uma figura familiar ao universo açucareiro. Schwartz conta que
um senhor de engenho da Bahia queixava-se dos seus escravos dizendo que, quando os
repreendia, eles “com diligência maior apontando para o ventre dizem da “barriga puxe o
boi”, dando a entender que eu lhes não dou sustento.” (SCHWARTZ 1988, p. 142) Mesmo na
conversa dos filhos dos senhores de engenho, os assuntos mais costumeiros relacionavam-se
a animais, ao cavalo, ao cão e, particularmente, ao boi.
A identificação do negro com o boi nos engenhos tinha motivações várias. Tanto o boi
que estragava o canavial era motivo de briga entre lavradores e senhores de engenho, como
o escravo que entrava no canavial para chupar cana. Em seu livro “Cultura e Opulência no
Brasil”, Antonil aconselha senhores de engenho e feitores que, como dão descanso aos bois e
cavalos, dêem também aos escravos.
Particularmente com os bois, Antonil parece ter estado bem preocupado,
recomendando bom tratamento para os “que vêm do sertão cansados e, maltratados no
caminho, para bem não se hão de pôr no carro, senão depois de estarem pelo menos ano e
meio no pasto novo, e de se acostumarem pouco a pouco ao trabalho mais leve começando
pelo tempo do verão, e não no do inverno; de outra sorte, sucederá ver o que se viu em um
destes anos passados, em que morreram, só em um engenho, duzentos e onze bois, parte nas
lamas, parte na moenda e parte no pasto”. (ANTONIL 1967, pp. 181/182)
Apoiando-se em evidências retiradas do auto do Bumba-Meu-Boi, Gilberto Freyre
(FREYRE 1951) percebe a proximidade entre o negro e o boi, em contraste com a distância
do negro em relação ao cavalo. Diz ele: “Há através do drama uma evidente identificação
do boi com o negro; o negro se sente no boi; não se sente no cavalo. No cavalo ele sente
o animal meio maricas do senhor, o animal cheio de laços de fita e mesureiro; o animal
“abaianado”, isto é, urbanizado, civilizado, capaz de graças e mesuras de que é incapaz o
cavalo rústico e não apenas o boi: “Cavalo-marinho/maricas meu bem” etc. Abelardo Duarte,
citando Freyre, afirma que “para o negro a glorificação do boi, ‘seu companheiro de trabalho,
quase seu irmão’ passou a ser expressão de muita mágoa recalcada” nesse “poderoso drama
de expressão e quase de revolta popular”, que se chama o Bumba-Meu-Boi.” (DUARTE
1974, p. 260)
Confluência de Etnias
No universo da cultura popular e particularmente das manifestações artísticas do
Nordeste Colonial, não é tarefa fácil distinguir a procedência étnica de seus diversos
elementos, tal o entrelaçamento existente entre eles. Isso porque, além do cruzamento entre
traços culturais europeus, negro-africanos e ameríndios realizados no Brasil, há de se levar
em conta a composição complexa de cada uma dessas culturas.
Os contatos culturais dos portugueses com a África, por exemplo, são anteriores
ao descobrimento do Brasil e, em Portugal, continuaram a ocorrer durante todo o período
colonial brasileiro. Cabe observar ainda as presenças árabe, moura e berbere na formação
cultural portuguesa e até de minorias, como os judeus. Os negros africanos que chegaram
ao Brasil procediam de nações com culturas bastante diferenciadas, misturando-se em
entrepostos comerciais, especialmente nas ilhas atlânticas da costa africana. Do mesmo
modo, os ameríndios estavam divididos em diferentes nações, com culturas em diferentes
estágios civilizatórios, embora em gradações menos díspares que os africanos.
À época dos Descobrimentos e da colonização do Brasil, o português era um dos
povos mais cosmopolitas da Europa. Muito mais que uma nação rural, de lavradores,
Portugal era um país comercial por excelência, aberto ao exterior. Seus reis eram vistos
amiudadamente nos armazéns da beira do cais e quase nunca internados em feudos ou
marcos campestres. O gosto pelo desconhecido e pelas viagens explica em parte porque,
chegados ao Brasil, os portugueses procuraram expandir-se, abrir sempre novos horizontes,
em vez de condensarem-se em núcleo populacionais compactos.
Quando aqui chegou, o português já era mestiço. Combinava uma aristocracia de
origem celta, com uma plebe miscigenada com sangue mouro e berbere, de onde originou-se
o chamado moçárabe. Oscilava entre duas culturas: uma européia e católica, outra africana e
maometana. E em meio ao seu povo não era desprezível a presença semita.
Entre os portugueses que vieram para o Brasil, ainda estava presente o ódio de guerra
aos mouros. Porém, no mouro, ele não combatia o estrangeiro, mas o infiel, o herético.
Para o português, o importante não era ser da sua mesma raça ou nação, mas de sua mesma
religião.
O cristianismo que o português trouxe ao Brasil já ele era rico em resíduos anímicos,
míticos e fálicos das religiões pagãs. Era um cristianismo bem terreno, com devotos gozando
da mais estreita intimidade de santos e anjos, “bois entrando pelas igrejas para ser benzidos
pelos padres”, “mulheres estéreis indo esfregar-se, de saia levantada, nas pernas de São
Gonçalo”. Acrescente-se a isto o fato de que a maioria dos portugueses degredados para
o Brasil o terem sido por crimes religiosos (acusação de heresia, feitiçaria etc.) e sexuais
(desregramentos para a época, que incluíam até o costume de abraçar e beijar mulheres em
público).
Some-se, ainda, o zelo em seduzir os índios que fazia com que os padres apelassem
para expedientes os mais extravagantes. E tem-se a religião dos brasileiros no período
colonial. Observem-se bem os brasileiros em geral e não apenas das classes populares. (Só
posteriormente a elite retirou-se da religião popular, diferenciando-se em seus hábitos e
práticas).
Algumas instituições religiosas, como as irmandades e confrarias, que floresceram
no Brasil Colônia e também no período seguinte da nossa história, incluindo até escravos,
já eram comuns em Portugal. Nas cidades portuguesas, os oficiais artesãos de cada ofício
concentravam-se por bairros. Cada profissão possuía seu santo e sua bandeira, de onde
derivaram os sindicatos e, posteriormente, as irmandades e confrarias religiosas.
A presença de traços míticos-anímicos e de elementos mágicos predominantes nas
culturas negras e indígenas aparece, portanto, também entre os portugueses, provocando
aproximações e até coincidências. Assim acontece, por exemplo, com o mito da mouraencantada,
de origem moçárabe. Em contraposição à moura-torta, mulher reclusa e
inabordável, resultado do ciúme das branco-européias, a moura-encantada aparece como uma
mulher morena, de olhos pretos e vestes encarnadas, penteando os longos e lisos cabelos
ou tomando banho nos rios, disponível em sua sensualidade. Ora, essa mesma figura, os
portugueses encontraram aqui, nas jovens índias de cabelos soltos, nuas e oferecidas aos
prazeres do sexo. (FREYRE 1978, p. 9)
Até mesmo o trabalho de imposição cultural desenvolvido pela Igreja Católica teve
que fazer concessões ao paganismo anímico, tanto para atrair negros e índios, como para
contemplar também tendências da cultura popular portuguesa. Apesar de determinados em
substituir nas manifestações da cultura autóctone todos os traços de sensualidade e violência,
os jesuítas não puderam evitar que, sob aparência católica, persistissem as tendências
totêmicas da cultura brasileira. Em certa medida, o colonizador era aculturado pelo
colonizado. Assim é que a música, a poesia e o teatro catequéticos dos jesuítas e de outras
companhias católicas, acabavam por incorporar o gosto indígena (particularmente através
dos curumins) pelas práticas mágicas e anímicas.
Muitas vezes, o gosto do português de origem plebéia, criado em uma cultura oral,
recém-saída da Idade Média, aproximava-se do gosto das demais etnias formadoras do nosso
povo. Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, anota que “o português tinha gosto pelas
anedotas de fundo erótico, a “primorosa aptidão para imitar”, uma “imaginação que o leva a
exagerar até a mentira”, e “um gosto de arrebicar e luzir.” (FREYRE 1978, p.7)
De procedência européia era o costume, forte ainda no século XVIII, de se cantar,
dançar, representar e até namorar no interior das igrejas. Em 1726, representavam-se
comédias de amor em louvor a São Gonçalo, dentro das igrejas nordestinas, de maneira tão
habitual como se dança ao mesmo santo, ainda hoje, nas igrejas e capelas do Cariri cearense.
A exemplo da Congada, folguedo quase puramente africano, presente desde os
primórdios de nossa colonização, as Cavalhadas e Mouramas remontam às tradições ibéricas
do século XVI e eram reproduzidas no Brasil, quase ao modo original, durante todo o
período da Colônia. Consistiam num desfile de guerreiros mouros e cristãos, simulações de
batalhas e a corrida da “argolinha”, imitação dos torneios medievais.
Em torno do mesmo tema, mas tomando forma diversa, organizavam-se também
os Encamisados, encenações assim descritas por Euclydes da Cunha: “cópia das vetustas
quadras dos fossados ou arrancadas noturnas, na Península, contra os árabes (...) feita a luz
de lanternas e archotes, com seus longos cortejos de homens a pé, vestidos de branco, ou à
maneira de muçulmanos, e outros a cavalo em animais estranhamente ajaezados, deslizando
rápidos, em escaramuças e simulados recontros”. (CUNHA 1963, p. 114)
Outra manifestação cultural originalmente de contornos nitidamente europeus era
o Carnaval. Martius foi encontrá-lo no ano de 1819, em Vila de Cachoeira, na Bahia,
semelhante aos carnavais portugueses, com o nome de “entrudo”. Observou que das janelas
as senhoras lançavam bolas de cera cheias de água uma nas outras. Cena praticamente
idêntica é descrita por Peter Burke, no livro Cultura Popular na Idade Moderna, relativa aos
carnavais europeus.
As romarias parecem também ser bem antigas. Em Monte Santo, Bahia, elas já
existiam desde o início do século XIX, e o chamado fenômeno de Pedra Bonita, envolvendo
o fanatismo religioso, data de 1837.
Mais interessante para este estudo, é uma Festa da Rainha, presenciada por Martius,
nos sertões do Rio São Francisco. Mostra que o fascínio pela realeza, incluindo o costume de
coroarem a si próprios reis, não era restrito aos negros. Conta Martius que “uma fazendeira
rica dos arredores tinha feito a Nossa Senhora a promessa de uma procissão (...) A dama,
vestida de gala, conduzia o séquito até a igreja, para assistirmos a missa, e de lá voltamos
todos à casa dela, onde estava posta uma grande mesa com as mais finas iguarias (...) O mais
singular é que (...) a promotora da festa expiatória toma o soberbo título de “rainha”, nomeia
seus amigos mais íntimos e a gente do séquito, formando aparatosa corte, e, como
recordação da festa de sua humildade, distribui medalhinhas de ouro e prata. Essa Festa da
Rainha, ex- voto, dá motivo para grandes despesas, embora os hóspedes sejam convidados
(...) para um simples copo-d’água.” (SPIX E MARTIUS, p. 261)
A contribuição ameríndia na constituição da cultura popular no Nordeste Colonial
não pode ser desprezada. Basta citar que, pelo menos nos séculos iniciais, o tupi-guarani era
a língua mais usual entre as camadas populares. Nos parâmetros da população branca, os
índios dividiam-se entre tupis (índios civilizados, habitantes do litoral), que viviam aldeados
por irmandades religiosas ou trabalhando nas fazendas dos brancos, e tapuias, nome genérico
dado às inúmeras nações e tribos bravias que resistiam no interior. Entre esses, estavam os
Cariri, originalmente do litoral, de onde foram expulsos pelos brancos, indo refugiaremse
no território que fica entre o rio São Francisco e a serra da Ibiapaba. Ora, esse território
correspondia em sua totalidade à parte do sertão a ser povoada pela pecuária. Assim é
que apesar da destemida resistência dos Cariri, eles chegaram no início do século XVIII
completamente pacificados. (ABREU 1963, p. 261)
O universo cultural indígena foi destroçado a partir da desagregação do espaço em
que os índios viviam, tanto para serem aldeados pelas irmandades religiosas, quanto para
serem agregados às fazendas. Observa Schwartz que “os padrões das tabas e das habitações
eram representações do cosmos social e religioso. Alterá-los implicava alterar a segurança do
universo tradicional e desorientar os indígenas, no sentido literal da palavra.” (SCHWARTZ
1988, p.49)
Ainda assim, ficou em nossa arte popular tradicional a marca de suas danças em
forma de cirandas, com gaita, flauta, castanhola e maracá, durante as quais os índios usavam
máscaras demoníacas ou de animais. Do mesmo modo, a influência de nossas avós índias
ficou no costume tão brasileiro do banho repetido e prolongado, do pente sempre a mão, do
espelhinho, do cabelo brilhante de loção ou untado com óleo de coco.
Coincide com os costumes indígenas o fato de que a participação da mulher é vedada
em muitos dos nossos folguedos tradicionais. Numa das viagens que fez pelo interior do
Nordeste, na segunda década do século XIX, Martius presenciou apresentações públicas de
grupos indígenas nas ruas de Caxias. Os índios vinham de suas tabas apresentar-se na cidade.
Os homens cantavam, dançavam e tocavam, exibindo-se para o público. Já às mulheres
reservava-se a função de receber os presentes que a platéia oferecia.
Entre os índios do sertão, as mulheres faziam o trabalho doméstico e cuidavam dos
filhos. E, a exemplo do que se observa nos grupos de cangaceiros, já naquele século, era
fenômeno corrente entre os índios as mulheres enfeitarem-se menos que os homens.
A presença do negro fazia-se sentir predominantemente no litoral, mas ele não estava
de todo ausente no interior. Em suas andanças pelo Nordeste, Martius não poucas vezes
teve oportunidade de deparar com folguedos celebrados por negros. Certa vez, presenciou
o funeral de um negro da Guiné no alto sertão, onde o corpo do morto estava costurado
num lençol de algodão como as múmias do Egito. A cerimônia, chamada de “Entame”
pelos negros, segundo Martius, é celebrada de portas fechadas na Guiné e freqüentemente
degenera na mais licenciosa extravagância. (SPIX E MARTIUS, p. 112)
De outra feita, no sertão entre Pernambuco e Piauí, Martius assistiu a uma festa
de 40 negros jovens, comprados na Bahia por um traficante e levados para o sertão por
ele. Realizada ao ar livre, na festa, os negros entregavam-se a uma dança licenciosa (para
Martius), acompanhada de cantos, gritos, sibilos e assobios. (SPIX E MARTIUS, p. 100)
Embora as danças eróticas fossem mais freqüentes entre os negros que entre brancos
e índios, Gilberto Freyre vê nisto um sinal de mais fraca sexualidade, já que apelavam mais
costumeiramente para a dança, como excitante.
Na sociedade açucareira, foi onde apareceram inicialmente os folguedos oriundos
tanto de Portugal quanto da África, inclusive em suas formas mais complexas e coletivas,
como no caso das Cavalhadas e das Congadas. No sertão, só com muito vagar, estas
manifestações foram penetrando. Porém, uma vez instaladas, ali permaneceram por
mais tempo, adaptando-se lentamente às novas circunstâncias, até tomarem uma feição
caracteristicamente brasileira.
Como tudo no sertão colonial, também as manifestações artísticas giravam em torno
da atividade pecuária. Apareceram primeiro no canto dos tangedores e passadores de gado,
durante as longas travessias desde o sertão ao litoral onde as reses seriam comercializadas.
O canto servia para guiar os companheiros e a boiada. Também, parte do labor com o gado
era a toada dolente e monossilábica do vaqueiro, na lida diária, tangendo as reses até o
curral para a contagem, a engorda ou a ferra.
O termo “aboiar”, porém, só aparece em documentos no século XIX. Câmara Cascudo
acredita ser ele um termo brasileiro, nascido aqui e só depois levado a Portugal nesta
acepção, pois lá, aboiar significava “deitar por água abaixo.” (CASCUDO 1956, p. 26)
Ainda feita em função da lida com o gado é a pega do boi de onde originou-se a
vaquejada. Até quase o final do século passado, a derrubada do boi para a ferra ou outra
qualquer finalidade era feita utilizando-se a aguilhada ou ferrão, lança de madeira com a
extremidade de ferro, lançada pelo vaqueiro contra a testa do animal, de modo a deitálo
por terra. Segundo ainda Câmara Cascudo, a derrubada da rês pela cauda, hoje de uso
generalizado tanto na lida diária quanto na vaquejada esportiva, só apareceu na última
metade do século passado. (CASCUDO 1956, p. 16)
Também como parte do trabalho com o gado, surgiram as primeiras máscaras de
couro, com as quais eram “encaretadas” as reses mais bravias, de modo a que não se
desviassem do rumo conduzido pelo vaqueiro. E até mesmo as primeiras manifestações
plásticas nas fazendas de gado apareceram em função do boi, na forma dos desenhos das
marcas de ferro com que se identificava o rebanho de cada propriedade.
De igual maneira, as brincadeiras infantis eram condicionadas pelo ambiente do gado.
Imitava-se o vaqueiro, o fazendeiro e, entre os animais, o boi principalmente. O artesanato de
couro fazia-se particularmente presente. Sobretudo no universo das narrativas orais, o boi e o
vaqueiro eram as principais personagens, a exemplo do que acontece na estória de Quirino, o
vaqueiro do Rei, e do Boi Leição.
Até mesmo no cancioneiro sertanejo, há quem veja relação com o trabalho da
pecuária. Para Euclydes da Cunha, por exemplo, as toadas tristes e descantes de viola, eram
formas de lembrar e deslembrar as horas fatigantes da lida com o boi. Gustavo Barroso vê a
música do sertão “lânguida e dolente, quase sem variações, tendo a tristeza das melopéias
africanas e a rusticidade dos instrumentos indígenas.” (BARROSO 1956, p. 197)
O instrumento musical por excelência era a viola de seis cordas metálicas, mas havia
também a rabeca e as flautas de taboca. Só mais tarde chegou o acordeom e o violão. A
literatura compunha-se das narrativas tradicionais originárias da Europa Medieval, incluindose
entre as mais famosas Donzela Teodora, Princesa Magalona, Roberto do Diabo, Imperatriz
Porcina, João de Calais e a História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França. No mais,
era o Lunário Perpétuo, a Bíblia...
Os divertimentos, além das festas de apartação e aniversários, davam-se em
casamentos, enterros de anjinhos e outras ocasiões de celebração religiosa. Fora disto eram
os sambas (o sapateado sob o pinicado do pandeiro e da viola), o cateretê, as salvas de
roqueiras e os desafios de viola.
A conformação do meio, incluindo elementos como a monotonia da paisagem, as
cores e as formas do gado (tão observado pelos vaqueiros) e o excesso de luz, parece ter
influência decisiva na percepção estética do sertanejo, particularmente no que diz respeito às
cores. Ele prefere cores neutras e sem brilho. Seu azul, de tão desmaiado, aproxima-se mais
do cinzento. É ele que está nos mantos das beatas e de Nossa Senhora, nas festas religiosas.
A veste do vaqueiro assemelha-se a uma armadura sem cintilações. É fosca e poenta.
Não rebrilha ao sol. As mulheres preferem as cores sóbrias, no máximo uma chita estampada
de flores. Aqui e acolá, um vermelho, contrastando com a monotonia costumeira das vestes.
O gosto pelas cores vivas e pelo brilho é do litoral.
De comum, a preferência pelo vermelho, ou encarnado, como chama-se no interior do
Ceará. Gilberto Freyre observa que nas etnias formadoras da cultura brasileira, o vermelho
era cor da proteção e da profilaxia. Para os portugueses, o encarnado era a cor do amor, do
desejo e do casamento. Entre os negros, encontra-se também esta preferência pelo vermelho:
“Nos nossos maracatus e reisados, o rei de Congo ou a rainha aparece sempre de manto
vermelho; e encarnados são sempre os estandartes, com cabeças de animais ou ofícios
pintados ou bordados a ouro.” (FREYRE 1978, p. 106)
Do mesmo modo, o vermelho é cor predileta entre os índios, como cor profilática,
tonificante, erótica e com poderes mágicos sobre a caça. Daí a crença muito difundida de que
o vermelho exerce poder atrativo sobre os animais, particularmente sobre o boi.
Quando e Onde Surgiram o Bumba-Meu-Boi e o Reisado
Perguntar pelo surgimento do Reisado não é muito diferente de perguntar pelo
surgimento do Bumba-meu-boi. Na verdade, se não nasceram juntos (há a hipótese de
o Bumba-meu-boi ter sido na origem um reisado), logo somaram-se para formar um só
folguedo, no qual o Boi é o quadro principal de uma série de cantos dançados (bailados) e
dramatizações (entremezes) executadas por um grupo de personagens-brincantes.
Originalmente denominavam-se Reisados pequenos grupos de brincantes que, à
semelhança dos Ranchos de Animais, reuniam-se em torno de um personagem (um animal,
no caso dos ranchos), para apresentar espetáculos cantados, dançados e dramatizados,
constituídos de um único episódio. Silvio Romero, em Cantos Populares do Brasil, cita
vários Reisados como se fossem entremezes encenados isoladamente, entre eles o “Reisado
da Borboleta, do Maracujá e do Pica-pau”, o “Reisado do João do Vale”, o “Reisado do
Antônio Geraldo” (que ainda hoje existe no Ceará e trata da repartição do Boi), o “Reisado
do Cavalo-marinho e do Bumba-meu-boi”.
Este último, o Bumba-meu-boi, segundo Sílvio Romero, teria aglutinado vários outros
Reisados e constituído-se num espetáculo variado e de longa duração, reunindo Reisados,
que antes se apresentavam separadamente e que se revezavam com bailados (números
dançados e cantados) em suas apresentações.
Para Théo Brandão, o Bumba-meu-boi é usado em dois sentidos, um lato e um restrito.
“No primeiro, designa a parte dramática mais importante e obrigatória de todos os Reisados.
No último, é sinônimo da forma aglutinada de Reisados em que se encontram as danças e
os cantos isolados do coro de cantantes.” (BRANDÃO 1962, p. 5) Para ele, a diferença entre
Reisado e Bumba-meu-boi no sentido restrito estaria em que o primeiro incluiria, além
dos entremezes, os bailados, ou seja, as danças do que ele chama de coro de cantadeiras,
cantantes ou cantadoras.
Mais adiante, Théo Brandão explica o que sejam esses coros de cantantes. Diz ele, “Os
‘cantantes’, em número e indumentária variáveis, fazem o coro por ocasião das cenas dos
‘entremeios’ ou ‘bichos’; cantam (quando há tais cantos) as louvações e abrições de porta;
dançam, mas sem cantar, no intervalo dos ‘entremeios’, em algumas regiões; e recebem
nomes variados: Galantes, Damas (homens vestidos de mulher), Soldados, Cantadeiras ou
Tiradeiras de Boi, Cantadeiras ou Tocadores de viola etc.” (BRANDÃO 1962, p. 7)
Presentemente, no Ceará, o povo usa comumente o termo Reisado para designar o
espetáculo que reúne inúmeros entremezes e peças, isto é dramatizações (antigos Reisados
e Ranchos de Animais) e bailados, cabendo destaque para o entremez do Boi que muitas
vezes aparece fechando a função, imediatamente antes das canções de despedida. Entre os
brincantes, aparece invariavelmente um grupo de cantores-dançadores (Damas, Galantes,
Caboclos, Guerreiros etc.), além de uma orquestra (pequeno grupo de tocadores). Em alguns
locais, os Reisados podem também ser chamados de Bois (como acontece em Granja), ou
aparecer somente com a denominação de Boi, no singular (como acontece em Fortaleza e
Sobral). O fato é que faltava aos diversos Reisados, bailados e ranchos de animais, uma
estrutura de personagens-brincantes que lhes dessem a unidade aglutinadora capaz de
transformar sua junção em um espetáculo único. E essa estrutura apareceu em formas
diferentes, dando origem aos diferentes tipos de Reisados que conhecemos.
Quando tomou emprestado a corte de reis negros da Congada para estruturar a
seqüência de seus números, o Reisado apareceu sob a forma de Reis de Congo. Quando
estruturou-se como uma família sertaneja, tomou o nome de Reis de Couro ou Reis de
Careta. No caso de ter como base a realização de um baile medieval, com suas contradanças
de engenhosas coreografias, o Reisado denominou-se Reis de Bailes.
Existem, ainda, os casos em que uma estrutura não fica bem definida, tendo o Reisado
tomado emprestado personagens e figuras do Pastoril e dos Dramas. Isso ocorre no Ceará,
especialmente em Fortaleza, onde o Reisado chama-se simplesmente Boi, ou seja, Boi Tirol,
Boi Ideal, Boi Brasileiro etc.
Há outros folguedos que, de certo modo assemelham-se com o Reisado, pelo
caráter aglutinador que igualmente têm, unindo cantos-dançados e entremezes (pequenas
encenações). São os Dramas que se diferenciam do Reisado por não apresentarem quadros
de animais, nem uma estrutura de personagens-brincantes constante e o Guerreiro que soma
figuras e personagens do Pastoril e do Caboclinho aos elementos aglutinados pelo Reisado,
pelo menos na forma como aparece no Ceará.
Parece que o surgimento desta diversificação de folguedos tem algo a ver com a lógica
de combinação do pensamento mítico (que os antropólogos costumam chamar também
de lógica da “bricolage”, onde diversos elementos da tradição oral são combinados em
formas diferentes e somam-se a elementos contemporâneos para gerar novos folguedos.
Por esse meio, chegou-se ao Reisado, tendo como elementos-chave para seu aparecimento,
pelo menos nas formas como seb consagrou, a sedimentação em estruturas dramáticas e a
presença do auto do Bumba-meu-boi como seu entremez principal.
Mais adiante, voltaremos a este tema, cabendo estas observações no momento apenas
para destacar a relação do Reisado com o Bumba-Meu-Boi e o possível surgimento comum
dos dois. Dito isto, verifique-se o que diz a bibliografia acerca do aparecimento do Bumbameu-
boi.
A época do surgimento do Bumba-meu-boi não foi ainda identificada com precisão.
Pereira da Costa avalia seja entre o final do século XVII e começos do século seguinte o
período provável em que isto aconteceu. Baseia-se na quadra: “O meu boi morreu/Que será
de mim?/Manda buscar outro/Lá no Piauí”, para dizer que ele certamente surgiu após a
abertura do comércio de gado entre Pernambuco e Piauí. Cita, ainda, outra quadra (“Cavalo
marinho/Dança bem baiano/Bem parece ser/Um pernambucano”), para concluir seja sua
possível origem de Pernambuco.
O primeiro registro conhecido do folguedo data de 11 de janeiro de 1840 e foi feito
pelo padre Miguel do Sacramento Lopes Gama no seu Carapuceiro. O autor descreve a
ocorrência do Bumba-meu-boi em Pernambuco, mas não precisa a época de seu surgimento.
Diz apenas que o folguedo é de alguns ou muitos anos.
Gustavo Barroso, em Ao Som da Viola, descreve o Boi Surubi, uma versão cearense
do Bumba-meu-boi, como auto do período Colonial, possivelmente do século XVIII.
Mas chega a esta conclusão por suposição, a partir de certos versos, referências e alusões.
Gilberto Freyre fala de Bumbas-meu-boi de engenhos já no tempo do Império e na época
Colonial. (FREYRE 1978, 417) Mas Câmara Cascudo observa que “Henry Koster, tão fiel
no seu registro dos divertimentos populares do seu tempo em Pernambuco, não menciona o
“bumba-meu-boi” entre 1810-1820. (CASCUDO 1956 p. 51)
Do mesmo modo, é motivo de controvérsias a região em que surgiu. Gustavo Barroso
afirma que o Bumba-meu-boi “é uma fantasia matuta de costumes nordestinos do sertão”.
Para Câmara Cascudo, trata-se de um folguedo de origem mestiça, obra de mulato, da
“imaginação, malícia congênita do mulato”. (CASCUDO, História da Literatura
Brasileira
- Literatura Oral - Col. D.B., vol. VI) Arthur Ramos considera insuficiente esta resposta,
lembrando que não se pode desdenhar a contribuição do africano à sua conformação.
(RAMOS 1935, p. 105)
Abelardo Duarte apóia-se em Arthur Ramos e desenvolve longa argumentação para
desmentir a origem sertaneja do Bumba-meu-boi. Afirma enfaticamente que ele “não é e não
pode ser de origem cabocla, ligada ao ciclo dos vaqueiros do Nordeste”. (DUARTE 1974,
p. 257) Para ele, o Bumba-meu-boi nasceu no massapé e nos canaviais, ligado à vida dos
engenhos de cana-de-açucar. A defesa de seu ponto de vista baseia-se em que “o Mateus e
o Vaqueiro são figuras dos engenhos, pertencem a uma comunidade social diferente da dos
sertões”.
O argumento parece razoável, pois o vaqueiro no Bumba-meu-boi nada tem do
cavaleiro temerário do sertão e o boi não é um barbatão indomável a exemplo do que
acontece na saga do romanceiro do chamado ciclo do gado. Além do que, tanto Mateus como
sua parceira Catirina, um casal de negros espertos e atrevidos, figuras tradicionais nos Bois,
são inquestionavelmente oriundos da Zona da Mata.
Embora contendo uma boa dose de razão, os argumentos do folclorista alagoano
pecam pela unilateralidade do ponto de partida. Tomam por base o modelo de Bumbameu-
boi das Alagoas. Assim é que estranha a presença de cinco índios emplumados no Boi
Surubim, registrado por Gustavo Barroso, no Ceará, observando sua diferença com relação
ao Boi alagoano no qual “nunca se constatou a presença dessas figuras”.
A afirmação de que o Vaqueiro e o Boi do Bumba-meu-boi não refletem o universo
sertanejo é apenas parcialmente verdadeira. Há casos de brincadeiras originárias do sertão
nas quais o vaqueiro denomina-se “topador de boi”, isto é, pegador de boi, e trata o boi como
barbatão. É o que acontecia, por exemplo, nos espetáculos do Boi Tungão, de Pedro Boca
Rica, Mestre cearense típico do Sertão Central, falecido em 1991.
Além do mais, os personagens Mateus e Catirina, obrigatórios nos Bois e Reisados
alagoanos, não figuram em manifestações do Bumba-meu-boi de várias localidades praianas
e sertanejas do Ceará. Nesses lugares, eles são substituídos, principalmente o Mateus, pelo
Pai Francisco (nome próprio dos mais usados no Ceará), ou pelo casal de velhos Caretas. O
mesmo acontece, por exemplo, com os Reis e Rainhas negros dos Reisados de Alagoas que
aparecem no sertão apenas no elenco de figuras do chamado Reis de Congo,
estando ausentes em outros tipos de Reisados típicos do sertão.
Embora seja inegável a contribuição dominante do negro no Reis de Congo e sua
participação em outros tipos de Reisado, a tese da exclusividade é insustentável. Tanto o
Bumba-meu-boi como o Reisado são criações genuinamente brasileiras e portanto mestiças,
oscilando de acordo com a época e a localização a influência maior ou menor das etnias
formadoras de nossa cultura.
É de supor-se, no entanto, que o Reisado (incluindo o entremez do Boi), pelo caráter
coletivo e grau de complexidade maior que apresenta (se relacionado com outros folguedos
populares), só apareça em formações sociais de maior densidade interativa e populacional.
Tanto é que, no sertão, ele é mais freqüente na periferia dos aglomerados urbanos e nas zonas
de pequena propriedade.
A partir desses pressupostos, pode-se aventar a hipótese de ele ser originário da zona
açucareira, tendo emigrado posteriormente para o sertão, onde sedimentou-se. Concorre
para reforçar esta possibilidade, o fato de que o Bumba-meu-boi, em tempos mais remotos,
aparecia não apenas nas festas do ciclo natalino e nas festividades religiosas em geral,
como também se fazia presente no Carnaval (o que inclusive acontece até hoje em Recife).
(COSTA 1974, p. 264)
No Ceará, Dom José Tupinambá, em sua História de Sobral, registra uma Festa de
Reis Congos, ainda no século XVIII, em Sobral. Com a denominação de Reisado, a festa era
celebrada no dia 27 de Dezembro pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
Constava da coroação de um Rei Cariongo e de uma Rainha, além do cortejo festivo, várias
outras “cantigas” e entremezes onde aparecia inclusive a negra Catirina, personagem da
maioria dos nossos Reisados atuais. Vale registrar aqui os versos cantados então para
sua figura, contendo ainda palavras em línguas africanas: “Catirina, minha nega/Amaru
mambirá/Teu senhor quer te vender/ Amaru Mambirá/Pero o Rio de Janeiro/Amaru
mambirá/ Para nunca mais te vê/Amaru mambirá.” No final dos festejos, o cortejo de negros
despedia- se com a fórmula usual de nossos versos de despedida: “Adeus, até p’ro ano/se nós
vivo for.” (FROTA 1974, pp. 530 a 532)
Em Sobral, “entre as regalias concedidas ao Rei, sobressaia a de dar liberdade ao preso
correcional, com quem porventura se encontrava durante os dias do seu reinado.”
(FROTA 1974, p. 531) O último eleito em Sobral tomava o nome de Mestre Ângelo e foi
coroado em 1889. Mas até 1918, naquela cidade, eram eleitos anualmente “imperadores
meninos”, costume que, segundo o livro de Dom José Tupinambá da Frota, iniciou-se em
1837.
Havia também irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, com suas festas
dos Congos e seu trabalho de buscar a alforria de escravos, além das funções religiosas
óbvias, em Santa Quitéria, Russas, Quixeramobim, Fortaleza, Barbalha, Icó, Crato e Aracati,
todas em pleno funcionamento por volta dos meados do século XIX. A mais antiga parece ter
sido a de Russas, criada em 1728. (CAMPOS 1980, pp. 113 a 119) Em Milagres, o folguedo
até hoje é ativo.
Eduardo Campos, em As Irmandades Religiosas do Ceará Provincial, reproduz
documento da convenção da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Crato onde o
séquito régio dos festejos de Congos consta de Rei, Rainha, dois Mestres de Campo, um
Arauto e duas Açafatas que tinham por obrigação acompanhar a Rainha. (CAMPOS
1980,
p. 48) João Nogueira fala dos Congos, em Fortaleza, entre 1850 e 1860, apresentando-se em
frente à igreja do Rosário e tendo entre suas figuras Rei, Embaixadores, Príncipe, Secretário
de Sala, Congos e Conguinhos. (in SERAINE 1983, p. 83)
No Ceará, o Bumba-meu-boi e o Reisado parecem ter penetrado a partir do interior,
como aliás ocorreu com todo o processo de ocupação colonizadora. Tanto pelas dificuldades
de ligação por mar com as províncias vizinhas, como pelo fato de o solo do litoral não se
prestar à criação de gado. Dom José Tupinambá da Frota afirma que o folguedo do Boi “data
dos mais remotos tempos coloniais” e na sua História de Sobral descreve a apresentação de
um Boi, com os personagens que ainda hoje brincam naquele município: O Velho Cazuza, a
velha Donana, suas filhas Mariquinha e Zabelinha, os vaqueiros Mateus e Liseu (Eliseu), o
jovem janota Bas Carrasco e com os “bichos” Boi, Caboré, Ema e Pantasma. (FROTA 1974,
p. 517)
Rodolfo Teófilo, em O Paroara (1899), narra um espetáculo de Bumba-meuboi,
acontecido presumivelmente em uma cidade do interior cearense, onde o cortejo é
aberto por um estranho personagem de nome “Privilégio” ou “Caga-pra-ti”, “fantasma
de forma humana, esguio, encolhendo-se até ser anão e estirando-se até ficar da altura
de dois homens”. (TEÓFILO 1974, pp. 51 a 55) E completando a lista dos mais antigos
registros de Bumba-meu-boi feitos no Ceará, Gustavo Barroso, em Terra de Sol, descreve
amiudadamente uma função de Boi onde, além dos vaqueiros Mateus e Gregório, aparecem a
Catita (a mesma Catirina, como veremos adiante), o Capitão (na Burrinha e com a Zabelinha
na garupa), o Médico, o Padre e o Sacristão, o Fiscal, a Pastorinha, os Índios, o Zé-Abismo, a
Caipora, o Urubu, a Ema, o Boi, o Mané-Gostoso e o Valentão, entre outros.
Mais recentemente, Osvaldo Aguiar, em Crônicas Alegres, descreve uma brincadeira
de Boi, citando entre os personagens, além do Boi, Mateus, Eliseu e os Papangus. Em 1960,
saem dois livros incluindo estudos sobre o Bumba-meu-boi e o Reisado. O primeiro é de
Eduardo Campos, Estudos de Folclore Cearense, e o segundo é de J. Figueredo Filho, O
Folclore no Cariri. Eduardo Campos descreve dois Bois fortalezenses, um primeiro do bairro
do Mucuripe e um segundo da Serrinha, vistos por ele em 1952 e 1953, respectivamente.
No Mucuripe, aparecem os personagens: Vaqueiro, Mateus, Doutor, 4 Índios, Padre, Noivo,
Noiva, Catirina, Capitão, Inocêncio, 4 Papangus, Boi, Burrinha e Urubu. O da Serrinha
incluía: Vaqueiro, 2 Galantes, Dondon, 2 Generais, Capitão, Catirina, Rainha, 4 Índios, 3
Papangus, Boi, Burrinha, Ema e Caboré. J. Figueredo Filho, numa referência sumária, faz
a diferença entre o Reisado e o Bumba-meu-boi, ambos presentes no Crato de sua infância.
Enquanto no Reisado aparecem cavaleiros com espadas e capacetes, no Bumba-meu-boi está
presente o Mateus, o Boi e a Burrinha.
Também, Paulo Elpídio de Menezes registra a presença da brincadeira do Boi como
folguedo independente no Cariri cearense, ainda no último quartel do século passado. Em
seu livro O Crato de Meu Tempo, descreve um espetáculo semelhante ao do conhecido
atualmente como Reisado de Caretas, dando a denominação simplesmente de “Boi” (e não
de Bumba-meu-boi). (MENEZES 1985, p. 23) Refere-se a vaqueiros encaretados que “com
voz gutural, rouca e encatarroada, perguntavam por meu amo” e cita as figuras dos mesmos
Caretas, do Amo e os entremezes da Burrinha, do Caga-pra-ti, do Babau e do Boi.
No texto seguinte, o mesmo autor narra a brincadeira dos Congos, que tem entre seus
personagens o Rei, o Príncipe, o Secretário (que no atual Reis de Congo é o Mestre), as
Anganas (“damas que divertiam o Rei”) e os Guerreiros. O Secretário veste o mesmo saiote
encarnado, com meias até o joelho, dos brincantes do atual Reis de Congo. As Anganas são
rapazotes ou meninos vestidos de saiotes que formam duas fileiras, e no espaço entre elas
vão o Rei e o Príncipe. Como vemos, até agora tudo muito parecido com os Reisados de
Congo. Em seguida, aparece o exército inimigo, chefiado pelo General, “fardados de branco,
quepes vermelhos: os soldados de sabre na cintura”. (MENEZES 1985, p. 27) E ainda, na
batalha que se segue, consta a presença do Embaixador, também figura costumeira no Reis
de Congo. O Rei, como em Sobral, chama-se Cariongo e a luta é travada entre dois reinos
africanos.
Mais interessante é que em seguida Paulo Elpídio de Menezes fala de uma
Contradança, conjunto de 12 pares, onde as Damas eram representadas por rapazotes que se
apresentava nas casas mediante aviso prévio. Durante a apresentação, o cordão executava
números de danças coreografadas sob o comando do apito de um cavalheiro. Cabe observar,
que esta Contradança registrada por Paulo Elpídio de Menezes assemelha-se em parte ao
Reisado de Bailes que encontramos em 1978, no Sítio Pelo Sinal, em Barbalha.
Como se vê, tanto a presença dos Congos quanto do Bumba-meu-boi, folguedos
que deram origem ao Reisado, são muito antigas no Ceará, datando seu aparecimento
provavelmente do início do século XVIII. Aqui chegaram junto com as entradas de gado, não
só a partir de Pernambuco, como da Bahia. Alguns autores, como Vinícius Barros Leal, dão
o Bumba-meu-boi como originário do eixo Ceará-Pernambuco, mas assentam suas opiniões
em evidências pouco elucidativas. (LEAL 1982, p. 20)
Um fato, entretanto, parece evidente: o Bumba-meu-boi ou Boi Bumbá, espalhado
hoje por todo o Norte brasileiro, principalmente no Maranhão e Amazonas, é de proveniência
cearense. Edson Carneiro, em seu livro Folguedos Tradicionais, reproduz o depoimento de
um senhor Casemiro Anastácio Avelar (CARNEIRO 1974, p. 205), de São Luís do Maranhão,
em que relata a “estória” do surgimento do Bumba-meu-boi como ouviu de seu avô.
Diz o relato que a brincadeira do Boi ter-se-ia iniciado em uma fazenda do interior do
Ceará, onde um “coronelão” possuía muitos escravos, entre eles Pai Francisco e sua mulher,
a negra Catirina, mais conhecida como Catita. A narrativa que se segue é da clássica estória
de Catirina que, grávida, desejou comer um pedaço do Boi (de nome Barroso, no caso).
Pressionado pela mulher, para quem o filho que trazia na barriga morreria se o desejo não
fosse satisfeito, Pai Francisco acaba por matar o Boi.
Descoberto, ele é preso e levado à presença do coronel. Por ser o mês de junho, o
fazendeiro manda armar uma fogueira e convoca seus escravos para uma festa. Na festa, Pai
Francisco é posto no meio de uma grande roda de negros em torno da fogueira e passa a ser
alvo de brincadeiras que o deixam furioso. Os escravos do fazendeiro batem palma e cantam
dizendo: “Bate palma e bate pé/Foi Pai Francisco quem/matou o boi do coronel/por causa da
mulher. Depois continuaram a fazer a festa todos os anos, pois o coronel tinha gostado muito
de ver como Pai Francisco ficava zangado.”
Embora não se possa comprovar a veracidade da história, as pesquisas do Reisado
cearense verificam a presença tanto dos personagens quanto do núcleo narrativo citado nos
Reisados e Bumbas-meu-boi da Zona Norte do Ceará, especialmente na região próxima
ao Piauí. Em Granja, por exemplo, o Reisado do Bairro do Prado apresenta personagens
e narrativas semelhantes aos folguedos do Boi como aparecem no Maranhão e em outros
Estados do Norte brasileiro. Em Camocim, município vizinho a Granja, ambos situados
a pequena distância do Piauí, acontece o mesmo com o Boi Pintadinho. No espetáculo de
ambos os Reisados, aparecem o Amo e os índios, liderados pelo Caboclo Real, que, a mando
do primeiro, fazem a prisão de Pai Francisco, após este ter matado o Boi a pedido de sua
mulher Catirina.
A coincidência de personagens e narrativas é que leva à conclusão acima citada, isto
é, de que a brincadeira do Boi foi levada para o Norte brasileiro pelo imigrante cearense (e
piauiense, provavelmente), até porque aquela região do Brasil tem solo impróprio para a
criação do gado e consequentemente dificilmente poderia ter gerado uma narrativa como a
do Bumba-meu-boi.
Capítulo II: Os Congos
OS CONGOS DE MILAGRES
Em Milagres, município do Cariri cearense, no dia 4 de Novembro de 1989,
encontramo-nos com brincantes de um grupo de Congos, em plena atividade. O primeiro
contato foi com Elias Vazeudo, em Rosário, vilarejo situado a cinco quilômetros da cidade
sede do município. Em seguida, visitamos o Mestre de Congos, Doca Zacarias, em sua
residência, na cidade de Milagres. Com ele, fizemos uma entrevista minuciosa, de mais
de seis horas de duração, de onde retiramos as informações que se seguem. Presentes à
nossa conversa estavam a esposa do Mestre e alguns outros brincantes, os quais, às vezes,
juntavam um ou outro dado. Quase sete anos depois, no dia 27 de Outubro de 1996, pudemos
presenciar uma apresentação dos Congos do Mestre Doca Zacarias, em Rosário, durante a
festa da padroeira, Nossa Senhora do Rosário, na capela do mesmo nome.
Nosso informante, moreno de meia-idade mas ainda forte no prumo,
Raimundo Zacarias, conhecido como Seu Doca, nasceu em 1929, em Milagres. Seu pai
trabalhava de tronqueiro, isto é, botando cana num engenho de rapadura, ali mesmo em
Milagres, de onde era natural. Como o avô de Doca Zacarias, seu pai também foi brincante
de Congos e Mestre da companhia. Com ele, o menino iniciou-se na brincadeira e, após sua
morte, herdou a função de Mestre.
Roceiro pobre, Doca sempre trabalhou em terra alheia, pagando arrendamento de
uma quarta por tarefa nas roças de feijão e arroz que planta. No verão, trabalha como vigia,
durante a noite, em Brejo Santo, município vizinho de Milagres. Pai de família numerosa,
seus filhos, irmãos e cunhados, quase todos fazem ou fizeram parte do grupo de Congos.
Os demais brincantes também são na maioria aparentados. Como o Mestre, são negros
e, alguns mestiços, e trabalham como arrendatários plantando legumes. Moram quase todos,
em Rosário ou na cidade de Milagres. Antigamente, trabalhavam nos engenhos de rapadura,
numerosos na região, até que há vinte anos atrás foi instalada, em Barbalha, uma usina de
açúcar que consome quase toda a cana do local.
Os Congos são compostos quase só de homens. A única mulher admitida na
brincadeira é a Rainha. No mais, o Mestre só permite mulheres durante os ensaios e assim
mesmo dançam “à paisana”, isto é, com trajes comuns.
Doca Zacarias informa que, em Milagres, os Congos são brincados desde o tempo da
escravidão, época em que também foi construída a capelinha de Nossa Senhora do Rosário.
“Isto foi fundado no tempo do cativeiro,” assegura ele. E diz mais, que os Congos “vieram
da África”. Mas, de tempos em tempos, dependendo do humor do vigário do momento, os
Congos deixam de sair. Por último, no tempo do Padre Alves, que morreu há cinco anos,
os Congos ficaram dois anos sem sair por proibição dele. Só depois da morte do padre, a
brincadeira foi novamente organizada.
Para ingressar nos Congos como brincante há duas maneiras. A mais costumeira é
através de promessa: a pessoa faz uma promessa a Nossa Senhora do Rosário e, se alcançada
a graça, ela agradece com a devoção dos Congos, isto é, tomando parte dele pelo resto da
vida. Neste caso, a pessoa comunica ao Mestre o motivo e ele permite a participação, mesmo
que não se trate de um bom dançador. Mas, caso a pessoa não esteja pagando promessa,
também pode ingressar nos Congos. Basta ter interesse, ser disciplinada, dedicada e aprender
nos ensaios os passos e movimentos da dança e a cantar as peças. Há casos de brincantes que
mesmo após anos de ensaio, não conseguem dançar ou cantar de acordo com o que o Mestre
considera satisfatório. Mesmo assim, se está pagando promessa, seu direito à permanência na
devoção é sagrado.
Doca Zacarias também entrou nos Congos por meio de promessa. Diz ele: “A minha
promessa foi a seguinte: Era do meu pai e antes dele morrer, pediu pra eu ficar até o fim da
minha vida pagando aquela promessa pra Nossa Senhora do Rosário.” A promessa é pra
brincar o dia todo andando a pé e sem quase comer.
Os ensaios iniciam-se cerca de 20 dias antes de cada festa e são realizados na
casa do Mestre, de duas a três vezes por semana. Muito animados, são presenciados por
numerosa assistência de vizinhos. O aprendizado é feito basicamente por imitação, isto é,
pela observação dos brincantes mais velhos. O Mestre é rigoroso na verificação dos erros e
qualquer desvio dos procedimentos tradicionais é corrigido.
Em Milagres, os Congos apresentam-se no distrito de Rosário, durante as festas de
Nossa Senhora do Rosário, no mês de Outubro; na sede do município, por ocasião da festa
da Padroeira, Nossa Senhora dos Milagres, nos dias 6 (dia do hasteamento da bandeira da
Santa) e 15 de Agosto; e na festa de Nossa Senhora dos Remédios, na localidade de Nazaré,
em 26 de Outubro. Também os Congos apresentam-se nas festas do final do ano, antes da
Missa do Galo, celebrada na Matriz, e por ocasião das Renovações do Coração de Jesus, que
acontecem no interior das residências populares. Nesse último caso, os Congos aparecem
apenas cantando benditos, a pedido do dono da casa que em troca oferece um café com
bolacha ao grupo.
No primeiro dia da festa de Nossa Senhora dos Milagres, 6 de Agosto, os Congos
acompanham o cortejo que leva a bandeira da Santa, desde a entrada da cidade até o mastro
de ferro erguido em frente à Matriz, onde é hasteada. Esporadicamente, os Congos atendem a
convites de municípios próximos a Milagres para apresentações em pequenos lugarejos. Por
duas vezes, chegaram até Fortaleza. Na primeira, apresentaram-se na antiga TV Ceará, e na
segunda, num sítio na periferia da cidade.
As figuras são os personagens permanentes dos folguedos populares. Nos Congos de
Milagres, elas são: Rei, Rainha, Espantão, Mestre, Contramestre, Embaixadores (dois), e
Figuras (propriamente ditas), em número de 20. Por ocasião do cortejo, guardam a seguinte
disposição: À frente vai o Espantão; no centro o Rei, a Rainha e atrás deles o Mestre e o
Contramestre; de cada lado, uma fileira de cerca de 10 figuras, lideradas pelos Embaixadores;
ao lado do cortejo, vão os músicos, a Banda Cabaçal (dois pífanos, um zabumba e uma caixa
de guerra) e o tocador de violão.
Detalhando melhor cada figura, é importante observar o seguinte:
REI: veste calça e blusa brancas, com um cadarço amarelo ligando os botões também
amarelos da blusa. Leva uma espada na mão e uma coroa na cabeça.
Atualmente, o Rei é representado por um menino de dez anos. Sua coroa é menor do que a
da Rainha. Durante as apresentações, ele senta em seu trono representado por uma cadeira. O
antigo rei chamava-se Antônio Leite, que foi sucedido por seu filho José Leite. Antônio Leite
era padrinho de Doca Zacarias e, costumeiramente, seu aniversário era comemorado com
uma celebração dos Congos em sua casa.
RAINHA: Usa um vestido comprido róseo ou branco e a coroa na cabeça. Como o Rei,
tem seu trono representado por uma cadeira. Atualmente, a Rainha é representada por
uma menina de 12 anos. “Agora, a Rainha mesmo já está muito velha. Acho que ela não
pode mais nem andar,” explica Doca Zacarias. Por isso, foi substituída por uma menina.
A antiga Rainha, uma negra chamada Maria Ribeiro, que agora está aposentada, começou
ainda criança, por força de uma promessa. Até que um dia, não podendo ir para Nazaré por
ocasião da Festa de Nossa Senhora dos Remédios, foi até a casa do Mestre comunicar sua
desistência. Então foi substituída por uma menina.
“Agora, essa rainha que está doente, no dia em que ela ia pro Rosário, como Rainha, ela num
falava com ninguém e nem comia.” (Doca Zacarias)
- ESPANTÃO: Veste calça azul, com listra branca, camisa branca, duas faixas cruzadas no
peito, uma vermelha, outra amarela, e um chapéu. Conduz na mão uma vara enfeitada de
fitas, como o mastro de uma bandeira. A vara do Espantão é benta pelo padre. É uma vara
sagrada que não pode ser substituída. Não usa o saiote e a pequena capa, ou manto, como as
outras figuras. Nos Congos de Milagres, é representado por Doca Zacarias que acumula esta
função com a de Mestre.
- MESTRE: às vezes é o mesmo ‘Espantão’, como no caso de Doca Zacarias. É quem dirige
o espetáculo, é ele quem tira as ‘peças’. O Mestre veste calça azul, camisa branca, saiote
vermelho, capa (manto) vermelha e chapéu enfeitado. Conduz um apito numa mão e uma
espada na outra.
- CONTRAMESTRE: é quem substitui o Mestre “quando ele está enfadado de brincar”.
Veste-se como o Mestre e também porta uma espada.
- EMBAIXADORES: São dois, cada um liderando uma das fileiras de brincantes.
Eventualmente, podem substituir o Mestre ou o Contramestre na direção da brincadeira.
Durante as dramatizações, são enviados para falar com o Rei ou levam recados dele. Vestemse
como o Mestre e também portam espadas.
- FIGURAS: todas portam espada e vestem-se como o Mestre. Suas “fardas”, como chamam,
constam de camisa branca, calça azul ou branca com faixa branca ou azul, saiote vermelho,
uma capa ou pequeno manto nas costas e um pequeno gorro (ou capacete) na cabeça.
Alguns brincantes enfeitam o traje com fitas, outros com espelhos etc. Os trajes atuais foram
dados pela Prefeitura. Antigamente, cada brincante comprava seu traje. As figuras formam
uma espécie de coro, que dança, canta, joga espada, responde a chamadas do Mestre e,
eventualmente, participa de alguma encenação.
Nas marchas em cortejo e nas batalhas de espada, os Congos são acompanhados por
uma Banda Cabaçal, nas peças cantadas durante as apresentações, por violão e percussão. Os
passos da dança são quatro: a dança de lado, a dança de frente, a ginga e a corta-tesoura. O
jogo de espada é chamado de esquilâneo.
Os brincantes, nos dias de festas, reúnem-se, bem cedo, na casa do Mestre (ou de
um brincante), onde o figurino está guardado. Lá, vestem-se e saem em cortejo, entre 6h e
30 min. e 7h. O cortejo percorre as ruas em direção à igreja onde chega cerca de uma hora
depois. Durante as marchas em cortejo cantam as peças:
Pretinho de Congo
Para onde vai?
Vamos pro Rosário
Para festejar.
Festeja, Pretinho
Com muita alegria.
Vamos pro Rosário
Festejar Maria.
Reis de Congo anda em peleja
Para festejar seu dia.
Eu também ando em peleja
para festejar Maria.
Quando chegam no patamar da igreja, entoam:
Viva que viva
O Rosário viva!
Ó que viva, ó que viva
O Rosário viva!
Depois, ainda no patamar da igreja, cantam o bendito:
Mestre: Meu Deus, que luz é aquela? (bis)
Botai-me naquela luz. (bis)
Coro: São os Congos do Rosário.
Vamos festejar Maria.
São os Congos do Rosário.
Vamos festejar Jesus.
Ou esta outra peça criada por Mestre Doca Zacarias:
No Rosário construíram uma igreja
da cor da bonina, virada pra beira-mar.
Tem uma Santa, ô que obra interessante,
Nossa Senhora do Rosário, padroeira do lugar.
Quando vão entrando na igreja, cantam outro bendito:
Entremos, entremos
nesse jardim tão cheiroso. (bis)
É do nascimento
nosso Redentor.
(bis) Entremos,
entremos no jardim
pra adorar pro meu
Jesus
em seu trono assentar.
Chegando ao pé do altar, o Mestre tira outra peça:
Viva Maria, mãe singular (bis)
Rainha do Céu de Portugá.
O Rei da Glória, do Marajá. (bis)
Viva Maria, mãe ‘quelemente’
(clemente) Rainha do Céu tão paciente.
Espero da senhora um bom perdão
e do Rei da Gulora (Glória) a salvação.
E emenda com uma outra:
Lá no Céu apareceu, ó Senhora
Um sinal do meio-dia.
Tudo é porque não se reza, ó Senhora
O rosário de Maria. (bis)
E mais outra, bem conhecida:
A igreja é casa santa
onde Deus faz a morada,
onde mora o cálix bento
e a hóstia consagrada.
Onde mora o cálix bento
onde mora o cálix bento
e a hóstia consagrada.
Com a mesma melodia, acrescentam a estrofe nada religiosa:
As estrelas do céu correm
eu também quero correr.
Elas correm atrás da lua
eu atrás do bem-querer.
Em seguida, o padre celebra uma missa, que é acompanhada pelos Congos.
Dentro da igreja, o Rei e a Rainha sentam-se em cadeiras para eles preparadas, representando
seus tronos, em frente de uma mesa.
Terminada a missa, cerca de 10 horas da manhã, os Congos vão novamente para o
patamar da igreja. Jogam espada, cantam benditos e o Espantão dança ao som da Banda
Cabaçal. O Espantão dança em solo, no centro da roda de brincantes, com “a vara batendo
de um lado e do outro nas espada dos brincante, e ele rodando”. (Doca Zacarias)
Ainda no patamar da igreja, cantam outras peças:
- Das Calungas eu vi o Rosário
Vi o Rosário de Maria. (bis)
- O Cruzeiro do Pilar caiu.
Mandei sentar outro no mesmo lugar.
Mandei sentar vinte e cinco velas.
O braço da Cruz apresenta um sinal.
- Quando eu tava na margem do rio
Eu vi embarcar dois americano.
Tava a morena na janela vendo
chorando e dizendo: adeus lagoano.
Depois, são apresentados os entremezes que nos Congos são dois o do Herculano e
o do Garcia. Primeiro o do Herculano. Ele é um menino escolhido entre as figuras que, no
meio da dança dos Congos, cai no chão. Então o Mestre puxa a peça:
Mestre: Herculano já morreu. (bis)
Brincantes: Herculano já morreu.
(bis) Mestre: Já andou, já andou.
Então, os dois Embaixadores levantam o menino do chão e saem andando com ele.
Quando eles cansam, o Mestre canta.
Mestre: Herculano já morreu.
Herculano já viveu.
Herculano já morreu.
Herculano já viveu.
Daí é o menino volta para seu lugar na fila dos brincantes e dança junto com eles.
O entremez do Garcia é um pouco mais longo. Vem imediatamente antes da cena das
embaixadas e batalhas. O Mestre faz o papel de Garcia, com seu mesmo traje, mas mudando
completamente a voz e as demais expressões corporais. Contracena com o Contramestre. O
entremez inicia-se com o Contramestre chamando pelo Garcia e este fazendo que não está
ouvindo.
Contramestre: Garcia, Garcia, ô Garcia.
(O Garcia faz que não ouve, o Contramestre chama novamente até que o
Garcia atende.)
Garcia: Ei, rapaz, o que é que você quê cum Garcia?
Contramestre: Seu Reis está chamando pra você ensiná a ele aquela toadinha que você
cantava quando vocês andavam junto, viajando pelo mei do mundo.
Garcia: Diga ao Reis que eu não vou não.
Contramestre: Mas vamos, rapaz, que o Reis está chamando.
Garcia: Onde é que o Reis mora?
Contramestre: É ali. Você vai pelo caminho, quando você achá um toco em pé, é o Reis.
(Então o Garcia sai farejando tudo, olhando uma Figura e outra, até que chega perto
do Rei, que faz aquele rapapé - arrasta os pés no chão, ameaçadoramente - e o Garcia
recua e se faz de desorientado.)
Garcia: (para o Contramestre) Num achei o Rei não.
Contramestre: Num achou não? É porque num procurou direito. Procure de novo.
(O Garcia sai de novo à procura do Rei, até achar. Então, ele cai aos pés do Rei
e canta uma toadinha.)
Garcia: (Cantando) Guia, guia, guia, guia
Guia, guia, muçambê.
Caboclo tá dizendo
Que o branco gosta de vê.
Se branco tá dizendo
Que eu gosto de você.
Caboclo tá dizendo
Que eu gosto de fazê.
(Depois, o Garcia sai de Figura em Figura, pegando pelo braço e levando até
a presença do Rei, uma de cada vez. Quando ela chega na frente do Rei, este fala.)
Rei: Rapaz, eu mandei lhe chamá pra quando tu chegá por aí e encontrá um carro novo,
bonito, você traga pra meu reinado. Agora, se você encontrá um carro velho, que não preste,
você leva pra você.
Figura: Eu levo é pra seu reinado.
Rei: Você é besta, nego!
(O Rei diz isso, botando a Figura pra correr. Depois o Garcia chama outra Figura
perante o Rei e acontece a mesma coisa. Só que o carro muda para cavalo, jumento,
panela, boi, cela etc. Até que chega a vez da última Figura. Então, depois que o Rei a põe
para correr, a Figura grita.)
Figura: Mas eu mango de ti.
Demais Figuras: (Em coro) E eu também.
(E repetem várias vezes. Uma Figura dizendo: Mas eu mango de ti. E as outras
respondendo: E eu também. Segundo Doca Zacarias, todo mundo sai mangando do
Rei, porque ele perdeu a questão.)
Depois dos entremezes, o Congos encena embaixadas e combates. Começa dançando e
cantando peças relativas a reis e batalhas.
Marcha, marcha, homens guerreiro
Segue o barco taião (sic) em linha
Vamos vamos defender a croa
De nossa Rainha.
Vamos vamos defender (bis)
Defender a croa de nossa Rainha.
- Nosso Rei Dom Cariango
Tu vai ganhar o teu
dinheiro
Para comer na marmorra (masmorra)
Quando se vê prisioneiro.
- Nas feridas de um capitão
vai já Mateus cortar bandeira.
Se não vencer a batalha
Rainha corta o cabelo.
Anunciando a chegada do Rei, cantam:
Sentinela encruza as armas
Que lá vem o Imperador
Com sua bandeira branca
E o seu lenço chamador.
Recebem o Rei fazendo uma coreografia de espadas: as espadas cruzadas no alto e o
Rei passa embaixo com a Rainha.
Depois da chamada do Rei, o Mestre, fazendo o papel do Embaixador do Rei inimigo,
o Rei mouro Ferrabrás, diz apresentando-se:
Rei do Cariango,
Senhor Tamarachama
Jeremias des Truquia.
(Segundo o Mestre Doca Zacarias, estas são palavras na língua do Congo.)
Então, o Rei responde e o Mestre volta a retrucar:
Mestre: Sendo eu um cavaleiro nobre
chefe de uma infantaria
vivo carregando......... nobreza
em todo sentido.
Rei: O que te trouxe por aqui cavaleiro nobre?
Mestre: Eis o que me trouxe por aqui:
Foi essa croa e vossos filhos.
Rei: Ainda vindo com tudo ou com nada
ó Ferrabrás de Oliveira
com todo o teu exército inteiro
enterrar os valentes semiantes
(sic) e fazer os altos se abaixarem
e os baixos se levantarem.
Mestre: Senhor que tudo o mais podeis fazer
e o sol e a lua escurecer.
Rei: O senhor é homem grande ou homem pequeno?
Mestre: Reis, eu num sou homem grande nem pequeno.
Sou um sujeito de boa fartura
que ando com a lança na mão
e a espada na cintura.
Rei: Pode se sentá.
Mestre: Reis, eu num quero me sentar.
Eu num vim lhe visitar
nem também lhe festejar.
Rei: Veio em guerra, mandado pelo vosso lunaro?
Mestre: Reis do Cariango, diz a teu filho que jure a fé do meu nemunaico. (sic) Se não, tu
vais trespassado pela ponta da minha espada.
(Então o Rei e o Mestre cruzam as espadas.)
Rei: Se vem de paz, é paz.
Se vem de guerra, é guerra.
Eu dentro do meu reinado
Tenho gente como terra.
Mestre: Tenho gente como terra
Falo com toda franqueza.
Se não me faltar coragem
Morro todo espedaçado
Mas num juro a fé no nemunaico. (sic)
Rei: Onde há campo e espada
as razões são encruzadas.
(Rei e Mestre batem as espadas.)
Mestre: (Gritando) Rei, meu Rei de Congo
nosso reino está tomado.
Rei: Vi meu Secretário
temo guerra pelejar.
(Então, começa a luta de espada na qual entram todas as figuras. A metade do lado
do Mestre e a outra metade do lado do Rei. Ao final, o lado do Rei de Congo ganha a
batalha e o Mestre ajoelha-se aos seus pés.)
Depois dos combates, o Rei e a Rainha ficam no interior da igreja, em seus tronos,
para receber esmolas, enquanto os outros saem novamente em cortejo. Vão divididos
em duas fileiras, uma em cada lado da rua, com o Espantão à frente, pedindo esmolas
nas casas. Após arrecadarem algum dinheiro, voltam para a igreja e, junto com o Rei e a
Rainha, prestam contas ao zelador ou ao padre. As esmolas que recebem são para a Santa.
Antigamente havia um tesoureiro que anotava todo o arrecadado num livro, com o nome dos
doadores.
Durante o restante do dia, os Congos apresentam-se nas casas dos amigos e de pessoas
importantes. “O povo diz: vamos tomá um café lá em casa! Aí nós vamos brincá!” (Doca
Zacarias) Nas casas, o cortejo dos Congos entra cantando: (não pede licença para entrar,
como os Reisados)
Entremos nós
nesse continente. (bis)
Vamos vê Jesus
que é o Salvador da gente.
Faz a louvação do Coração de Jesus e canta peças:
- Seu dono da casa
Tem muito dinheiro. (bis)
Alumeia a sala
Com dois candieiro. (bis)
Seu dono da casa
Tem muito que dá (bis)
Alumeia a casa
com dois castiçá. (bis)
- Olê lê, meu São José
Acendeis a Santa Luz.
Nossa Senhora das Dores
e o Coração de Jesus.
Olê lê, meu São José
Acendeis os candiêros
Nossa Senhora das Dores
Jesus Cristo verdadeiro.
O dono da casa oferece um café com bolacha, os brincantes aceitam e, em seguida,
despedem-se.
Meus senhores, até o ano que vem.
Noite de festas, nós é de folgar.
Se nós fôre vivo e tiver no lugar.
Depois vão brincar em outra casa, onde os donos podem oferecer até almoço. Visitam,
durante um dia, de oito a quinze casas. As gorjetas que recebem nas casas ficam para os
próprios brincantes.
Às quatro horas da tarde, o cortejo dos Congos volta à igreja para acompanhar a
procissão que percorre as principais ruas do lugarejo. Durante o trajeto da procissão, os
brincantes dos Congos, em fileiras paralelas, caminham ladeando a imagem da Santa.
Terminada a procissão, eles cantam a despedida:
Adeus, povo do Rosário
Lá vai os meus Congos embora.
Minha chegada é bonita
Minha retirada é penosa.
Só peço que me encomende
um adeus pra Nossa Senhora.
Finalmente, voltam ainda cantando e em cortejo, para sua sede que é a casa do Mestre.
Quando chegam, o dia já tem escurecido.
Doca Zacarias, durante toda a sua vida, nunca viu um outro grupo de Congos.
Também nunca introduziu nenhuma figura nova na brincadeira ou fez qualquer outra
modificação importante. No máximo, criou uma ou outra peça. Mesmo assistindo à televisão
regularmente, não se deixa influenciar por ela no seu trabalho com os Congos. “Naquele
tempo do cativeiro, quando o Congo foi criado, não existia televisão,” justifica.
Atualmente, Doca Zacarias acumula a função de Mestre com a de Espantão, por falta
de alguém apto para brincar de Espantão como manda a tradição. “Porque só dá certo uma
pessoa alta, e os bem alto não sabe a pisada do bumba”, diz Doca Zacarias. Mas ele preferia
ficar apenas como Mestre.
Durante suas apresentações, em momento nenhum, os brincantes dos Congos dirigemse
à platéia. As falas são apenas no momento de confrontação dos Reis. O resto é só canto.
As partes que o Mestre mais gosta de representar são as batalhas e embaixadas que se travam
em torno do Rei. Ele diz que esta parte é um verdadeiro “drama”.
Doca Zacarias também conhece e já foi Mestre de Reisado. Mas faz uma distinção
rigorosa entre os dois. Cita José Galdino, um marchante de Milagres, como antigo Mestre,
com quem aprendeu o Reisado. Doca deixou o Reisado para se dedicar exclusivamente
aos Congos,que aprecia mais. Atualmente, existe em Milagres o Reisado do Mestre Chico
Oliveira (que também brinca de Contramestre nos Congos do Mestre Zacarias), um tanto
desativado, no sítio Boa Vista, de propriedade de Chico Leite. Chico de Oliveira é natural de
Brejo Santo onde nasceu e criou-se. Aprendeu o Reisado em Mauriti com Joaquim Grande
e em Araripina (Pernambuco) com o Mestre Otávio de Maria Preta, onde brincou como
Embaixador.
Entre o Reisado e os Congos, segundo Doca Zacarias, há muitas diferenças. No
Reisado, o número de passos é muito maior, mas existem dois, a tesoura e a ginga, que
são comuns a ambos os brinquedos. No Reisado, não há os passos de lado e de frente
como nos Congos. Doca Zacarias diz ainda que no Reisado existe a marcha antes da dança
propriamente dita, o que não acontece nos Congos.
Além disso, no Reisado, a luta de espada é muito mais dura. “A diferença é porque
no Reisado é preciso o cabra lutar muito pra saber trocar espada,” diz Doca Zacarias. Já nos
Congos, é mais fácil.
Perguntado pelo significado da brincadeira, o Mestre dos Congos de Milagres afirma:
“No tempo em que havia o cativeiro, houve aquelas prisões, até que vêi a Princesa Isabel,
que libertou o Brasil. Os escravos viviam presos, até que o Reis de Congo, que era da África,
desafiou o Reis Brasileiro pra aquela luta. No dia em que foi pra sê libertado o Brasil, aí eles
fizeram aquele rogativo à Nossa Senhora para que se ela livrasse eles daquilo, eles
formariam aquela brincadeira. Então o Reis de Congo ganhou e aí ficou esse movimento do
Congo.”
Mais adiante, explica o porquê da devoção a Nossa Senhora do Rosário. “Antes do
cativeiro sê abolido no Brasil, havia um Caboclo, que estava preso com seus colegas, era
cativo. Então uma Santa apareceu a eles, com o rusaro na mão. Então eles fizeram uma
promessa à Santa, de que se fossem libertados, iriam dançá e tirá aquelas peça, brincando
Congo. Aí eles levantaram a capela do Rusaro e começou a brincadeira.”
A MEMÓRIA PRESERVADA
Mesmo tendo perdido parte da memória dos antigos Congos, que até o final do século
passado disseminavam-se por quase todo o território brasileiro e também no Ceará, os atuais
Congos de Milagres guardam-lhes a estrutura básica, isto é, as partes que os compõem,
muitos de seus personagens, versos, melodias e até canções inteiras. Assim é que, ao lado
das cerimônias devocionais (a participação na missa, o acompanhamento da procissão e o
recolhimento de esmolas para a Santa), aparecem o cortejo real e as embaixadas guerreiras.
Entre as personagens ou figuras estão as costumeiras: o Rei, a Rainha, o Mestre (no lugar
do Secretário de Sala), os Embaixadores, as Figuras (que antigamente chamavam-se Congos
e Conguinhos, conforme fossem adultos e meninos). De diferente, nota-se a ausência do
Príncipe e as presenças do Contramestre (provavelmente vindo dos Reisados) e do Espantão
(cuja procedência ainda não conseguimos identificar). Os trajes, calça e camisa brancas com
saiote e capa, enfeites de brilhos, vestido róseo ou branco da Rainha etc., também não são
estranhos à tradição.
No desenrolar do espetáculo, o respeito às formas tradicionais começa no itinerário
do grupo, que inclui o cortejo até a igreja, a participação na missa, as embaixadas e batalhas
no patamar da igreja, a visita às casas para recolher donativos, a permanência do Rei e
da Rainha no interior da igreja e o acompanhamento da procissão, ladeando o andor da
Santa. Em Pernambuco, no início do século passado, também eram colocadas cadeiras para
representar os tronos e uma mesinha servia de guarda dos donativos e as coroas, no interior
da igreja. E, como era comum nas antigas Irmandades de Pretos, havia um Tesoureiro que
registrava os donativos.
Chama a atenção, porém, a importância de que se reveste o Mestre no atual Congos
de Milagres, pois diferentemente do que acontecia nos Congos mais antigos, sua residência,
e não as dos soberanos, é o ponto de partida e de chegada do cortejo de brincantes. Nota-se,
ainda, a ausência da coroação do Rei e da Rainha pelo vigário.
Como nos Congos do século passado, o Rei é Henrique Cariongo, ou Dom Cariongo,
que Mestre Doca Zacarias prefere chamar de Cariango - em quimbundo nome de um pássaro
(CARNEIRO 1937, p. 87). Seu inimigo é o turco Ferrabrás que em Milagres aparece com
o sobrenome de seu tradicional inimigo Oliveiros (no caso Oliveira) e é interpretado pelo
Mestre, o próprio Doca Zacarias. Aparecem referências ao filho do Rei e ao Guia que, em
muitos Congos de antigamente, tomava o lugar do Mameto, o filho do Rei. (1) Os combates
terminam com a derrota e rendição do rei mouro, que se ajoelha vencido aos pés do rei
cristão. Algumas palavras em língua africanas ainda aparecem.
Quanto às peças e embaixadas, as coincidências são muitas. Em Fortaleza, no início do
século, a caminho da igreja do Rosário, os Congos cantavam: “Os pretinhos dos Congos/pra
onde vão?/Nós vamo pro Rosaro/Festejá Maria./ Oh festeja, oh festeja/Com muita alegria./
Nós vamo pro Rosaro/Festejá Maria.” (2) No Crato da segunda metade do século passado, a
peça cantada durante o cortejo pelos Congos,era semelhante à de Milagres: “Oh pretinhas do
Congo/para onde vão?/ Vamos ver o rosário/para festejar.” (MENEZES 1985, p. 26) Também
de antiga procedência é a peça que diz: “Das calungas eu vi o rosário/Vi o rosário de Maria”.
Interessante é notar referências a Alagoas nos versos: “Tava a morena na janela vendo/adeus
lagoano” (corruptela de alagoano). E neste outro que se refere possivelmente à cidade de
Pilar, em Alagoas: “O Cruzeiro do Pilar caiu...” (3)
Também nas embaixadas, as semelhanças dos versos são muitas. Nos Congos da
Fortaleza do início do século, há o seguinte diálogo entre o Rei e seu Secretário de Sala, após
a chegada do Embaixador inimigo:
“Rei - Cuma é este home, meu fio?
Sec. - É home de boa estratura:
Traz espada na mão
E lança na cintura.
Rei - Se é de paz, é de paz.
Se é de guerra é de guerra.
Qui dento do meu reinado
É sordado que nem terra!” (4)
Pereira da Costa também encontrou estrofe semelhante nos Congos de Goiana,
Pernambuco, ainda na segunda metade do século passado, ou seja: “Vai perguntá-lo/Se vem
de page,/Ou se vem de guerra./ Se vem de page, page./Se vem de guerra, guerra.” E mais
adiante, o Rei também convida o Embaixador visitante para sentar. “Se vindes de guerra,
retirai-vos./Se vinde de paz, sentai-vos/Que temos muito que folgar.” (COSTA 1974, pp.
280- 281)
No Crato do final do século passado, a semelhança é ainda maior. Diz o Rei: “Manda
que entre:/se vem de paz, é paz./Se vem de guerra é guerra./Que dentro do meu reinado/tem
gente como terra!” E quando o general inimigo anuncia o ataque, canta: “Cubra-se tudo de
luto,/Rainha corte o cabelo/Que o reino dos africanos/Vai ficar prisioneiro.” (MENEZES
1985, p. 28)
A referência a Ferrabrás e Oliveiros que os brincantes de Milagres juntam num só
nome, Ferrabrás de Oliveira, vem diretamente da lendária história de Carlos Magno e os
Doze Pares de França, popularizada no Nordeste brasileiro através da literatura de cordel.
Aliás, há no Congo de Milagres versos que são uma repetição quase integral (porque um
pouco modificada) de um trecho do folheto de Leandro Gomes de Barros, “Batalha de
Oliveiros com Ferrabraz”. Trata-se dos versos: “onde há campos e espadas/as razões são
desusadas,” (5) que os Congos de Milagres dizem: “onde há campo e espada/as razões
são encruzadas”, numa deformação talvez proveniente do desconhecimento da palavra
‘desusada’. Também são originários da luta de Oliveiros com Ferrabrás os versos onde o
Mestre (representando Ferrabrás) diz: “Se não me faltar coragem/Morro todo espedaçado/
mas num juro a fé no nemunaico) (sic).” (6) E ainda a pergunta: “O senhor é homem grande
ou homem pequeno?” que, em Leandro Gomes de Barros, aparece na pergunta de Ferrabrás
a Oliveiros: “Quem és tu tão pequenino/que vem me desafiar?” Esta pergunta, não por
coincidência, vai aparecer também nas embaixadas que precedem as batalhas travadas no
Reisado de Congo.
É interessante observar que, nos Congos de Milagres, já aparecem elementos
costumeiros dos Reisados caririenses, tanto na referência ao Mateus contida em uma das
embaixadas, quanto em algumas peças, como a que diz: “Seu dono da casa/tem muito
dinheiro./Alumeia a sala/com dois candieiros.” Como se vê, os atuais Congos
de Milagres são herdeiros diretos da tradição, mesmo que em suas apresentações muitos
detalhes e significações tenham se perdido. Nas explicações que Doca Zacarias dá sobre
o significado do folguedo, fica clara a tentativa de seu abrasileiramento. Isso aconteceu
também em algumas regiões onde “as tradicionais cores azul e branca dos congueiros foram
substituídas pelas nacionais - verde e amarela,” (ARAÚJO 1964, p. 189) e em outras, após
a abolição da escravatura, com a incorporação da Princesa Isabel ao seu imaginário, (7) ou
com a transferência da festa de São Benedito para o 13 de maio, data em que se comemora a
redenção dos escravos no Brasil. (MEYER 1993, p. 162)
Referências aos entremezes do Herculano e do Garcia que aparecem com grande
destaque nos atuais Congos de Milagres, entretanto, não foram ainda encontradas na
bibliografia até agora consultada, nem mesmo nas entrevistas realizadas ou nos espetáculos
de Reisado ou folguedos outros por mim presenciados. O entremez do Garcia provavelmente
origina-se de peripécias ocorridas entre brancos e negros durante a escravidão. Vale notar
o fato de Garcia chamar-se o último grande monarca do Congo pré-colonial, bem como a
mangação que Garcia e as Figuras fazem do Rei, o que pode significar uma desforra contra
o patrão branco, metaforicamente representado pelo Rei. Com o mesmo sentido, é talvez a
indicação do Contramestre sobre o modo de como Garcia pode encontrar o Rei: “Você vai
pelo caminho, quando você achar um toco em pé, é o Rei.”
Já o entremez do Herculano talvez tenha relação com a morte e ressurreição do filho
do Rei, durante incidentes armados entre patrulhas de diferentes reinos africanos.
Porém, tanto os fatos históricos quanto as manifestações culturais que lhes deram
origem, ainda estão presentes, de alguma maneira, nos Congos de Milagres. Senão vejamos:
no cortejo e na coroação real, estão as antigas “reinagens” e “impérios” da Europa Medieval,
bem como os faustos das antigas monarquias africanas; nas batalhas, estão reminiscências
tanto das bravuras de Carlos Magno e seus pares quanto das lutas entre antigos reinos
africanos; e nas cerimônias religiosas, está a devoção aos santos “negros”, através da qual
organizaram-se as Irmandades de Pretos, ainda em Portugal e na África.
OS REIS HISTÓRICOS
Quando os portugueses chegaram ao rio Zaire, em 1482, encontraram nessa região
da África Meridional o que o historiador lusitano Antônio Almeida chamou de “um dos
agregados populacionais negros mais importantes de todos os tempos - o império do Congo.”
(ALMEIDA 1940, p. 485) Seus limites estendiam-se de Pinda ao Cabo Negro, no litoral, e
seu território compreendia a metade do atual Estado de Angola e um terço do antigo Congo
Belga. Tratava-se de uma larga extensão territorial, abrigando uma confederação de tribos e
pequenos reinos, sob o comando de uma monarquia absoluta. Os domínios dos então reis do
Congo compreendiam os reinos de Ngoio, Makongo, Ngola, Makamba, Ambundi, Matamba,
Lula, Nzeuza e Libolo, além de vários dembados, sobados e sobetados, agrupados num
império “à semelhança de uma organização feudal”, que tinha por capital Mbanza Kongo.
A partir do contato inicial, os portugueses empreenderam no Congo um processo de
evangelização e tutela cultural que teve por objetivo imediato a nobreza do então florescente
império, particularmente os seus reis que, além de tomarem nomes portugueses e se
batizarem, passaram a comandar uma cruzada de cristianização abrupta do seu próprio povo.
Inicialmente, por meio de relações mais ou menos amistosas, Portugal procurou
influir sobre a realeza do Congo, no sentido de esta adotar não apenas sua língua e religião,
mas também moldar a organização política e social do seu domínio pelo modelo das
monarquias européias. Tanto é que, a partir de 1514, os próprios reis do Congo, através de
cartas e embaixadas, solicitavam “continuamente aos de Portugal lhes mandassem bispos e
apóstolos.” (MADAHIL 1940, p. 312) Cabe notar que os embaixadores e secretários dos reis
de Congo eram muitas vezes portugueses.
Missionários das mais diferentes congregações (franciscanos, dominicanos, lóios,
jesuítas, carmelitas e outros) levaram ao Congo o fascínio da religião católica, levantando
ali inúmeras igrejas, entre elas, a de Nossa Senhora do Rosário, em Mbanza Kongo. Não
tardou que embaixadores fossem trocados da capital do Congo, não apenas com Lisboa, mas
também com Roma.
Do mesmo modo, a escolha e as solenidades de entronamento dos reis de Congo
passaram a sofrer a influência da igreja católica, sendo muitos deles coroados por altas
autoridades eclesiásticas. Em 1648, o próprio Papa Inocêncio X presenteou uma coroa de
prata ao soberano D. Garcia Afonso II que a recebeu das mãos do padre João Francisco. O
Congo vivia período de
grande expansão e seu rei denominava-se orgulhosamente: “D. Garcia, Rei do Congo, Rei
de Angola, de Matamba, Kundi, Lula, soberano senhor de todos os Ambundos e doutros
numerosos reinos e senhorias que lhe estão ligados e submetidos, além dos que ficam na
margem direita do Zaire, Duque de Nsundi, de Mbamba, de Mbata, Marquês de Mapangu,
Dembe (Mpemba) e Kioua, Conde do Sonho e de Ovando.” (ALMEIDA 1940, p. 191)
Durante o reinado de D. Garcia, a ação dos “pumbeiros”, mercadores de escravos,
que até então havia deixado o território do Congo quase a salvo, dirigiu-se para terras de
Angola e interior de Benguela. Objetivava atender à maior demanda de cativos por parte das
possessões portuguesas nas Antilhas e nas Américas, entre elas o Brasil, e era protegida por
tropas do Rei de Portugal.
A presença ostensiva destas no Congo, entretanto, colidia com os objetivos
expansionistas de Dom Garcia. Daí o choque inevitável que acabou por ocorrer no ano de
1666, em Ambuíla. Naquela batalha, “o maior reencontro guerreiro de todos os tempos,
ferido em terras africanas”, segundo Antônio Almeida, os portugueses, comandados
por Luiz Lopes Siqueira, impuseram uma derrota definitiva ao Rei do Congo. Assevera
a historiografia lusa que as forças portuguesas contavam somente com 6.000 negros,
comandados por 300 a 400 brancos, e conseguiram “destroçar completamente os 100 mil (ou
900 mil, como querem certos autores) súditos daquele rei.” (ALMEIDA 1940, p. 492)
O Rei do Congo, Dom Garcia Afonso II, morreu durante a batalha e, com ele, seu
filho, o príncipe herdeiro. Rompia-se, assim, a linha de sucessão real congolesa. A partir de
então, o controle de Portugal sobre o Congo passou a ser absoluto. O título de Rei do Congo,
tolerado por conveniências de política colonial, tornou-se de significado apenas formal,
embora conservasse o prestígio do poder tradicional entre sua gente.
A DEVOÇÃO
Foi ainda no período inicial da presença de Portugal no Congo que os missionários
constituíram as primeiras irmandades de pretos, tanto na África quanto em Portugal. “A
relação com Nossa Senhora do Rosário - no mês de outubro - vem de uma tradição já
inaugurada em Portugal pelos dominicanos, que lá fundaram a Irmandade do Rosário para
os escravos negros e portugueses.” (MEYER 1993, p. 162) Do mesmo modo, no Congo,
a devoção a Nossa Senhora do Rosário pelos negros já se fazia presente. (8) Seu objetivo
inicial era cooperar na cristianização dos africanos, Assim, as irmandades, bem como as
festas, cerimônias e outras promoções por elas concebidas, tinham prioritariamente um
sentido devocional. Os jesuítas tornavam negros os seus santos (ou eram os negros que
faziam seus os santos católicos?). São Benedito, o Santo Rei Baltazar (dos Reis Magos) e,
principalmente, Nossa Senhora do Rosário eram os preferidos. Nossa Senhora do Rosário
aparecia, muitas vezes, em suas imagens, com o rosto pintado de preto e os negros tinham-na
por Iemanjá ou Janaína.
Nos primeiros séculos da colonização portuguesa, tanto na África como no Brasil, não
só os negros, mas também toda a sociedade eram organizados em irmandades. E os negros,
assim como os brancos, trabalhavam no sentido e faziam questão de que as igrejas dos seus
santos de devoção fossem iguais ou mais abundantes em requinte e beleza que as outras.
COROAÇÕES E ENTRONAMENTOS
Desde o início, ao lado dos cânticos religiosos e cortejos processionais, as confrarias
de pretos (e mesmo algumas de brancos) representavam coroações de reis, embaixadas reais
e batalhas. Já no Porto, durante as festas de Nossa Senhora do Rosário, quem informa é
Renato Almeida, representava-se, desde muito antigamente, a corte do Rei de Congos, com
seu rei e sua rainha. (BRANDÃO 1982, p. 104)
Coroações de reis e rainhas já eram costumeiras na África, mesmo antes da presença
européia. Afinal, as tribos tinham seus sobas. Embora reconheça nas coroações de Reis de
Congo, levadas a efeito pelas irmandades católicas, influências das festas ibéricas do ciclo
das janeiras, Arthur Ramos aponta-lhes traços africanos de “cerimônias totêmicas ligadas
ao patriarcado, com as suas festas cíclicas de coroação.” (RAMOS 1935, p. 89) De fato, na
descrição dos antigos Congos, envolvendo a coroação real, fica evidente a presença negra no
ritmo tempestuoso, na movimentação acrobática da dança e em elementos outros, como o
pálio, sob o qual seguem os reis e a boneca calunga, que depois sobreviveram no Maracatu.
Parece-me, entretanto, a levar em conta informações dadas por Souza Carneiro, em
Os Mitos Africanos no Brasil, que os rituais de coroação dos reis africanos possuíam feição
diversa da que aparece no auto dos Congos. Souza Carneiro descreve os reinados de negros
no Brasil, como eram concebidos dentro do cerimonial das religiões africanas e os separa
radicalmente das coroações de Reis de Congos pelas irmandades católicas.
Entre outras diferenças, explica que “no geral as realezas afro-negras não nasceram da
sucessão, mas da eleição de duas ou mais ‘nações’ afins ou de ‘famílias’ mais influentes ou
que já reinaram. A coroação era confiada a um membro proeminente de uma terceira que já
houvesse ocupado o trono ou gozasse do prestígio de fazer reinantes, ao qual se reservava o
direito de, em qualquer tempo, vetar a eleição e destronar o monarca.” (CARNEIRO 1937,
p. 135) Mais adiante, acrescenta: “O reinado no Brasil, fora a palhaçada dos reis de Congo,
- é o sumo-pontificado do culto, não havendo honras nem dignidades principescas, mas aos
ilustres, nobres e sábios iniciados nos mistérios da ognobi.”
“O rei-cabeça-de-geração é velho, representado no carneiro, servindo uma só palavra
para o definir: - agbô. É sempre um totem, - animal que é elevado a tabu e governa entre a
morte de um e a ascensão de outro rei ou de outro equeji-orixá.” (CARNEIRO 1937, p. 136)
A europeização do cerimonial de coroação dos reis dos Congos, fica evidente nas
solenidades que ocorrem no interior da igreja e também durante o trajeto do cortejo real.
A composição da corte, os trajes dos soberanos, a gesticulação em honra aos reis, o uso da
espada e do cetro, tudo lembra os rituais europeus da Idade Média. E a aposição das coroas
nas cabeças do Rei e da Rainha, pela pessoa do padre, vem confirmar o sentido de concessão
do poder terreno aos soberanos, pela mão divina da Igreja Católica, como acontece com os
reis europeus.
Vê-se que, além de reminiscências de rituais africanos de coroação, os Congos
guardam também suas origens nos “reinados” e “impérios” da Europa Medieval. Aliás,
esses reinados, festas de coroações de reis e rainhas, remontam a eras mais antigas e já
existiam em Roma, com suas Rainhas de Maio, e na Babilônia, onde “se tributavam em dias
determinados, honras a soberanos e escravos revestidos de insígnias reais.” (9)
Na Europa Medieval, por qualquer motivo, elegiam-se e coroavam-se reis e rainhas
de tudo, de maio, de corporações, da juventude etc. Van Gennep, em Folklore do
Auvergne et Velay, descreve os “Reinages” da França que em muitos aspectos
assemelham-se aos nossos Reinados de Congos. Diz ele: “No primeiro domingo de maio,
após as vésperas, o cura da paróquia nomeia para um novo ano, um Rei, uma Rainha, um
delfim, uma delfina, um condestável, todos obrigados a contribuir com as despesas
paroquiais por um donativo em cera ou oferenda em dinheiro. Os eleitos saem da igreja
dois a dois, um facho na mão, seguidos da multidão que os acompanha processionalmente.
(...)
Em Prondines, Torkem besse Heume l’Eglise, Lastic, Celes, no dia do padroeiro, antes
do Magnificat, o cura sobe ao púlpito para proclamar os ‘reinages’ e ‘contra-reinages’ para o
ano seguinte. No dia do ‘Reinage’, um pelotão formado de vinte rapazes parte da igreja para
ir buscar a rainha. Chegados a sua casa dão uma salva de tiros de fuzil e são convidados a
beber.
Depois a rainha se coloca entre duas filas. O cortejo vai então procurar o rei, depois a
contra-rainha e o contra-rei. Todos os quatro marcham entre os cavaleiros. Chegados à igreja,
o rei dá o braço à rainha, o contra-rei à contra-rainha, nova descarga de tiros de fuzil, depois
todos os quatro vão tomar seus lugares na nave. À saída da missa tem lugar uma procissão,
levando-se a estátua do santo padroeiro, os quatro titulares acompanham, dois de cada lado.”
(BRANDÃO 1982, p. 100)
Reinados desta natureza aparecem também na Espanha e em suas colônias americanas.
Os ‘cabildos” afro-cubanos, inclusive muito semelhantes aos nossos Congos e Maracatus,
fora de Havana eram conhecidos como reinados. Já em Portugal, os reinados apareciam com
o nome de impérios. Eram os “Impérios do Espírito Santo”. Em suas Páginas Folclóricas, o
notável etnógrafo português Luís Chaves informa que em Eiras, próximo de Coimbra, havia
até 1832, um Imperador do Espírito Santo. Seu cortejo incluía “o imperador com os pajens, a
câmara, a nobreza, a bandeira à frente, música, desfilava nas ruas (...) a cerimônia da entrega
da coroa e da espada, impostas pelo pároco da freguesia que o esperava no arco da capelamor
da matriz.” (BRANDÃO 1982, p. 103)
No Brasil, havia imperadores não só nas festas do Divino, mas também nas
movimentadas procissões de “Corpus Christi”. Também os índios, antes mesmo dos negros,
tiveram seus reinados. Há um depoimento de Fernão Cardim que fala de irmandades e
reinados de índios no Brasil, já em 1584. Diz ele: “Os portugueses têm muita escravaria
desses índios cristãos (na Capitania do Espírito Santo). Têm eles uma confraria dos Reis em
nossa igreja e por ser antes do Natal quiseram dar vista ao padre visitador de suas festas.
Vieram um domingo com seus alardos à portuguesa, e a seu modo com muita dança, folias,
bem vestidos, o Rei e a Rainha ricamente ataviados com outros príncipes e confrades da dita
confraria; fizeram no terreiro de nossa igreja seus caracóis abrindo e fechando com graça por
serem muito ligeiros.” (10)
Em muitos casos, também no Brasil, os negros, em vez de Reis de Congos ou de
outras nações africanas, coroavam-se Imperadores e Imperatrizes do Divino, como em
Lampadosa, no Rio de Janeiro, o mesmo acontecendo nos Açores e em outros países da
América do Sul e do Caribe.
Outras vezes, coroavam-se como o Santo “Reis” Baltazar, numa referência ao Rei
Mago de cor negra, a exemplo do que anotou Mello Moraes Filho acerca de uns Congos
ocorrido em 1742, no Campo de São Domingos, Rio de Janeiro. Vale observar que, tanto
nos Congos, quanto nos Reisados, não poucas vezes, aparecem referências (nos cânticos,
principalmente) aos três Reis Magos bíblicos. Mais comum, no entanto, entre os negros, era
a coroação dos Reis de Congo, largamente difundida, não apenas no Brasil (de São Paulo ao
Maranhão, incluindo Minas, Goiás e Mato Grosso), mas também nas Antilhas e nos Açores.
No Brasil, o momento de maior esplendor dos Congos parece ter correspondido à
segunda metade do século XVIII. Eles apareciam com destaque, por exemplo, nas famosas
procissões e cortejos do Triunfo Eucarístico, em Ouro Preto, e figuraram na festa de
esponsais dos príncipes reais, na Bahia, por volta de 1760.
Os Reis de Congo no Brasil Colônia e Império não eram tão-somente figuras
ornamentais, como podem parecer. Eles tinham por obrigação interceder por seus irmãos de
confraria, servir-lhes de intermediários nas relações com os brancos e nas disputas entre os
próprios negros. Mais que os outros, era ouvido e respeitado, como presidente da Irmandade.
Muitos negros viam nele traços divinos de realeza. (Como já citamos, entre as nações
africanas, o rei tinha algo de totem, de sobrenatural.) Ele era um líder, um conselheiro. Sua
intervenção trabalhava no sentido de amenizar a opressão sobre seus iguais e, deste modo,
manter uma certa harmonia social. Várias vezes, entretanto, como se viu, esses reis negros
lideraram rebeliões contra o domínio dos brancos.
De outra perspectiva, a coroação dos Reis de Congo no Brasil pode significar
também a relativização do poder real, seu rebaixamento, a coroação de um anti-rei. Em
Guaratinguetá, interior de São Paulo, a Festa de Coroação dos Reis de Congo realiza-se junto
com a festa de São Benedito. No momento em que o padre, durante as solenidades dentro da
igreja, vai retirar a coroa do velho rei e a colocar sobre a cabeça do novo rei, “são cantados
os versículos da liturgia católica: ‘Deposuit potentes de sed et exaltavit humiles’ (depôs os
poderosos do trono e aos humildes exaltou).” (ARAÚJO 1964, p. 200)
Em outros casos, ao lado do Rei “sério”, aparece um outro. João Dornas Filho, em
1936, viu durante um “Reisado”, em Itaúna, Minas, “reis temporários, também sob pálio,
com coroa e cetros de prata”, antecedendo os “reis perpétuos, de coroa à cabeça e sob o
pálio, ladeados por cortesãos empunhando as varas (emblemas de autoridade).” (in
CAMPOS 1980, p. 38)
Em todo caso, parece que, no geral, os brancos não só consentiam os reinados de
Congo, como até os incentivavam, procurando, através dessas encenações, infiltrar na mente
da população negra elementos do imaginário e do universo simbólico europeu “civilizado”.
Já os negros, ao mesmo tempo que se sentiam atraídos pela beleza visual e sonora das
solenidades de coroação ao modo ocidental, misturavam-nas com seus próprios rituais e,
assim, conseguiam perpetuar muitas de suas tradições. Enfim, os negros aceitavam o jogo
dos brancos para poder continuar brincando de rei.
As coroações de Reis de Congo mais antigas no Brasil parecem guardar traços mais
nítidos da cultura africana. No Campo de São Domingos, Rio de Janeiro, em 1742, os negros
reuniam-se numa Nação de São Baltazar, chamado Santo Rei, e dançavam nus da cintura
para cima, com passos de capoeira. À frente do cortejo, havia balizas que evoluíam como as
dos nossos Maracatus. O cortejo incluía o feiticeiro e outros personagens típicos das cortes
africanas. Mas já então, os Reis eram coroados pelo capelão e entronados no interior da
igreja.
Alceu Maynard Araújo descreve uma coroação de Reis de Congo, como era realizada
até a metade deste século, em Cunha, interior de São Paulo. “Na festa de Nossa Senhora
do Rosário, os personagens principais eram: rei, rainha, juiz de vara, juíza de vara, juiz de
ramalhete, juíza de ramalhete, capitão do mastro, alferes da bandeira. Os pajens eram os
membros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário que, em serviço, trajavam-se com opa.
Ao finalizar a festa, aparecia um novo personagem, o rei novo, com os demais cortesãos.
O rei vestia-se de terno preto e uma faixa rosa a tiracolo. Rosa é a cor da fita de N.
S. do Rosário. O distintivo real era uma faixa de quatro dedos de largura. A rainha vestiase
de branco ou rosa e trazia um diadema na cabeça. (...) O cortejo atravessava a cidade
desde a casa do rei velho até a igreja. Ao chegar à porta, o padre os recolhia e os abençoava
com água benta, benzendo as coroas conduzidas nas salvas pelo rei e pela rainha, enquanto
os coroinhas queimavam o incenso nos turíbulos baloiçantes. Ao se aproximarem do altar,
entregavam aos pajens suas coroas, os quais as depositavam em uma mesa coberta com
toalha de veludo de franjas doiradas, entre dois círios acesos. Acabada a missa, novamente
os fâmulos retiravam de cima da mesa as coroas e restituíam-nas reverentemente aos seus
amos.” (ARAÚJO 1964, pp. 202-203)
EMBAIXADAS E BATALHAS
Além dos cânticos e cortejos devocionais, das coroações e entronamentos reis, os
Congos incluem toda uma parte dramatizada, composta de embaixadas reais e batalhas. No
Centro-Sul do país, esta parte aparece num auto com nome distinto, no caso as Congadas,
mas no Nordeste as embaixadas e batalhas fazem parte do corpo dos Congos. Tanto nos
atuais Congos de Milagres como nos Congos descritos na bibliografia sobre o assunto, esta
parte dramatizada parece originária de fatos históricos de duas naturezas. A primeira, mais
antiga, refere-se às batalhas e embaixadas trocadas pelos antigos reinos do Congo e de
Angola, no tempo da Rainha Ginga e do Rei Henrique Cariongo. A segunda, introduzida
pelos missionários cristãos, tem como ponto de referência a lendária Chanson de Roland,
epopéia nacional francesa que descreve a batalha de Roncesvales, ocorrida há mais de mil e
duzentos anos, nas proximidades da atual fronteira entre França e Espanha. Nos dois casos,
os fatos históricos trabalhados pelo mito chegaram aos Congos em versões lendárias.
A vertente africana das embaixadas e batalhas tem seu conflito central cravado no
arquétipo da morte e ressurreição do herói. Conta a história incidentes armados ocorridos na
fronteira entre dois reinos africanos, onde o filho do Rei do Congo é ferido mortalmente pelo
inimigo e, em seguida, é ressuscitado por um feiticeiro. Arthur Ramos dá uma versão onde
este enredo aparece melhor explicitado e desenvolvido. “O desenvolvimento da brincadeira
é o seguinte: a Rainha envia seus embaixadores à corte do Rei Congo. Há várias peripécias
no meio das quais surge o Mameto que pede satisfações ao Embaixador. Declara-se a luta.
Morre o Mameto (em algumas versões é morto por uma entidade ameríndia: o Caboclo, de
olho trágico e brandindo um terrível tacape). Mas o Quimboto tem o poder de ressuscitar o
Mameto, fazendo-o com evocações, passes mágicos e cânticos que são respondidos pelo
coro. O Mameto ressuscita em meio a uma grande alegria e o auto termina com danças e
cantos que festejam o acontecimento.” (RAMOS 1935, p. 43)
A Rainha, costumeiramente, é a famosa Ginga Nbândi que tinha o nome português
de Ana de Souza e viveu na primeira metade do século XVII. “Rossini Tavares de Lima,
ao relatar a história desta rainha diz que ‘estes fatos históricos eram lembrados todos os
anos em Angola, nas festas que a eles eram dedicadas.” (ANDRADE 1982, p. 282) O Rei
de Congo, mais comumente (a exemplo de Milagres), é Henrique Cariongo, e Mameto é
seu filho e príncipe herdeiro que, em alguns casos, toma o nome de Suena e noutros (como
em Milagres) é substituído pelo Guia como vítima mortal do ataque inimigo. Quimboto é o
feiticeiro que, a pedido do Rei, consegue ressuscitar o príncipe herdeiro e por tal feito ganha
a mão da princesa em casamento. A presença do Caboclo como responsável pela morte do
príncipe herdeiro talvez se explique como proveniente dos Quilombos, um outro auto afrobrasileiro
que se baseia nos fatos envolvendo o Quilombo dos Palmares, atacado por tropas
compostas de índios, mesmo que sob o comando de brancos. (11)
Nas Congadas e Cucumbis da região Centro-Sul do país também estes fatos são
relembrados. Mello Moraes Filho, descrevendo um préstito de Congos num auto de
Cucumbis, na Bahia, informa que “o Mameto executa danças que imitam o cobrejar das
serpentes, o salto flexível do jaguar, o balançar dos brigues negreiros nas calmarias do mar.”
(MORAES FILHO 1946, p. 173) O tema da morte e ressurreição do herói está presente,
assim como a numerosa incidência de versos em quimbundo.
Arthur Ramos, em O Folclore Negro do Brasil, narra deste modo os fatos históricos
que inspiraram o drama dos Congos: “Em 1618, os vassalos de Ginga Nbandi, oitavo
rei de Matamba, cansados da tirania do velho rei, revoltaram-se e mataram-no. Assumiu
o poder Ngola Nbandi, filho do velho Ginga Nbandi e de uma escrava (e que não deve
ser confundido com o primeiro Ngola Nbandi), mercê da conspiração preparada e, para
consolidar o mando supremo dos reinos de Angola e Matamba, mandou decapitar o irmão,
a madrasta e um sobrinho, filho de uma irmã, a que seria a futura rainha Ginga, a famosa D.
Ana de Souza. Esta nunca perdoou ao irmão a afronta recebida, (...) na primeira oportunidade
a católica D. Ana vingou-se do irmão, envenenando-o na pequena ilha do Cuanza, (...) D.
Ana de Souza foi aclamada soberana. Era o reinado da absoluta e cruel rainha Ginga que
se iniciava. Apostatou do catolicismo e sustentou contra os reinos vizinhos e o colonizador
encarniçadas lutas, que duraram muitos anos.” (RAMOS 1935, p. 59)
Observa ele a partir de um olhar psicanalítico: “Vimos a revolta dos vassalos (...)
que se insurgiram contra o velho rei Ginga Nbandi e o mataram. Toma o poder um dos
filhos, mas no meio de uma grande confusão, que prepara o triunfo do matriarcado. Vem a
rainha Ginga. Rainha é mãe (...). A mãe que governa e, para reagir ao Édipo, se torna cruel,
sustentando contra os povos vizinhos e os colonizadores terríveis e encarniçadas lutas. É
nesse sentido que ela personifica o ‘princípio mau’, a que alude Mário de Andrade. Para
manter o seu poder e castigar os filhos que desejam violar o tabu edipiano, ela persegue-os e
castra-os. (...) Os filhos castrados não poderão violar o tabu, não poderão assumir o papel de
pai, não tomarão o poder.” (RAMOS 1935, pp. 63/64)
A partir destes fatos, tornados lendas, os Congos teriam estruturado seu bailado
guerreiro, onde Artur Ramos vê o “delineamento dos grandes complexos primitivos: o poder
absoluto do pai, a revolta dos filhos, a morte do pai, a confusão, a instalação do matriarcado
e a preparação do herói para o seu advento, o sacrifício e a morte do herói-filho, a sua
ressurreição.” (RAMOS 1935, p. 63)
Os missionários europeus, assim como, provavelmente, também os portugueses em
geral, procuraram sincretizar estas referências à história africana, aos fatos de sua própria
história. Ao núcleo ressurreicional do enredo africano, trataram de somar um outro, de
caráter conversional, e escolheram as lendas que se desenrolam em torno das cruzadas cristãs
contra mouros e turcos infiéis. Particularmente propícia a cativar o imaginário guerreiro e
monárquico dos negros, eram as canções de gesta, as epopéias nacionais, que floresceram
na Europa pelos fins do século XI, particularmente as do ciclo de França, ou carolíngio, que
tinham em Carlos Magno a figura central.
De todas as façanhas daquele “grande campeão catequizador”, as que parecem servir
de referencial maior para as batalhas dos Congos, segundo Alceu Maynard de Araújo, são
as narrativas da Canção de Rolando, muito populares nos sertões nordestinos, por via da
literatura de cordel. Este grande poema épico narra a vinda de Carlos Magno à Península
Ibérica para combater os mouros, no século VIII, quando o emir de Saragoça e seus aliados,
em luta contra o califa de Córdova, Abderramana I, solicitou a ajuda do imperador cristão.
Após trocas de embaixadas entre cristãos e infiéis, Carlos Magno regressa à Gália para
combater os saxões e outros povos que contra ele sublevaram-se. No caminho, ao atravessar
os Pirineus, é emboscado pelos vascônios, povo que habitava o vale de Roncesvales. Na
batalha, os francos são exterminados e Rolando, um dos 12 pares de França, morre, como
resultado do esforço que fez ao tocar a buzina para prevenir o imperador cristão do ataque.
(ARAÚJO 1964, p. 217)
Roncesvales era passagem obrigatória para quem, na Idade Média, transitava entre a
Península Ibérica e o restante da Europa. Por seu vale atravessava o caminho dos peregrinos
que se dirigiam a Santiago de Compostela - cidade sagrada da cristandade. E foram aqueles
romeiros que, a partir do século IX, passaram a difundir os fatos da batalha de Roncesvales,
que logo se tornariam lendários. Trovadores, menestréis e cegos andarilhos encarregaram-se
de espalhar a épica de Carlos Magno por Espanha e Portugal que posteriormente chegaria às
terras do Novo Mundo e ao Nordeste brasileiro.
R. Menédez Pidal, em seu livro Poesia Juglaresca y Juglares, confirma este fato ao
afirmar que: “Los juglares franceses, al entrar em España por Roncesvalles, habián de sentir
una commoción profunda en los recuperdos proprios de su juglaria; en su alma, la vista de
aquellos montes levantaba un hervidero de memorias de los dose pares muertos alli, y del
grand emperador que habia conquistado de la morisma el camino que ellos como peregrinos
iban a recorrer.” (12)
Segundo Alceu Maynard de Araújo, a moderna crítica histórica nega a vinda de
Carlos Magno à Espanha. Daí a suposição de que mesmo a Chanson de Roland, em sua
versão francesa, já contenha o trabalho do mito sobre os fatos históricos. E no caminho
por eles percorridos até chegarem ao auto dos Congos, o trabalho da lenda transformou-os
completamente. Segundo o citado folclorista brasileiro: “A lenda substitui gascões pelos
sarracenos, já pela existência da velha contenda entre mouros e cristãos, ela inventou a
infrangível amizade entre Rolando e Oliveiros; ela nos traz Fier-à-bras, herói sarraceno de
uma canção de gesta do século XII, dando-nos Ferrabrás, filho do Almirante Balão, o rei de
Alexandria; ela nos coloca o cavaleiro que se apaixonou pela filha do emir, a bela Floripes -
o valoroso Gui de Borgonha.” (ARAÚJO 1964, p. 217) Em alguns Congos, quem se apaixona
por Floripes é Oliveiros.
Luís Chaves fala da existência do “Auto da Floripes”, pelo menos até 1945, em
Viana-do-Castelo, Portugal. (CHAVES 1945, p. 53) Em 1942, ele descreve como o auto era
representado na localidade de Neves. Os brincantes, como nos Congos, acompanhavam a
procissão, “fazendo trejeitos e pantomimas.” Representavam a luta entre dois partidos, o dos
Cristãos e o dos Turcos, cada qual com seu ‘castelo’. Transcorria a céu aberto. Do comando
cristão, participava o Rei Carlos Magno, secundado pelo Conde Oliveiros e um portabandeira.
Também os turcos tinham seu porta-bandeiras e mais o Rei Almirante Balão, de
Alexandria, e seu filho, o cavaleiro Ferrabrás. Os cristãos, acastelados em Mormiunda, eram
cercados pelos turcos. Todos portavam espadas que manejavam com maestria durante as
batalhas. Embaixadas guerreiras eram trocadas, com combates de versos. “Fazem simulacros
de ataques e de assalto aos castelos, com passes simbólicos de mímica guerreira. Tiros.
Música. Bailados. ‘Mouros’ presos. Cristãos presos. Chega Floripes, filha do ‘rei mouro’.
Brutamontes guarda-a. Combates singulares. Os ‘mouros’ (na verdade turcos) são vencidos.
Ferrabrás é convertido. Floripes foge para o castelo cristão.” (13)
No Brasil, a epopéia de Carlos Magno circulou inicialmente entre as camadas letradas
da população, no livro: “História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França”,
escrita por Alexandre Caetano Gomes Flaviense, traduzida do castelhano por Jeronymo
Moreira de Carvalho e editada pela Livraria Império do Rio de Janeiro. Em seguida,
particularmente no Nordeste, circulou em folhetos de cordel. Neste século, a referência
narrativa mais usual, notadamente no Ceará, entre mestres de Congos e de Reisados de
Congos, para encenar embaixadas e combates, é, como se disse, o folheto Batalha de
Oliveiros e Ferrabraz, escrita por Leandro Gomes de Barros, ainda no século passado e, a
partir daí, difundida por toda a região. Resumir-se-á aqui seu enredo:
Um cavaleiro turco de nome Ferrabrás, filho do Almirante Balão, rei de Alexandria,
à frente de uma grande tropa, adentrou-se em terras européias, em busca de aventuras.
Ferrabrás ficara famoso por ter penetrado em Jerusalém e, além de haver matado alguns
apóstolos, apossado-se de vários objetos sagrados cristãos, entre eles, um bálsamo/ungüento,
capaz de sarar qualquer ferida.
Chegando aos campos de Mormionda, onde presumivelmente estava Carlos Magno
e seus 12 Pares de França, Ferrabrás, em altos brados, desafiou a todos para uma luta
pessoal. Sabedores da fama de Ferrabrás, os pares de França, cansados das últimas batalhas,
e desgostosos com o Rei Carlos Magno, que dera o mérito das vitórias aos cavaleiros mais
antigos, nenhum deles ofereceu-se para dar combate a Ferrabrás, inclusive Roldão, o mais
amado entre todos.
Finalmente, Oliveiros, um dos pares de França, filho de Rogener (ou Rogner, nas
versões do folheto até 1920), mesmo prostrado no leito em decorrência de ferimentos
recebidos nas últimas batalhas, vendo a recusa de seus pares, pediu a Carlos Magno que o
autorizasse a enfrentar Ferrabrás. Carlos Magno aquiesceu, mas não sem muita relutância,
por causa do estado precário do outro. A Ferrabrás, Oliveiros apresentou-se para dar
combate, usando o nome de Guarim, seu escudeiro. Vendo-o, porém, apresentar-se ferido
para a batalha, o turco interrogou: “que fizeste ao teu senhor?”
Então, Oliveiros profere o famoso desafio, numa estrofe que ainda hoje é recitada
com ligeiras modificações pelos brincantes do Reisado de Congo no Cariri: “- Levantate,
cavalheiro (14)/prepare a arma, se apronte/pegue o cavalo e se monte/trate de ser bom
guerreiro/ponha seu corpo ligeiro/veja não dê uma falha/a morte entre nós dois se espalha/a
hora de um é chegada/lance mão de sua espada/vamos entrar em batalha.” Ao que o turco
responde, em não menos famosa réplica: “- Quem és tu tão pequenino/que vem me desafiar?/
achas que vou me ocupar/em dar batalha a menino?/és louco ou não tens tino...” (15)
Ferrabrás admira-se de o senhor de Oliveiros ter permitido que ele entrasse em
combate naquele estado. Mas Oliveiros insiste na peleja e os dois logo iniciam a disputa.
Aos primeiros lances da refrega, o turco reconhece que está frente a um grande adversário
e Oliveiros acaba por reconhecer sua legítima identidade. Os dois lutam bravamente, mas
com dignidade, grande respeito e admiração um pelo outro. Ferrabrás oferece a Oliveiros o
bálsamo sagrado para que este, curando seus ferimentos de antigas pelejas, pudesse lutar com
o turco de igual para igual. Oliveiros agradece, mas não aceita e, à força da espada, consegue
arrebatar de Ferrabrás o dito bálsamo, com o que põe-se em forma para a luta. Em seguida,
joga o bálsamo dentro de um rio, dando-lhe fim.
A refrega prossegue feroz, ambos mostrando muita valentia e lealdade, até que
Ferrabrás cai gravemente ferido. Oliveiros, que havia criado afeição pelo inimigo durante a
luta, por motivo de seu destemor e fidalguia, em vez de desferir-lhe o golpe mortal, implora
por sua conversão. Promete poupar-lhe a vida se o turco adotar a religião cristã. Mesmo
assim, Ferrabrás não se dobra e levanta-se para pelejar. Oliveiros, com grande pesar, preparase
para lançar-lhe a última estocada, quando Ferrabrás, como tocado pelo Espírito Santo,
resolve converter-se. Com o turco tornado cristão, os dois ficam amigos e, ajudando-se
mutuamente, articulam um final favorável para aquela situação.
Nas edições mais antigas do folheto, a narrativa prossegue um pouco mais
descrevendo a luta de Oliveiros contra as tropas do Almirante Bolão. Já na edição das filhas
de José Bernardo da Silva, a narrativa estanca logo após a conversão de Ferrabrás. Em todo
caso, porém, a perspectiva com que se encerra o folheto é a da iminência de novos combates.
Sabe-se que as representações de batalhas de espada eram comuns nas festas da
Europa Medieval. Luís da Câmara Cascudo, em O Folclore nos Autos Camoneanos, (16)
refere-se a uma festa ocorrida em Portugal, no ano de 1645, onde teve lugar uma dança
de espadas, fingindo batalhas. Durante o mesmo século, em Guimarães, também Portugal,
segundo Luís Chaves, “os oleiros preparavam uma dança de espadas com dez homens
bem industriados. O grupo apresentava composição mais completa e pomposa - conduzia
bandeira, levava rei coroado, um pajem a acompanhá-lo, e para cadência da dança, tamboril
e gaita.” (BRANDÃO 1982, pp. 104/105)
Portanto, aquelas batalhas já eram costume europeu de épocas remotas.
Apareciam em meio a narrativas de guerras santas entre cristãos e infiéis, lendas ligadas
tanto ao ciclo do Rei Artur da Távola Redonda e seus Cavaleiros, como ao ciclo carolíngio
e às Cruzadas em geral. Com estas características, elas aparecem na Cavalhada, folguedo
brasileiro tradicionalmente brincado pelas elites brancas. Já nos autos onde a participação
negra e mestiça é preponderante, como os Cucumbis, as Marujadas (ou Fandangos), os
Reisados, os Guerreiros, os Moçambiques, os Caboclinhos, os Caiapós, as Congadas e
os Congos, as narrativas guerreiras fundem lendas africanas e européias e Carlos Magno
aparece muitas vezes como o Rei de Congo.
Cabe observar também que, nestes autos mestiços, ao tema da conversão, introduzido
espertamente pelos missionários europeus, o imaginário popular muitas vezes soma o da
morte e ressurreição do herói. É o que acontece particularmente nos Congos e Congadas. Já
nos Reisados e Guerreiros, o tema da ressurreição, geralmente, é guardado para o entremez
do Boi.
FUNÇÕES E INTERPRETAÇÕES
Os mais diferentes estudiosos brasileiros, entre eles Mário de Andrade, Théo Brandão
e Alceu Maynard de Araújo, consideram os Congos um instrumento utilizado pelos brancos
para a aculturação dos negros, ou mesmo um pára-choque entre senhores e escravos.
Para Alceu Maynard, os Congos eram “uma tentativa da Igreja em levar as populações a
aceitarem um determinado padrão de valor cultural, usando e aproveitando determinados
elementos do folclore local, e introduzindo e criando outros.” (ARAÚJO 1964, p. 194) Deste
modo, através de um sincretismo, a Igreja não apenas desviava o temperamento belicoso e
rebelde dos negros, em direção a outros opositores que não o senhor branco, como sanava
conflitos oriundos de diferenças e divergências entre as várias nações de negros, unido-os
sob uma instituição da religião católica. O Rei negro, coroado, era não apenas uma
autoridade conciliadora entre os da mesma raça, mas também um intermediário nas relações
destes com os brancos.
Numa pedagogia ardilosa, segundo o mesmo autor, o jesuíta, sobre o conhecido,
começou a ensinar o desconhecido. Utilizou o passado africano, como ponto de partida
para incentivar no negro o abandono das religiões ditas pagãs (a macumba, o candomblé),
do maometanismo e a adoção da religião do colonizador. Ensinou-lhe a distinguir o Bem
(cristão) e o Mal (mouro, turco e pagão) e a tomar o partido do Bem na luta contra o Mal,
como o caminho para conhecer as delícias do Céu. Por ser útil aos seus intentos, os brancos
não apenas consentiam os Congos, como até os promoviam.
Alceu Maynard de Araújo faz uma diferenciação entre três tipos de manifestações do
folclore negro: “Congada - que é dos negros e ministrada pela Igreja; Batuque, condenada
pela Igreja, favorecida pelo senhor: era a dança da prostituição das senzalas; e finalmente a
Macumba ou Candomblé, condenada pelos patrões brancos e pela Igreja, mas tradicional do
negro livre.” (ARAÚJO 1964, p. 226)
Théo Brandão acompanha o mesmo raciocínio e pergunta se não “será mais exato
admitir que os portugueses não apenas consentiram, mas até incentivaram e promoveram
coroações e reinados de negros, mesmo arcando com possíveis perigos dessas instituições,
por se tratar de costumes, de práticas imitadas, decalcadas em usanças e “mores” já
existentes não em África, mas em Portugal?” (BRANDÃO 1982, p. 100) Conclui afirmando
que, diferentemente da atitude amistosa e incentivadora que mantinham em relação aos
Congos, os brancos não prestigiavam com a presença e até proibiam o culto aos orixás
africanos, este sim uma forma de manter presente no negro os laços com uma cultura que o
diferenciava do branco.
Para o autor alagoano, foram as autoridades civis e a própria igreja os agentes
brancos, que reinterpretaram ao seu modo as manifestações do folclore negro para dar
origem aos Congos. E Alceu Maynard Araújo chega a levantar a hipótese de que foi o
jesuíta não somente o incentivador e promotor mas até o responsável pela disseminação das
manifestações folclóricas dos negros, uniformemente, em todo o território brasileiro, e não
apenas dos Congos, mas até do Bumba-meu-boi. (ARAÚJO 1964, p. 214)
Os argumentos de alguns dos mais brilhantes folcloristas são irrefutáveis. Apesar de
algumas revoltas contra os brancos chefiadas por “reis” negros, é inegável a simpatia que
os brancos dedicavam a estas confrarias de negros em torno de santos católicos. No Ceará,
por exemplo, era o próprio Presidente da Província que sancionava os “compromissos” das
Irmandades de Homens Pretos. (CAMPOS 1980, pp. 41 a 53).
Entretanto, parece que a posição dos negros não foi apenas de aceitação pacífica de
uma imposição. Eles não apenas foram atraídos pelos Congos, como tomaram-nos para
si. Viam neles uma forma de, sem abrir mão de sua própria cultura, inserirem-se numa
sociedade dominada pelos brancos. As batalhas e coroações de reis ao modo ocidental,
funcionavam para os negros como uma representação de suas próprias batalhas e coroações.
Nos ‘santos pretos’ do hagiológio cristão, eles viam uma representação de seus próprios
orixás. Enfim, os negros faziam uma leitura dos Congos a partir dos seus próprios mitos e
história.
Nos Congos, os negros viam, ainda, uma possibilidade de organização grupal, de
união em defesa de seus interesses, de afirmação social (nas procissões, os Congos tinham
posição de destaque na hierarquia do cortejo), enfim, de guardarem entre si laços de
afetividade e solidariedade. Tanto é que, desaparecida a escravidão, retirado o interesse da
igreja, suspensa a proibição das religiões negras, os Congos continuam a existir, quando não
em sua forma original, pelo menos nas coroações, entronamentos e batalhas de folguedos
outros, deles provenientes.
Hoje, os Congos são folguedo do povo pobre (e não apenas dos negros) das
comunidades mais afastadas ou da periferia das cidades. No Centro-Sul do Brasil, muitas
vezes, aparecem com mais freqüência e esplendor, se comparados com os de algum tempo
atrás, notoriamente em São Paulo e Minas, onde existe inclusive uma Federação deles e
são tratados com interesse pelas entidades ligadas à cultura e ao turismo. Em Uberlândia,
por exemplo, a presença dos Congos é marcante. Nas festas dos ‘santos pretos’, a cidade
é praticamente tomada por cortejos de dezenas de Congos que, após percorrerem seus
diferentes bairros, concentram-se na praça principal, constituindo um espetáculo de notável
beleza e afirmação popular.
Dos Congos, nasceram os Maracatus, Taieiras ( que tematiza a Rainha), Cucumbis,
Congadas e, fundidos a elementos de origem européia e/ou ameríndia, foram gerados os
Reisados, Guerreiros, Bumbas-meu-boi, Caboclinhos etc. Já os Quilombos, que também
tratam de batalhas e disputas de rainhas, como foi dito, estão ligados aos fatos históricos que
envolveram o Quilombo dos Palmares.
No Ceará, a memória dos Congos está melhor preservada nos Reisados de Congos.
Dos autos dos Congos, propriamente ditos, ligados a irmandades de santos pretos, resta,
ao que se saiba, apenas o de Milagres, que aparece na época tradicional das festas do
Rosário e nas festas de outras santas padroeiras. Com relativo prestígio entre a população
e junto à igreja, ele debate-se entre o resgate da memória dos Congos mais antigos e seu
abrasileiramento. Mestre Doca Zacarias tenta reinterpretar os fatos da história africana e da
saga de Carlos Magno, à luz da história brasileira. A luta entre os dois reis ele busca traduzir
pela luta entre o Rei de Congo (que é o rei negro) e o Rei brasileiro, no caso Dom Pedro
II. Esta luta encontraria resolução na vitória do Rei de Congo e na posterior intervenção da
Princesa Isabel, libertando os escravos.
No corpo do auto, como é apresentado na igreja e nas ruas do Rosário (em Milagres),
tal interpretação, porém, não é percebida e as referências à luta entre reinos africanos, bem
como às façanhas dos pares de França, aparecem misturadas e de modo confuso. Além do
mais, Doca Zacarias não consegue recolocar com propriedade elementos arquétipos, como
a morte e ressurreição do herói (embora haja a morte e ressurreição do Herculano) e outros,
existentes nos antigos Congos. Talvez isto possa acontecer no futuro e a Princesa Isabel,
figura histórica já um tanto mitificada pelo imaginário brasileiro, substitua a Rainha Ginga,
tornando-se uma espécie de mãe dos pretos, também nos Congos de Milagres (e de outros
lugares). Mas isso são possibilidades.
Por enquanto, permanece o entronamento do Rei pelas mãos sagradas do padre; a
devoção a Janaína, na figura de Nossa Senhora do Rosário; o heroísmo das batalhas; e a
posição de honra ocupada por gente pobre, ao lado do andor da santa, nas procissões da
igreja.
Notas
(1) - O Guia que aparece em versos dos Congos de Milagres tem sua origem explicada por
Manoel Querino, em A Bahia de Outrora, livro editado em 1922. Na página 58, ele diz: “o
Mameto, de outras versões, que morre e é ressuscitado pelo quimboto, aqui se transforma no
Guia que é enfeitiçado por um indígena.” (in RAMOS 1935, p. 55)
Em Xiririca, São Paulo, também aparece uma referência ao Guia, como o primeiro
Conguinho. Descrevendo a brincadeira, Alceu Maynard Araújo diz: “Dos congos, ou melhor
conguinhos, porque todos são meninos, seus nomes são segundo a ordem: primeiro é Guia,
segundo Sufator, terceiro Dalquim, quarto Ansico da Guiné, quinto Zéfe, sexto Zambásio,
sétimo Zaía (Isaías) e oitavo Londado.” (ARAÚJO 1964, p. 267)
(2) NOGUEIRA, João: Os Congos, Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, 48: 89-100,
1934. In SERAINE 1983, p. 84.
(3) Isto reforça, mais uma vez, a constatação não apenas da procedência de muitos elementos
dos nossos folguedos, mas também a importante influência que Alagoas exerceu e exerce
sobre o folclore do Cariri cearense.
(4) NOGUEIRA, João: Os Congos, Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, 48: 89-100,
1934. In SERAINE 1983, p. 86.
(5) Segundo edição de 1976 das filhas de José Bernardo da Silva, em Juazeiro do Norte.
Nas versões anteriores, até pelo menos, 1920, em vez de ‘desusadas’, aparecia ‘escusadas’.
Ver: “Literatura Popular em Verso - Antologia (Tomo II), Fundação Rui
Barbosa/Fundação Universidade Regional do Nordeste, Rio de Janeiro/Campina Grande,
1976.
(6) Estes versos são relativos a resposta de Ferrabrás, à primeira oferta de conversão ao
cristianismo a ele feita por Oliveiros. Não se conseguiu, entretanto, saber a origem da
palavra “nemunaico”, deste modo pronunciada repetidas vezes, ante grande insistência, por
Mestre Doca Zacarias.
(7)Marlyse Meyer cita entre os santos de devoção dos negros, Santa Isabel, segundo ela
confundida com a Princesa Isabel, a redentora abolicionista. (MEYER 1993, p. 162)
(8) “Aliás, no próprio Congo, já havia essas confrarias negras com os santos da sua proteção,
introduzido pela catequese dos missionários portugueses: Nossa Senhora do Rosário.”
(RAMOS 1935)
(9) Fernand Nicolay, citado por BRANDÃO 1982, p. 102.
(10) CARDIM, Fernão: in Tratado da Terra e Gente do Brasil, citado por BRANDÃO 1982,
p. 105.
(11) Nos Reisados cearenses, mesmo nas modalidades que não o Reis de Congo, aparecem
muitas vezes os caboclos, como sinônimos de índios.
(12) PIDAL, R. Menédez: Poesia Juglaresca y Juglares, Centro de Estúdios Históricos de
Madrid, 1924, p. 338; citado por ARAÚJO 1964, p. 217.
(13) CHAVES, Luís: Danças, bailados & mímicas guerreiros, Separata de Ethnos, Instituto
Português de Arqueologia, História e Etnografia, Lisboa, 1942, Vol. II, pp. 23 a 25. Citado
por ARAÚJO 1964, p. 219.
(14) Nas edições do mesmo folheto em português com grafia antiga, a palavra que aparece é
‘cavalleiro’.
(15) BARROS, Leandro Gomes de: Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, Juazeiro do Norte,
Filhas de José Bernardo da Silva, 1976.
(16) CASCUDO, Luís da Câmara: O Folk-lore nos autos Camoneanos, Departamento de
Imprensa, 1950. Citado por ARAÚJO 1964, p. 219.
Capítulo III - O REISADO DE CONGO
Filho imediato dos Congos, de quem herdou a estrutura de corte, os entronamentos,
destronamentos e batalhas reais, o Reisado de Congo, ou Reis de Congo, somou a este o
folguedo do Bumba-meu-boi, com seus inúmeros entremezes. “O Reisado de Congo original
mesmo é este que a gente brinca, esse que tem espada, que tem trágico!” Explica Aldenir
Calou, Mestre de Reisado em Crato. No Ceará, estende-se por todo o Cariri e dali chega
até a outras regiões (quase sempre levado por caririenses). Espalha-se através dezenas de
companhias, principalmente nos municípios de Juazeiro, Crato e Barbalha, mas também em
Jardim, Milagres, Mauriti, Araripina (Pernambuco), Missão Velha, alcançando inclusive
Cedro e Campos Sales. Não por coincidência, tanto no Ceará quanto no Nordeste, em geral,
é mais encontrado em zonas de influência de imigração alagoana e no próprio Estado de
Alagoas, onde mereceu um detalhado estudo de Théo Brandão. (BRANDÃO 1953)
Em território cearense, entretanto, tendo chegado provavelmente no final do século
passado, projetou-se de tal modo em quantidade e qualidade que hoje podemos dizer
há um Reisado de Congos local, com variações próprias de figuras, entremezes, peças
e embaixadas. Vale observar que não só nos Reis de Congos caririenses há numerosas
referências a nomes de cidades e aos naturais de Alagoas. Também nos Reisados de Alagoas
(ainda da primeira metade deste século), aparecem freqüentes referências a Juazeiro do Norte
e ao Padre Cícero, evidenciando a influência recíproca.
Os brincantes do Reisado (atores/dançarinos) compõem um conjunto de figuras
(personagens fixos) que, além das diversas partes obrigatórias do Reis de Congo, executam
bailados que chamam peças (canções cantadas e dançadas) e encenam uma série de
“entremeios” (corruptela de entremezes). (1) Seu espetáculo compõe-se de Marcha em
Cortejo, Abertura da Porta, Entrada, Louvação do Divino, Entronamento e Destronamento
do Rei, execução de Peças e Entremezes (ou “Entremeios”, como dizem os brincantes),
comédias do Mateus, encenação de Embaixadas e Batalhas, Despedida. Seus entremezes
mais costumeiros são o Boi, a Burrinha, o Jaraguá, São Miguel a Alma e o Cão, o Velho
Anastácio, o Urso e o Italiano, o Sapo, Pai Tomé e Mãe Maria, a Sereia, o Bode, o Babau, o
Lobisomem, o Guriabá, a Doida, o Cangaceiro e o Soldado, e o Gigante.
Comumente, uma companhia de Reisado de Congo compõe-se das seguintes figuras:
Rei, Mestre, Contramestre, dois Embaixadores, dois Guias, dois Contraguias, dois Coices,
dois Contracoices (2), quatro Figurinhas (também chamadas de Marujos ou Romeirinhos,
sendo que os dois derradeiros são os Bandeirinhas) e dois Mateus (com nomes diferentes,
tipo Cravo Branco e Flor do Dia). Algumas vezes, aparecem também a Rainha e a Catirina,
obrigatórias na parte dos Quilombos. Os tocadores (zabumbeiros, violonistas, violeiros,
rabequeiros, sanfoneiros, pandeiristas, tocadores de caixa, de triângulo, de ganzá etc.) não
são considerados da companhia, mesmo que trabalhem costumeiramente com ela. Eles são
contratados por fora, apenas acompanham a companhia como agregados.
Esta estrutura hierárquica dos Reisados de Congo, além de óbvias inspirações nas
cortes medievais européias, guardam notável inspiração na estrutura hierárquica dos
engenhos de açúcar, da sociedade canavieira do Brasil Colônia, bem como nos cortejos de
vaqueiros e tangerinos que acompanhavam o transporte das boiadas, do sertão às feiras, nos
centros urbanos, durante o mesmo período.
Assim é que o Rei pode ser comparado ao senhor de engenho, personagem um
tanto quanto resguardado do conflito com o escravo, distante e com certa aura de justiça e
bondade. Muitas vezes, os escravos perseguidos e castigados pelos feitores recorriam aos
senhores de engenho, na esperança de deles obterem justiça. Também no Reisado, o Rei
mantêm-se distante e comunica-se com os brincantes através do Mestre (uma espécie de
feitor), com quem fica o encargo da disciplina e da organização da brincadeira.
Nas fazendas dos senhores de engenho, além do feitor (chefe dos trabalhos no eito),
havia o Mestre (chefe dos trabalhos no engenho de açúcar). Sob seu encargo ficava o trato
direto com os trabalhadores e a responsabilidade de organizar e comandar a produção,
“pelos seus conhecimentos sobre o preparo do produto fazia jus à mais alta remuneração”.
(ANTONIL 1967, p. 62)
Também a Rainha do Reisado guarda certa semelhança com as senhoras de engenho.
Estas tinham uma vida contemplativa e sedentária como se supõe tenham as rainhas, viviam
paradas em seus redutos ou eram carregadas em redes ou liteiras que funcionavam como
tronos. Isto talvez tenha a ver com a atitude passiva das rainhas de Reisado que permanecem
o maior tempo da brincadeira sentadas em suas cadeiras.
O Contramestre é também encontrado no engenho de açúcar. Antonil fala
explicitamente que o banqueiro é como o ‘Contramestre’ da cana de açúcar. (ANTONIL
1967,
p. 199) O Guia e o Coice, estes guardam o nome dos vaqueiros que acompanhavam a tropa
de gado na travessia do sertão. Informa Gustavo Barroso: “Dividido todo o gado, a um sinal
do ‘cabeça de campo’, os vaqueiros de cada fazenda tocam os gados de suas ‘entregas’. Um
vai à frente, aboiando. É o ‘guia’. Cercando o gado, quase na frente, seguem os ‘cabeceiras’,
ao meio, os ‘esteiras’, mais atrás os ‘costaneiros’, e por fim, na retaguarda, os do ‘coice’.”
(BARROSO 1956, p. 51) No mesmo sentido, Câmara Cascudo explica: “Quer no coice
(atrás) ou na guia (adiante) da boiada, o vaqueiro sugestiona inteiramente o gado que segue,
tranqüilo, ouvindo o canto melancólico.” (CASCUDO 1956, p. 26)
Já a importância da presença das crianças no Reisado, notadamente dos meninos, pode
vir tanto da catequização jesuítica que utilizava os meninos para introduzir, entre os gentios,
sua religião, como também do fato de entre os índios os meninos terem presença destacada
nas danças.
Costumeiramente, os Reisados de Congo apresentam-se nos períodos festivos, tanto
nas festas juninas quanto nas natalinas e na epifania. Além disso, atendendo a convites,
costumam fazer-se presentes nas solenidades de Renovação do Coração de Jesus que
acontecem anualmente nas casas dos devotos e ainda em casamentos, batizados, primeiras
comunhões etc. O Reis de Congo do Mestre Sebastião Cosmo, por exemplo, que se chama
Reisado São Sebastião costuma festejar também a festa do santo que lhe dá nome.
Nos últimos anos, os Reisados têm reativado seus espetáculos, por ocasião do mês
do folclore, agosto, quando são muito solicitados. Apresentam-se também em festivais e
eventos promovidos pelo poder público ou pela igreja. O fato é que, a partir do final dos
trabalhos na roça, em maio, até meados de janeiro, antes do início do inverno, é tempo para
as representações do Reis de Congo, seja em terreiros, praças ou até mesmo no meio da rua
(em frente à casa do contratante).
Costumeiramente, os brincantes do Reisado são trabalhadores rurais sem-terra. No
geral, rendeiros que durante o inverno trabalham na agricultura, plantando em terra alheia.
No verão, época em que o Reisado se faz ativo, transferem-se para outras ocupações, uns
vão cortar cana, outros empregam-se na usina, outros prestam serviço de vigia etc. Os que
ficam na roça plantam mandioca, fazem cerca e brocam terreno para plantar no inverno.
Nos Reisados da zona urbana de Juazeiro do Norte, os artesãos e pequenos vendedores
ambulantes aparecem. No Reisado de Sebastião Cosmo, o Rei, por exemplo, trabalha como
sapateiro. Miguel Francisco de Souza, Mateus famoso, é carroceiro. Mestre Aldenir Calou é
morador de sítio, encarregado da administração.
O número de apresentações das companhias de Reisado por ano varia
imprevisivelmente. As dos sítios mais afastados chegam a brincar apenas três noites no
ano, enquanto aquelas mais conhecidas e mais organizadas fazem até 15 apresentações. São
realizadas, na maior parte, no próprio município onde o Reisado está sediado. Mas também
atendem a chamados de outros municípios, tanto da região como de Fortaleza e Estados
vizinhos. Raimundo Nonato, por exemplo, informa que seu Reisado costuma excursionar
por Missão Velha, Barbalha, Crato e Juazeiro, Farias Brito e Porteiras, além de ter vindo até
Fortaleza.
O tempo de duração de um espetáculo do Reis de Congo é indefinido. Determina-se
de acordo com o desejo do contratante. Para ser bem executado, necessita, no mínimo, umas
quatro horas. O Reisado completo, com todos os entremezes e partes, levaria “três dias e três
noites” para ser apresentado.
Ultimamente, a pedido de autoridades, os Reisados fazem pequenas apresentações
para turistas e para a televisão durante festas públicas, geralmente em palanques. O tempo
dessas apresentações não pode exceder de meia hora. Muitas vezes, ocupam apenas 15
minutos. Os Mestres não se recusam a fazê-las, visando divulgar o Reisado e render algum
dinheiro para os brincantes. Porém, reclamam do tempo escasso, por serem apresentações
empobrecedoras, isto é, em que só é possível mostrar algumas peças e um pedaço de um
entremez, no geral o Boi. O perigo desse tipo de apresentação, se muito repetida, é que
contribui para a perda da memória de muitas partes do Reisado.
O número de brincantes de cada companhia de Reisado varia entre 15 e 30 pessoas.
Mestre Tico do Buriti é partidário de um número menor. “No meu Reisado tem 15 figurante.
Antigamente nós brincava com 18, mas é gente demais! Conseguimos ajeitar só 15. D’uma
hora pra outra aparece uma viagem, é mais fácil. São dez figura, o Meste e o Reis, os dois
Mateu e o tocador. Vai pra todo canto. Dezoito, ainda aumenta mais três, e ainda aumenta
mais dois pra andar com os bicho.” (Tico) Já Antônio Félix é da opinião que um Reisado
‘interado’ compõe-se de 24 brincantes. O de Sebastião Cosmo chega a brincar com 25
participantes. Miguel Francisco censura este número: “O Reisado era melhor antigamente
porque era mais bonito, completo. Anteriormente, o Reisado eram 16 figuras. Hoje, o povo
tão na galaria de uma filosomia em enricar (sic), aí inventa um brinquedo com 25 figuras.
Não dá.”
Para ingressar numa companhia de Reis de Congo, é preciso passar pelos critérios do
Mestre. E o primeiro destes critérios é a boa conduta. “Uma pessoa se apresenta, pedindo
para brincá no Reisado. O Mestre vai sabê quem é ele, em que Reisado já brincou. E vai
atrás para sabê porque ele saiu do Reisado. Se foi por má conduta, eu não aceito. Digo: -
‘Meu filho, eu não quero não.’ Mas se foi somente por outra coisa, comparação, por cachaça,
o cara pode se corrigi. Porque tem Mestre que o figurado dele bebe e ele bebe do mesmo
jeito. Mas se o figurado num vê o Mestre bebê, num vai bebê também não. Eu sou
responsave pelos de menor...” (Sebastião Cosmo)
Difícil encontrar uma companhia que tenha elenco fixo. No geral, apenas o núcleo
de brincantes, formado pelos parentes mais próximos do Mestre, é permanente. Os outros
brincantes vão se revezando. Preencher, porém, o número necessário à brincadeira não
é difícil porque no Cariri o número de brincantes em potencial, isto é, de pessoas que
conhecem os passos e as peças de Reisado é bem grande.
Há uma idade, porém, em que muitos brincantes desistem do Reisado, o que traz
problemas para os Mestres. Dedé Luna, por exemplo, já viu desfeitos dois Reisado de moças
que organizara. É a idade do namoro e do casamento. As moças são proibidas de brincar
pelos noivos e namorados. Até com os rapazes, acontece parecido. Explica Mestre Tico:
“Você sabe, começa a brincar um menino desse assim, vai brincano com o gosto maior do
mundo, quando começa a ser rapaz, dessa bitola, aí, já começa a namorá, aí, num quere mais.
Alguns, que são frio pra namorar, é que fica brincano. Esse que são mei medonhe... Ah, eu
num quero mais não, porque num dá certo. Eles acha que tapaia o namoro. A moça pega: -
Rapaz, você um rapaz brincano Reisado! Aí, entonce, quando se casa, aí tem deles que já tem
vontade de brincá. E tem muitos aqui que deixou, casou-se, agora já tá brincano de novo, pai
de famia. Mas lá em casa, nessa epa aí, como tem muitos aqui, nesse tipo, já me deixaram.
Se fosse uma turma toda interada que nunca deixasse a brincadeira era boa porque pegava
uns menino desses que ia se pono rapaz, aí ficava brincano tudo já feito. Mas todos os ano,
quase, a gente tem que fazer a reforma. Aquela turma de rapaz já deixa, a gente vai pegar
outros menino.”
Os recursos para a manutenção do Reisado, confecção do figurinos e dos adereços
(incluindo os ‘bichos’) vêm de apoios recebidos do poder público (Prefeituras e/ou Governo
do Estado), pagamento das apresentações pelos contratantes, doações da platéia, do próprio
bolso do Mestre ou do “dono” do Reisado. No Cariri, as verbas destinadas pelo poder
público para os Reisados geralmente são muito curtas. Há prefeitos e secretários de cultura
mais empenhados que propiciam a renovação dos trajes do figural e dos entremezes. Mesmo
com poucos recursos, as companhias de Reisado conseguem fazer milagres.
O pagamento por apresentação também não é muito alto. Por isso, é preciso completar
o ganho dos brincantes, botando ‘sorte’ com espada ou lenço. “Quando nós vamos
contratado, nós vamos por tanto. Uma importância pouca. Às vezes, sendo pessoa amiga, a
gente não cobra nada. E tira dinheiro com o povão que vai vê a brincadeira, botando espada
pra um e pra outro. Um lencim num e noutro. Quando o cabra, no meio da festa, esquenta a
cuca, está meio lá, meio cá, dá até de cinqüenta, cem contos.” (Antônio Félix) Para solicitar
a ajuda em dinheiro da platéia, “botar sorte”, como dizem, o brincante entrega a espada
ou outro adereço, ou coloca um lenço no ombro da pessoa. Esta, então, vê-se na obrigação
de devolver a espada, o adereço ou o lenço ao brincante junto com qualquer quantia em
dinheiro.
Há ainda outras formas de pedir dinheiro à platéia, como através de versos
improvisados elogiando alguém. Com a mesma finalidade, um brincante pode fazer um
‘bicho’ agarrar um espectador (o Jaraguá, por exemplo, segurando a manga de uma pessoa
com a boca). Ele só solta a vítima em permuta de um trocado. Antigamente, o Jaraguá podia
soltar sua vítima em troca de qualquer alimento ou mercadoria, rapadura, por exemplo. Hoje,
ele quer dinheiro.
Qualquer figurante pode “tirar sorte”. O dinheiro assim obtido será dele, não sendo
obrigado a dividir com os demais brincantes. Com isto, quem sai perdendo muitas vezes é o
Mestre. Miguel Francisco informa que “O Mestre, por cerimônia, não ‘bota sorte’, ou porque
não tem tempo. Então, ele acaba ganhando menos que todos os demais.”
Já o dinheiro pago pelo contratante ao Reisado vai para as mãos do Mestre. Mas ele é
obrigado a repartir com todos, inclusive com os tocadores. Em alguns Reisados, esta divisão
se faz por igual, do Mestre ao último figurinha. Noutros, os figurinhas (meninos) ganham
menos. Quem explica é Sebastião Cosmo: “Há uma diferença, é porque um menino pequeno
num pode ganhá do preço de um grande, entendeu? Porque o menino pequeno trabalha, mas
não faz as peças como um grande faz.”
Os trajes do figural, assim como os dos entremezes, são de responsabilidade do
Mestre. Ele adquire-os por conta própria ou com ajuda de outros (da Prefeitura, de políticos,
de comerciantes etc.). Guarda-os em sua casa e nos dias de brincadeira distribui-os entre os
brincantes. O traje é do Reisado, não é do brincante. Se um brincante sair da companhia,
deixa o traje.
Aprendizado e Ensaios
Como dizem alguns Mestres, Reisado não se aprende, a pessoa já nasce com aquele
‘planeta’. A forma de investigar se alguém nasceu para o Reisado é explicada pelo Mestre
Antônio Félix: “Uns diz: Eu quero brincar com o senhô.  Você quê brincá?  Quero.
Então, venha pra fila. Aí, nós bota eles naquela fila. O Mestre tem que ixercitar aquele
pessoá, e eu estou ali, vestigando qual é o que dá pro brinquedo e o que não dá. O que eu
vejo que serve pro brinquedo, fica brincano, e o que eu vejo que não serve pro brinquedo,
eu jogo fora. (...) Depois que trabalha com nós, ali, um mês, dois, três... de um e meio em
vante já sabe o que é uma peça. Já sabe qual é que dá. Porque canta bem, dança bem, tem
responsabilidade, é respeitador de todo mundo. Tem deles que dura mais. Outros, com um
mês, a gente já sabe se presta ou num presta.”
O aprendizado faz-se por duas formas: por imitação e através do contato corporal com
o Mestre. É interessante observar que a imitação e o contato são exatamente as duas técnicas
da magia simpática de comunicação entre os seres, de passagem de energia e de transmissão
de conhecimento. No Reisado, o aprendizado por imitação faz-se com o aprendiz observando
e tentando repetir o procedimento do Mestre ou dos brincantes mais experimentados.
Geralmente, o aprendiz põe-se nos derradeiros lugares da fila de figuras, imitando a que está
imediatamente adiante dele ou a que brinca na vanguarda da fila, no caso o Embaixador.
O aprendizado por imitação começa o brincante muito pequeno, de oito a dez anos,
ou até mais cedo ainda. Mestre Aldenir Calou, do Reisado de Bela Vista, Crato, costuma
pôr seus netos dentro da brincadeira, a partir dos três anos de idade. Por várias vezes, foi
observado como isto acontece. Durante a apresentação, ele põe a criança, devidamente
trajada ao seu lado e incentiva para que imite o procedimento do próprio avô e dos demais
figurantes. Mesmo quando a criança chora enjoada, ele insiste para que a deixem permanecer
no centro do terreiro. Segundo Aldenir, a criança está vivenciando a atmosfera do Reisado,
aprendendo a viver dentro do Reisado. E isto é muito importante.
Outro bom exemplo de aprendizado por imitação, foi presenciado durante um
espetáculo de Reis de Careta (outra modalidade de Reisado) em Guaramiranga. Durante toda
a apresentação, um meninote de aproximadamente dez anos permaneceu em pé, na platéia,
imitando minuciosamente os gestos do sanfoneiro, embora ele mesmo não dispusesse de uma
sanfona. Parecia alguma coisa sem propósito. Porém, no final do espetáculo, no instante em
que o sanfoneiro deixou seu instrumento descansar sobre uma cadeira, o meninote tomou-o
nas mãos e tocou-o, embora ainda canhestramente.
A segunda técnica de aprendizado é, como se disse, pelo contato do corpo do
Mestre. Neste caso, o Mestre põe-se junto ao aprendiz e com as próprias mãos conduz
seus movimentos. Durante o estágio que a companhia de teatro (Cia. de Brincantes Boca
Rica) fez no Distrito de Bela Vista, Crato, vivenciou-se um bom exemplo desta técnica de
aprendizado. Para ensinar aos atores, um passo mais complexo de dança, o Mestre colocouos
todos sentados um ao lado do outro e com as mãos segurando a canela dos atores, um de
cada vez, conduziu os movimentos dos seus pés.
Como acontece nas culturas de tradição oral, o saber do Reisado é algo que passa
de geração a geração e quase sempre de pai para filho (geralmente o núcleo principal de
brincantes do Reisado pertence à mesma família, no caso a do Mestre). Esta forma sucessória
de o filho substituir o pai, de a nova geração substituir a anterior na brincadeira do Reisado,
parece uma forma de reverência, de culto até aos ancestrais. Até se tornar Mestre, o aprendiz
desenvolve um longo período de observação. Diz Raimundo Nonato, um dos Mestres de
Reisado mais novos: “Comecei a brincar Reisado com dez anos de idade e já estou com 23.
Comecei a brincar com Mestre Moisés e depois brinquei com muito Mestre. Tem Mestre
mais velho do que eu que entende mais. Eu sou Mestre novo, não entendo quase nada.”
Os ensaios começam geralmente alguns meses antes da primeira apresentação do
ano, cerca de duas vezes por semana, sempre à noite, comumente em maio. Acontecem no
terreiro ou quintal da casa do Mestre, ou próximo a ela. Juntam o povo da vizinhança, em
grande animação. Os brincantes vão “à paisana”, mas não dispensam adereços essenciais de
cena, como as espadas, os capacetes e o apito do Mestre. O Mateus comparece preparado
para seu ofício, com cara “encarvoada” e cafuringa na cabeça. Também fazem-se presentes
alguns entremezes, especialmente os ‘bichos’, com suas cabeças e “empanadas”. É uma
ocasião, não apenas de aprendizado, mas de confraternização. A presença dos tocadores é
indispensável.
O Figural
O Figural é o conjunto de figuras, personagens que compõem o corpo permanente
da brincadeira. Está organizado em uma hierarquia que vai do Mestre ao Bandeirinha.
Funciona esta hierarquia como um escalão de poder que o brincante percorre desde que entra
na companhia, ainda menino, até ascender aos postos mais altos e eventualmente tornarse
Mestre. Diz respeito não apenas à estrutura de poder ficcional durante a encenação do
espetáculo como também à importância que cada um tem dentro do elenco de brincantes.
Assim é que os melhores brincantes são os que têm maior responsabilidade na organização
do Reisado.
Antônio Romeiro, Mestre de Reisado em Campos Sales, conta como ascendeu na
hierarquia do Reisado: “Eu comecei como Figurinho, pequenininho. Aí fui criando fita,
sempre aprendendo e chegando pra frente. Aí tomei o lugar do primeiro Embaixador, aí
peguei o lugar do Secretário, do Secretário passei pra Mestre e aí tomei de conta. As fitas que
eu falo são a altura que a pessoa trabalha (os postos que vai galgando no Reisado).” Toinha,
uma de suas brincantes, passou sete anos brincando o Reisado para ascender de Figurinha a
Contramestra, ganhando “fita por fita”.
Todas as figuras têm características definidas no trajar e no portar-se durante a função,
bem como um lugar que ocupam na organização espacial do folguedo. Podem, por ocasião
dos entremezes, assumir um outro papel, às vezes encarnando a própria figura, como o
Mateus que no entremez do Boi é o vaqueiro, às vezes interpretando outro personagem,
ocasião em que a figura, por cima do seu traje, veste o disfarce de um bicho ou toma as
características de um outro tipo social, como o Pai Tomé, por exemplo.
O Mestre
Antigo Secretário de Sala, proveniente dos Congos, o Mestre é o encenador do
Reisado, o diretor de cena que atua dentro do próprio espetáculo, sendo também ator e
personagem. É ele que toma toda a iniciativa, tira peças cantando os solos, puxa os passos,
apita para iniciar ou parar as diversas partes, dirige a apresentação dos entremezes, chama a
trupe à ordem, dialoga com o Rei, o Mateus, a Catirina e as diversas figuras dos entremezes,
diz embaixadas, comanda sua tropa nas batalhas etc. Às vezes, dita toda a fala de um
personagem para um brincante de memória fraca durante a encenação. Seus movimentos são
elegantes, pois ele é um cruzado, um cavaleiro andante. Sua voz é firme, mas não autoritária.
Representa o herói apolíneo.
De acordo com sua vontade, pode passar o comando do espetáculo ao Rei, ao
Contramestre, ou ao primeiro Embaixador. Segundo Théo Brandão, é uma espécie de
primeiro ministro do Rei que de fato governa o Reisado.
Além disso, é o dono do Reisado, o chefe da brincadeira, a quem cabe acertar
apresentações, marcar e dirigir os ensaios, admitir e dispensar brincantes, designar
papéis, adquirir e dar guarda ao figurino e adereços da companhia, prescrever normas de
comportamento para os brincantes, administrar a disciplina etc. Ele é um líder com plena
aceitação por todos os brincantes, tanto nas atividades da companhia de Reisado quanto no
que diz respeito à vida comunitária. Aconselha e orienta a vida do brincante. Há Mestres
como Dedé Luna que chegam a desaconselhar namoro dos seus brincantes quando interferem
indevidamente na vida da companhia.
Sebastião Cosmo explica o trabalho do Mestre durante a apresentação do Reisado:
“Eu tô brincando na frente, aqui, acolá, eu volto pra trás pra olhar o que tá errado. Quando
eu vejo que um figurante tá errado, então eu faço só bater o olho assim. Num vou passar
carão no meio do espetáculo. Só olho e o cabra tem que atender. Então, se ele errou, naquele
momento eu fico calado. Quando ele chegar em casa, então, eu vou explicar a ele como é a
situação.”
Sebastião não admite bebida, nem “gato” (relação de homens casados com outras
mulheres que não suas esposas) durante os espetáculos e até mesmo, enquanto os
“figurados”, como ele chama, estão trajados.
Para chegar a Mestre é preciso um longo aprendizado. É ele que detém toda a memória
do Reisado, sendo capaz não apenas de criar peças e improvisar diálogos, mas de narrar de
memória todo o desenrolar do espetáculo que dura muitas horas. Os Mestres mais antigos
trazem decorado um repertório de mais de uma centena de peças. Podem também substituir
qualquer figura em sua função, até mesmo o Mateus. “O Mestre do Reisado tem que ter
aquela atuação igualmente a um professor de escola. É ele quem ensina todo o figurá”,
explica o brincante Miguel Francisco de Juazeiro do Norte.
Em alguns Reisados, na veste, o Mestre diferencia-se pouco do restante do figural. Seu
traje talvez seja um tanto mais cuidado e ele traz, além da espada, um apito na mão. Mas em
outros Reis de Congo, o Mestre faz questão de diferenciar-se. É o caso de Sebastião Cosmo,
um Mestre de Juazeiro do Norte: “Meu traje é diferente dos outros, é todo amarelo, com a
divisa que é duas peças de grega na saia. O capacete é do mesmo tamanho mas de modelo
diferente. Aí todo mundo tá ali reconhecendo que ali é um Mestre.”
Para alguns Mestres, o mais importante na sua função é saber disciplinar. Raimundo
Nonato, um dos Mestres mais jovens de Juazeiro do Norte, diz: “Acho que já nasci com isso
no meu juízo, de ser Mestre. Pra ser Mestre precisa muita coisa. Muita disciplina. Porque
eu acho que só tomei responsabilidade de Mestre porque brinquei 13 anos de brincadeira.
Porque se eu soubesse que num tinha jeito nenhum, eu num ia me meter de Mestre, porque
eu passava baixo, né? Uma comparação: eu vou fazer um grupo de Reisado pra mim. Eu
tenho primeiro que brincar mais o Mestre pra ele me ensinar. Pra quando eu for disciplinar
um Reisado eu já saber. Eu aprendi com muito Mestre. O primeiro foi Moisés, depois
Dedé Luna, depois Aldenir, aí Mestre Pedro. Eu não brinquei com Seu Olímpo, mas vi sua
disciplina. Manjei no meu juízo pra saber disciplinar o figural também.”
É notável a reverência que os Mestres mais novos e brincantes do Reisado em geral
dedicam aos Mestres mais antigos, principalmente àqueles que os iniciaram na brincadeira.
Muito citado por todos é o Mestre Olímpio Boneca, alagoano de origem, já falecido, irmão
do também Mestre Cícero Boneca, por cujas mãos passaram muitos dos Mestres atuais.
Igualmente citado é o Mestre Zuza Cordeiro (entrevistado pelo pesquisador) e seu irmão
Manuel Cordeiro, ambos nascidos em Pernambuco, tendo se transferido muito cedo para
Juazeiro do Norte.
Na lista dos Mestres de Reis de Congo mais antigos do Cariri e já falecidos, estão
ainda, entre outros: Zé Monteiro, João Borges, José Alves, Serapião, Damião, Manuel
Dias, Ageu e Antônio Felinto (todos de Juazeiro), Aprígio (Crato), José Taveira dos Santos,
João Princesa, Vicente dos Passos e Manuel Vicente (de Jardim), Otávio de Maria Preta
(Araripina - Pe.), Zuca (Missão Velha). Entre os vivos, conta-se Aldenir Calou, Tico, Dedé
Luna e Luiziana Calou (do Crato), Moisés, Antônio Neco, Antônio Félix, Miguel Florentino,
Miguel Francisco, José Mário, Ricardo, Mozer, Dezinho, Raimundo Nonato, José Rufino,
Sebastião Cosmo, Zequinha (todos de Juazeiro), Pedro Matias e José Matias (Caririaçu),
Olegário (Jardim), José de Melo (Barbalha), José Galdino e Chico Oliveira (Milagres),
Ticola e José Ribeiro (Missão Velha). E mais, de outras regiões: Manuel Preto (Cedro),
Joaquim Grande (Mauriti), Antônio Romeiro e Azarias (Campos Sales).
Entre estes Mestres, há histórias de parcerias e aprendizado. Dedé Luna, por exemplo,
aprendeu com o Antônio Félix que por sua vez iniciou-se com Olímpio Boneca. Depois,
Dedé Luna chegou a comandar um Reisado em que ele era o Mestre, Aldenir o Rei e Tico o
Contramestre. Zuza Cordeiro, por sua vez, passou por muitos dos Mestres mais antigos: Zé
Monteiro, Serapião, João Borges, Manoel Dias e Antônio Felinto. Mestre Pedro foi discípulo
dos irmãos Zuza e Manoel Cordeiro. Miguel Florentino aprendeu com Zuza Cordeiro e
Olímpio Boneca. Miguel Francisco, com Olímpio Boneca e Manoel Cordeiro, e depois
brincou com Dedé Luna e Aldenir Calou. Antônio Romeiro (atualmente Mestre em Jardim)
aprendeu em Juazeiro do Norte com Mestre Zé Alves. Sebastião Cosmo começou a brincar
com Manoel Cordeiro, mas depois passou pelo Reisado do Mestre Damião.
Algumas vezes, o dono do Reisado não é o mesmo Mestre, ficando com o dono do
Reisado as atribuições de administrador da companhia de brincantes e com o Mestre a
função de diretor de cena. Isto, no entanto, é raro e quase sempre acontece pela
impossibilidade
ou inaptidão do dono do Reisado em fazer parte das apresentações. Existe também a figura
do ‘padrinho’ do Reisado, uma espécie de protetor e apoiador, homem influente e de maior
poder aquisitivo que algumas vezes serve de intermediário entre os Reisados e o poder
público, acertando patrocínios e apresentações. Antigamente, no Crato, exercia este papel
J. Figueredo Filho, o Zé Figueredo, como era conhecido entre os brincantes. No presente, o
radialista Elói Teles desempenha a função.
O Rei e a Rainha
O Rei é a terceira figura do Reisado. Seu traje deve ser o mais bonito e enfeitado.
Calça sapatos ou tênis (tipo conga), veste meiões coloridos (como os de jogador de futebol),
saiote (ou calção) e blusa de mangas compridas de cores iguais, peitoral e manto de cores
diferentes, todo o traje em tecido brilhante, geralmente cetim ou laquê. Porta uma coroa
na cabeça e nas mãos traz uma espada (às vezes traz também um cetro). Seu manto é mais
longo (porém não ultrapassa a altura dos joelhos) e seu peitoral é de cor diferente do das
demais figuras. Também traz um maior número de adornos (na coroa, no manto e no peitoral)
em espelhos (postos como medalhas e condecorações), areia colorida, lantejoulas (formando
desenhos florais) e fitas que os demais brincantes. Sua coroa, feita na forma da dos Reis
ocidentais, é semelhante ao capacete das outras figuras, porém com uma cruz encimando.
Seus gestos são solenes, quase rituais, sua voz é pausada e serena.
Durante o cortejo do Reisado, ele vem entre as duas fileiras de brincantes, na frente,
logo atrás do Mestre. Durante a função, tem um trono representado por uma cadeira (o que
faz com que nos Reisados alagoanos ele seja também conhecido como “Rei de Cadeira”),
onde permanece a maior parte do tempo. Levanta-se para participar da execução de peças e
contracenar com o Mestre, os Mateus e demais figuras, durante as embaixadas e batalhas.
Às vezes, pode substituir o Mestre no comando do Reisado. Outras vezes, comunica-se
com as demais figuras do Reisado, através do Mestre a quem também pode sugerir peças e
embaixadas.
Segundo Sebastião Cosmos, é de obrigação do Reisado renovar a entronização e
coroação do Rei uma vez por ano, no dia de Reis. Nesta ocasião, faz-se para o Rei uma
casinha de palha, enfeitada e iluminada, onde ele é colocado no trono ao lado da Rainha,
representada por uma menina.
Antigamente os Reis diferenciavam-se mais do conjunto de figuras. Sua espada era
especial, isto é, quando possível herdada dos velhos oficiais da Guarda Nacional, ostentando
as armas do Império e o emblema de “P II”. (3) Hoje, não apenas sua espada é semelhante
à dos demais (fabricada em aço, por artesãos ferreiros), como não usa mais cetro e seu
manto nunca chega a arrastar no chão, como antigamente. Isso lhe dá mais agilidade
para permanecer por mais tempo em pé, cantando, dançando e jogando espada. Também
sua coroa, atualmente, assemelha-se em muito ao capacete guerreiro comum aos demais
brincantes, a ponto do Mestre Sebastião Cosmo dizer que “só se conhece o Rei por causa da
cruz”, em cima do capacete.
A Rainha, como dissemos, é uma menina, com vestido ‘de festa’, branco ou rosa (de
preferência), pequena coroa na cabeça e ramalhete de flores na mão. No Reis de Congo, tem
uma participação passiva, apenas quando se levanta do trono, canta e dança.
Os Mateus
Cartola vermelha (que chama de cafuringa) enfeitada de espelhos e fitas sobre a
cabeça. Óculos escuros, rosto pintado de preto (com tisna de panela e vaselina)  mesmo que
já seja negro, uniforme de cangaceiro, com revólver, cartucheira e pente de balas atravessado
no peito (antigamente carregava uma espingarda de bambu nos ombros), junto com um
enorme rosário (feito de semente de mucunã ou mamucaba, pedaços de espiga de milho,
carretéis de linha, pequenas bonecas de plástico ou madeira etc.), no qual reza um irreverente
“Pai Nosso”. (4) Numa mão, leva um pandeiro ou um ganzá e na outra, uma “macaca”
(espécie de chicote), com a qual corre em perseguição aos meninos e surra os personagens
grotescos. Assim é o Mateus, negro e ex-escravo, a segunda figura mais importante na
estrutura de personagens do Reisado e, certamente, a primeira na preferência do público. “É
a graça do Reisado”, como diz o Mestre Antônio Félix.
Sempre aparece em dupla. O primeiro Mateus chama-se Cravo Branco e o segundo,
Flor do Dia. Os dois tratam um ao outro de ‘pariceiros’ (corruptela de parceiros). Se um é
esperto, astuto, ágil de corpo e de mente, saindo ileso das maiores embrulhadas, o outro é um
tanto sonso, matreiro, parecendo bobo e ingênuo. Algumas vezes, os Mateus, além do nome
genérico (a exemplo dos palhaços), aparecem também com outros nomes particulares, como
Cana Verde, Amorzinho, Tira-Teima, Canena, Correnteza, Troce Coqueiro etc. (5) Acontece,
também, o segundo Mateus chamar-se Fidélis, Bastião ou Birico. Sua noiva é Catirina, com
quem muitas vezes forma o trio de cômicos do Reisado ou faz dupla e parceria. Em Reisado
antigos, aparecia também um menino, o filho do Mateus, vestido igualmente a ele, chamado
de Uruciri ou Mucuri. (BRANDÃO 1953, p. 23)
O Mateus representa o mundo invertido. Parodia com galhofa todos os rituais, sejam
religiosos ou guerreiros, do Reisado. Senta no trono do Rei. Ao contrário das demais figuras
que seguem cegamente as ordens do Mestre e têm um lugar fixo na articulação espacial
do Reisado, o Mateus goza de total liberdade de movimentos para representar seu papel e
interferir na função. Pilheria e brinca com a platéia (o que é interdito ao restante do figural).
É a alegria do Reisado. Abóia e dá gaitadas a todo momento. Como disse Zuza Cordeiro:
“Os Mateus são a baliza do Reisado, seus pés e sua cabeceira.” Seus gestos são ágeis, quase
acrobáticos, sua voz nunca é natural (quotidiana), movimenta-se com desenvoltura por todo
o espaço de encenação. Mais que dionisíaco, é um personagem grotesco.
Em alguns Reisados, fala língua travada de negro africano. No entremez do Boi faz
o papel de vaqueiro. No Cariri, porém, para representar este episódio, não muda de traje,
como acontecia nos Reisado antigos de Alagoas. Também faz papéis diversos em outros
entremezes, como no do Velho Anastácio, onde representa o barbeiro. (6) Além disso, o
Mateus improvisa versos e aboios, brinca com os donos da casa, com a platéia, elogia o
governador, o padre etc.
O rosário do Mateus é um exemplo especial de cômico grotesco, de rebaixamento da
religião. Revela Antônio Félix: “O rusaro completo tem os dez mistérios, em cada um tem
um santo: é São Buchudo, São Zabumba, São Pitomba, São Diabo, São Futuca... Tem todo
santo. O Mateus inventa, faz aquelas diabruras.” A pintura do rosto do Mateus é explicada
pelos Mestres, como uma maneira de diferenciá-lo dos outros. Diz Sebastião Cosmo: “Tem
que ser rosto preto. Rosto branco é pra quem brinca de circo.”
O jovem Mestre de Juazeiro do Norte, Raimundo Nonato, deu-nos uma bela
explicação sobre a natureza do Mateus. Disse ele: “O Mateu é feito por natureza, num tem
exerciço pra Mateu! Mateu aqui, feito por natureza é Miguel, e Canena do Buriti, estes dois é
feito por natureza. Canena é de Tico, do Mestre Tico do Buriti. (...) Pro Mateu saber brincá é
tanta coisa. Ele tem que sê engraçado, precisa ter aquelas comédia. Tem que sê um caba bem
saído, bem encapetado, danado mermo. Da cara bem lisa. Tem que sabê entrá nas quebrada,
num dizer palavra feia, dizê graça pra todo mundo achá graça. Tem que sabê entrá, sabê saí,
em tudo o que dissé o senhor acha graça. Ele é muito gracento. O cabra sendo gracento dá
pra Mateu. Mas tem muitos que qué sê Mateu, mas chega no mei das quebrada, injeita.(...) O
Mateu mais engraçado é seu Antonhe Pedo. Esse Mateu aí, é uma coisa séria. Piorano, é fazê
nesse instante uma pirueta, que ele faz, nesse instante.”
Semelhante aos bufões e bobos da Europa Medieval, o Mateus-personagem, confundese
com a própria pessoa do ator. Ele torna-se Mateus, não apenas no espetáculo, mas na
vida. Ou melhor, ele já era um Mateus na vida, tipo esperto e “gracista”, razão por que foi
escolhido pelo Mestre para ser Mateus no Reisado. Neste sentido, é muito revelador o
depoimento a nós prestado por Miguel Francisco da Rocha, um dos mais notáveis Mateus
que já apareceram nos Reisado de Congo do Cariri.
Ele é negro e, fazendo o Mateus, chama-se Cravo Branco, Quando o conhecemos,
em 1976, ele brincava de Mateus no Reisado do Mestre Aldenir Calou, no Baixio Verde,
município do Crato. Mas, o primeiro contato que Miguel teve com o Reisado depois que
chegou ao Juazeiro do Norte (sua família era de Pernambuco) foi com Mestre Olímpio
Boneca. Conta o próprio Miguel: “Manuel Cordeiro era o Mateus do Mestre Olímpio. Aí,
não sei porque, ou por lá, ou por cá, seu Manuel Cordeiro disse que ia formar o Reisado dele.
Aí, Mestre Olímpio disse: ‘mas eu vou adquirir um Mateus’, de resposta. Aí olhou assim
pra mim. Tinha assim uns quinze a vinte camaradas meus... Ele só escolheu eu, do bando.
Ele escolheu porque disse que eu estava prestando muita atenção àquela brincadeira. Eu era
muito prestativo. Ele tava achando que eu dava pra’quela brincadeira.
Eu não sabia que dava pra Mateus, mas eu era muito encapetado, cheio de graça. Nós
ia tocar nas festas (Miguel até hoje tem uma Banda Cabaçal), aí meu pai dizia uma coisa...
O pai dizia: ‘É beiju.’ Eu dizia: ‘ Que beiju, meu pai? Beiju é comida de gente pobre.
Na comida do rico é tapioca.’ Aí, por ali começava. Meu pai dizia:  ‘Mas meu filho, agora
eu me lembro que um mungunzá bem feito...’  ‘Que mungunzá, meu pai? Vou comê uma
feijoada de feijão de arranca. Deixa esse mungunzá pra lá. Mungunzá é chá de burro.’ E
assim eu ia levando.”
O Mateus é um sujeito astucioso, tipo Pedro Malazarte, Cancão de Fogo, João Grilo,
personagens da literatura de cordel, nos quais ele se inspira. Tem parentesco com o Arlequim
e o Brighela, da Comedia Dell’arte, pois ambos derivam da mesma tradição popular
medieval. Faz rir, mas também mete medo, como conta Miguel: “O Mateus é preto pra todo
mundo ter medo daquela fantasia dele. Ele faz aquela carapuça (uns chamam carapuça, mas a
história certa é cafuringa), aquela cafuringa dele, cheia de espelho. Aí ele, quanto mais passá
aquela tisnagem pra ficar preto, danado, aí é que o povo tem medo dele. Porque, desde meu
nascimento pra cá, já brinquei 35 anos de Reisado, nunca encontrei uma pessoa pra não ter
medo do Mateus. À meia-noite é um assombro maió do mundo, o assombro maió do mundo
é o Mateus.
O Mateus é engraçado, mas vindo no claro da luz, no reflexo da lua, de noite, o
cabra vendo, é a maió pancada do mundo, na boca do corredor (do estômago). Todo mundo
corre. Porque ele vem brilhando, o rosto dele vem brilhando no claro da lua e aquele brilho,
atraindo. Quando o cabra vai passando no cercado, até o animal cisma com medo e vai
embora.”
Para muitos brincantes de Reisado, como para Miguel, o Mateus é o verdadeiro Rei
de Congo. Ele explica: (o Reisado) “é Rei de Congo porque tinha negro preto no meio, que
nem eu, e era Reis. Aí se chama Rei de Congo, que o Rei de Congo ele era preto. O Mateus
tem de ser preto, ele é o Rei do Reisado. O Rei de Congo é o Mateus, o Rei de Congo do
Reisado.”
O Mateus é imprescindível em qualquer Reisado de Congo pelo riso que espalha. “A
graça todinha, a fantasia do Reisado, não é fita, não é nada, é os Mateus. Se você olhá um
Reisado e não tivé um Mateus no meio, o povo pergunta:  Cadê o Mateus desse Reisado?
Não tem não? Vam’bora.” (Miguel Francisco de Souza)
Miguel tinha um parceiro favorito na brincadeira do Reisado: “O Mateus que eu
brincava mais ele, chama-se Canena, cana bem afilada. Mas o nome dele, antes, era Netim.
Ele morava no Buriti, o pareia meu, esse era do bom. Agora ele anda viajando pela Bahia.”
Miguel apresentou um amigo seu que também brinca de Mateus. Disse do amigo:
“Quando eu brincava aqui no Reisado do Juazeiro, o sonho dele era um sonho terrível,
incompreensão de brincá de Mateus. Eu disse:  Meu filho, você vai brincá, pode continuá.
Aí ele continuou.”
O amigo não esconde sua admiração por Miguel a quem considera um professor.
“Realmente, porque eu via ele brincano, tirano aquelas brincadeira, aquelas diversões com
aquelas pessoas, aí eu fazia aquela cafuringa de Mateus de papelão e botava na cabeça e saia
feito besta no mundo com chicote. Sozinho, sem Reisado. Só porque eu via ele brincando.
Inclusivamente ia às palestras dele. De Mateus, do meu conhecimento, que eu achei que
brincasse bem só foi ele (Miguel). Brincar bem assim, tanto em ritmo de embolada, como em
ritmo de abrí a porta, como em ritmo de respeito, como em ritmo de graça, essas coisas. Eu
me considero um aluno dele, porque inclusivemente a única pessoa que trabalhou pra dá uma
pouca força pra minha pessoa, foi ele. Como Mateus, ele nunca mexeu com ninguém. A não
ser que o menino atirasse uma pedra nele e ele pegasse aquele menino. Ele levava à presença
do pai dele (menino), pra tomá as providências, porque se não tomasse, ele tomava de outro
jeito.”
Mas o Mateus, no Reisado, tem ainda outras atribuições. É ele um dos principais
responsáveis, junto com o Mestre, pela organização da brincadeira. Explica, Miguel: “O
Mateus é uma pessoa de segurança, que a Delegacia de Polícia, a Delegacia de Ensino, a
Secretaria de Segurança tem a maior firmeza no Mateus do Reisado. Porque o Mateus do
Reisado é aqui a pessoa da responsabilidade, de se responsabilizar por todas as espadas
dentro do Reisado.” Interessante, o responsável pelo riso no Reisado é também o responsável
pela ordem.
Antes e durante o espetáculo, as atribuições do Mateus são muitas: reunir as figuras
na casa do Mestre (ou em outra casa que sirva de ‘sede’ ao Reisado), sair na frente pelo
caminho até o local da apresentação, cantando toadas, fazendo graça e anunciando o
espetáculo, pedir ao dono da casa para abrir a porta, por meio de rezas, varrer e aguar o
terreiro, parodiar todas as loas, orações, embaixadas, combates e danças do Reisado, disputar
o trono do Rei, ‘mexer’ com a platéia, rezar no rosário, fazer entrar os entremezes, enfim,
cumprir e descumprir as ordens do Mestre. Ele é o riso relativizando a seriedade pretensiosa,
o subalterno (negro e ex-escravo) que inverte a ordem do mundo pelo cômico. Para cumprir
suas atribuições, tem total liberdade dentro da brincadeira. Como revela o Mestre Sebastião
Cosmo: “O Mateus só entra na vez dele. Quando chega a vez dele, aí então, ele chega e
faz aquele papel dele. Por fora, ele fica brincando com o povo, fica fazendo graça pra uns,
rezando o rosário. Agora, depois, quando chega a vez dele, então, a gente chama e ele vem.”
Fica evidente, deste modo, que o Mateus não quebra a ordem do Reisado. Pelo contrário, ele
faz parte desta ordem onde sua subversão encontra um lugar. É uma forma de renová-la.
A Catirina
Catirina, também chamada antigamente de Lica, é a parelha do Mateus, sua noiva.
Como ele, é um personagem cômico. Nos Reisado de Congo, veste-se de preto, um pano
amarrado na cabeça, o rosto tisnado de preto e um chicote na mão, para correr atrás das
moças e das crianças. Em outros Reisados, aparece com o vestido estampado e o rosto
maquiado ou mascarado. Mas, em todo caso, sempre é interpretada por um homem, que
fala em falsete, sem contudo imitar a sensualidade da mulher, como fazem usualmente os
travestis. (7) Negra e grávida, escandalosa e indecente, vive levantando a saia por causa do
calor. Acusa um e outro de ser pai do seu filho. Em alguns outros tipos de Reisado, que não o
de Congo, pode aparecer sem o Mateus.
Além de correr atrás da meninada com o chicote, a Catirina faz cenas cômicas com
o Mateus. “Catirina é o seguinte, quando tamos naquela palestra de brincando, tocando,
cantando, ela se agarra com o Mateus e vão dançar, que tão numa festa.” (Miguel Francisco)
“Ela representa somente aquela alegria. Quer dizer, é uma espécie de mulher do Mateus.
Aí quando eles se encontram eles se agarram, eles se beijam, só aquele espetáculo, assim,
pra’quele povo achar graça.”(Sebastião Cosmo)
Do mesmo modo que o Mateus, Catirina é um personagem que adere ao brincante e o
acompanha fora do Reisado. Em Camocim, o brincante que faz a Catirina no Boi Pintadinho,
embora seja pai de família, machão, com bigode e tudo, passou a ser conhecido, na rua, pelo
nome da personagem, o que, aliás, não o contraria.
As Figuras
O Contramestre é quem responde pelo Reisado na ausência do Mestre. Na disposição
espacial dos brincantes quando em cortejo, vem imediatamente após o Mestre, entre as duas
filas de figuras. Seu traje é em tudo igual ao das demais figuras: sapatos tipo tênis, meiões
coloridos ou brancos de jogador de futebol, saiote plissado e blusa de mangas compridas
em tecido brilhante (de preferência cetim ou laquê), peitoral, capa (do mesmo tecido, só
que forrado para dar mais volume e consistência), capacete na cabeça e espada na mão. Os
enfeites (espelhos, fitas, lantejoulas, franjas, areia colorida etc.) são colocados no peitoral,
na capa e no capacete, segundo o gosto de cada brincante. Em alguns Reisados, como no de
Antônio Romeiro, de Campos Sales, além do Contramestre, há o Secretário. (8)
As demais figuras formam o coro do Reisado. Têm participação ativa apenas nas
batalhas, nas danças e no canto, respondendo ao solo do Mestre. Formam duas fileiras (ou
cordões) simétricas, uma do lado direito e outra do lado esquerdo do Mestre, organizadas
segundo hierarquia rigorosa. Em cada uma delas, à frente vai um Embaixador e, na ordem
de seqüência, um Guia, um Contraguia, um Coice, um Contracoice, e duas Figurinhas
(geralmente interpretadas por crianças, tanto do sexo masculino, quanto feminino). Todos se
trajam de modo semelhante ao Contramestre e portam espadas. Durante toda a brincadeira,
observam rigorosamente o lugar que lhes é reservado na disposição espacial do Reisado
e obedecem cegamente às ordens do Mestre. Às vezes são requisitados por ele para fazer
algum estremez. Os Embaixadores têm missão especial durante as cenas de embaixadas e
batalhas funcionam como os porta-vozes do Mestre e do Rei.
Atualmente, no Cariri, há vários Reis de Congo compostos quase totalmente por
mulheres. Só os Mateus são feitos por homens. Nos “Reisados de Meninas”, até mesmo
o Rei é feito por uma criança do sexo feminino. Mesmo nos Reisados comandados por
homens, as mulheres fazem parte como figuras e até como Contramestre. No Crato, Dedé
Luna chegou a dirigir um Reisado que, além dele, como Mestre e os tocadores, não havia um
só homem. Todas as demais figuras eram feitas por mulheres.
Quanto ao nome dado às figuras, há algumas variações. Dedé Luna, por exemplo,
refere-se a duas ‘Bases’, no lugar de Coice e Contracoice, chama as Figurinhas de Marujos.
Outros Mestres, no lugar de Figurinhas, referem-se a Romeirinhos. Os Figurinhas dos finais
dos cordões também são conhecidos como Bandeirinhas. No Reisado de Dedé Luna, os
Bandeirinhas levavam na mão, inclusive, uma bandeira do Brasil.
Em alguns Reisados de Congo, ao lado da Rainha, aparecem duas outras crianças, a
Baiana e Índio (ou Caboclo) que, como a Rainha, dançam e cantam. Mas parecem ser figuras
que imigraram de outros tipos de Reisado.
Nos Reisados de Congos de Jardim, aparecem também figuras de outra modalidade
de Reisado, no caso o Reis de Bailes. São as Damas, representadas por molecotes e/ou
meninotas, que se postam nas filas das figuras.
O Espetáculo
ENCONTRO E CORTEJO
A propósito, acompanhe-se a narrativa de Miguel Francisco: “Nós mora aqui na rua,
no Juazeiro, aí tem um convite daqui a três léguas num sítio... Vou dizer os nomes dos sítios
aqui em roda, ou Amaro Coelho, ou Sítio Gavião, ou senão Barbalha, ou Santa Teresa, ou
Missão Velha, ou senão os pés de serra, Cabeceira, Santa Rita, ou senão Crato, Baixio do
Muquembe, Baixio de Asaverso, Baixio do Monteiro, ou senão Baixio Verde.
Pois é, convidam nós para um Reusado, uma festa de santo, que nós chama renovação.
Aí o Mateus vai na frente. O começo dele é ajeitar as figuras de casa em casa daqueles pais
de família, pra levar pra casa do Mestre, onde nós temos que ajuntar o grupo de Reisado. Se
nós for viajar de transporte, de transporte. Senão nós tem que tirar na burra canela, porque
nós aqui, a nossa vida é tão precária, tão ronceira, tão complicada, que nós não sabe nem
dizer como é nossa vida. O senhor avalie bem, quando nós vamos brincar um Reisado, nós
vamos andar três léguas, quando chega lá, nós chega enfadado, mas nós tem aquele espírito
forte, nós canta com fé em Jesus, fé no Cruzeiro, aquelas músicas, na chegada da casa, nós
canta, nós reza as oração pra abrir aquela porta.
Primeiro os Mateus saem naquela ribeira, cantando aquelas toadas bonitas, e o povo
já sabe que vai ter aquele Reisado. E depois vem o figural. As pessoas procuram chamar
aqueles Mateus: “ Mateus, onde é o Reisado?” A gente vai dizer: “ É no canto fulano de
tal.”
Como se vê, o encontro se dá na casa do Mestre, algumas horas antes da função.
Mas pode ser também na casa do Rei, de algum brincante, parente ou amigo, conforme a
conveniência. Na casa do Mestre é melhor porque é nela onde o material do Reisado fica
guardado: figurino, adereços, os ‘bichos’ e, às vezes, os instrumentos musicais. Caso o local
marcado para a apresentação for muito contramão da casa do Mestre, o encontro pode se dar
em outra casa. Em todo caso, no local do encontro são feitos os últimos retoques nos trajes,
máscaras, adereços outros e maquiagem (quando existe).
Os Mateus saem na frente. Percorrem caminhos, estradas e ruas, brincando com
os circunstantes, anunciando e convidando para o espetáculo. Em seguida, com alguma
distância, sai o cortejo de brincantes, acompanhado pelos tocadores e tendo à frente o
Mestre. Tocam e cantam peças de marcha. Até que o Reisado chega no local do espetáculo,
geralmente defronte à casa do contratante, numa praça ou no patamar de uma igreja.
Conta Théo Brandão, sobre os Reis de Congo de Alagoas, que antes da chegada da
companhia de Reisado, na noite da função, havia outro contato entre os brincantes e o dono
da casa. “Nas fazendas e engenhos da zona da Mata, ou nas casas das cidades do interior, o
primeiro contato entre o Reisado e o dono da casa ou senhor de engenho, era efetuado pela
visita dos Mateus e do palhaço, quando vinham contratar a função ou simplesmente pedir
licença para a noitada.” (BRANDÃO 1953, p. 27)
Este contato anterior era medida de segurança dos donos de Reisado que temiam dar
viagem perdida até locais mais distantes. Na época descrita por Théo Brandão, primeiras
décadas deste século, as companhias de Reis de Congo largavam-se em longas peregrinações
por engenhos, cidades e vilarejos, disputando espaços de apresentação com trupes de outros
folguedos. “Às vezes sabia-se, com antecedência de dias, através dos caboclos afeiçoados
aos folguedos, as notícias e as posições dos Reisados de fama:  ‘João Félix dançou ontem
no Cajueiro, na casa de Pedro Lôla!  Libânio está dançando em Santa Efigênia.  Epifânio
saiu ontem de Gameleira.’ E no outro dia, pela manhã, numa curva poeirenta da estrada,
muito ao longe ainda, ouviam-se distantes aboiados que se iam tornando cada vez mais
perceptíveis, mas que, no início se confundiam com os próprios aboiados dos vaqueiros,
tangendo as reses dos currais após a ordenha de leite:  ‘Serão os Mateus?’, perguntavam
todos.” (BRANDÃO 1953, p. 28)
Certa vez, tive oportunidade de acompanhar uma destas jornadas do Reisado, da casa
do Mestre Aldenir Calou, no Sítio Baixio Verde (Crato), até o pé da subida do Horto, em
Juazeiro do Norte, para uma apresentação. Nesses momentos, explicita-se melhor o caráter
transitório, do Reisado. Trata-se, ao mesmo tempo, de um cortejo de peregrinos, de uma
trupe de artistas, de uma tropa de guerreiros em marcha. Por onde passa, vai espalhando sua
alegria, sua devoção, atravessando veredas e estradas de terra, ao som da Banda Cabaçal.
Os Mateus são os balizas, os batedores, abrindo caminho, criando expectativa, preparando
o ambiente da brincadeira. Por onde passam deixam o riso no rosto das moças e a agonia no
coração das crianças. As pessoas chegam-se às janelas, juntam-se na beira da estrada, para
ver os Mateus e, depois, o figural passar. Todas já conhecem os Mateus e muitas chamam por
seus nomes. Nos botequins de beira de caminho, eles param para uma ligeira pinga ou para
um refresco, quando o Mestre não permite bebidas alcóolicas com a farda do Reisado.
Durante a marcha até o local da função, os Reisados de Congo, antigamente, cantavam
marchas chamadas, por isso mesmo, peças de rua como esta:
Marcha, marcha, companheiro
tira o chapéu da cabeça.
O senhor dono da casa
durma com Deus e amanheça.
Hoje, pelo menos no Cariri, usa-se acompanhar a marcha da companhia de Reisado
com a música da Banda Cabaçal que, não exigindo o canto dos brincantes, permite uma
caminhada mais rápida.
A ABERTURA DA PORTA
Quando a companhia de Reisado chega ao local da apresentação, encontra fechada a
porta da casa do contratante que passa a ser chamado de patrão ou capitão. O Mestre apita,
põe o Reisado em forma e puxa as peças de “abrição de porta”. As primeiras peças são
canções guerreiras e cavaleirescas. Nesta ocasião, a Banda Cabaçal cede lugar ao tocador (de
violão, rabeca, viola ou sanfona) e seus parceiros (percussionistas) no acompanhamento das
peças.
Avistei na frente
uma fortaleza.
A nossa batalha
é uma beleza.
Acorda Maria
saia na janela.
Quero ver saudade
nessa sentinela Mas
se tá dormindo
acorda donzela. (Tico)
Oi de casa
ôi de fora
fui eu quem cheguei agora
fui eu quem cheguei agora
acompanhado de anjos
da Virgem Nossa Senhora.
Ô senhor dono da casa
olho de cana caiana
olho de cana caiana.
Quanto mais a cana cresce
mais aumenta a sua fama
mais aumenta a sua fama. A
senhora dona da casa passa
o pente em seu cabelo passa
o pente em seu cabelo que
do céu já vem caindo pingo
de água de cheiro pingo de
água de cheiro.
Quando eu chego
em qualquer porta
de culpa (?) acesa
de culpa (?) acesa.
Ô, que casa grande qu’eu avistei .
Ô, que casa grande qu’eu avistei.
Primeiro que eu vi foi uma luz acesa.
Primeiro que eu vi foi uma luz acesa.
Eu olhei pra França, França e Bahia
Eu olhei pra França, França e Bahia,
Meu Governador da cavalaria
Meu Governador da cavalaria.
Da cavalaria, Antõe Conselheiro
Da cavalaria, Antõe Conselheiro
fez um embalamento pro Rio de Janeiro
fez um embalamento pro Rio de Janeiro. (Tico)
Abre a porta, gente
que venho ferido
pela falsidade, ó janana
dos meus inimigos.
Se tu vens ferido
pode entrar pra dentro
que o sangue do teu peito, ó janana
é meu alimento. (Sebastião
Cosmo)
Sobre esta última peça, comum a vários Reis de Congo caririense, cabe observar, que
Théo Brandão dá notícias de uma muito semelhante, colhida com Mestre José Joaquim, de
Curralinho, ainda em 1890. A peça citada em Reisado Alagoano dizia:
Abris-me a porta
que eu venho ferido
de uma falsidade, ó janana
dos meus inimigos.
Se tu vens ferido
entra cá pra dento.
Sangue do meu peito, ó janana
serve de inguento.
Inguento dado
pela mão do Reis
essença parada, ó janana
como eu viverei.
Do mesmo modo é antiga a peça colhida junto a Sebastião Cosmo:
Eu venho, eu venho, do verde do mato.
Cercado me vejo sem poder falar.
O dono da casa é um cidadão
que nos alumeia com dois lampião.
O dono da casa tem muito que dá.
Que nos alumeia com dois castiçá.
Em Alagoas, segundo Théo Brandão, aparece nos Reisado de Ernesto da Sapucáia
(1920) e Libânio (1930) a seguinte versão:
O Capitão tem muito dinheiro
alumeia a casa com dois candiêro.
O Capitão tem muito que dá
alumeia a casa cum dois castiçá.
O dono da casa tem muito algodão
alumeia a casa com dois lampião.
Depois, sequenciam-se peças líricas e de devoção:
Olha a chuva chovendo,
a goteira pingando.
Abre a porta, morena
que eu tô me molhando. (Aldenir e Dedé Luna)
Quando cheguei na ponta da rua
eu avistei a torre da igreja.
Beleza, cheguei agora
Nossa Senhora é nossa defesa. (Aldenir)
Após puxar algumas peças e cantar junto com o coro de brincantes, o Mestre, vendo
que o dono da casa não abre a porta, chama os Mateus e a Catirina. Pede que eles consigam
que o dono da casa abra a porta, pro Reisado poder se apresentar. Começa então uma das
comédias mais divertidas dos Mateus. Cada Reisado faz do seu jeito.
Eis a versão de Dedé Luna:
(Quando o Reisado chega na porta da casa, a porta está fechada. Então, o Mestre
fala pros dois Mateus.)
Mestre: Meu nego, é o seguinte: nós cheguemos aqui, o dono da casa nos convidou, muito
feliz, pra gente brincar, mas o que acontece é que chegando encontramos a porta fechada.
Onde é que vocês mora?
Mateus: Nós mora no Piauí.
Mestre: Eu achei que vocês, morando no Piauí, são uns homens que sabe muita oração forte.
Mateus: Tá, seu Flecha. Pra isso nós somos bom.
Mestre: Eu queria que vocês fizessem uma oração, abrissem essa porta pra nós continuar a
nossa brincadeira.
(Então, os Mateus começam a enrolar o Mestre.)
Mateus: Espera aí, que eu vou buscar o machado.
Mestre: Não, meu nego. Se fosse pra quebrar, a gente já tinha quebrado. Ajeite eles aí.
(Os Mateus olham pela fechadura da porta e falam pro Mestre.)
Mateus: Seu Flecha, olha aqui um negócio! Olha o tamanho do maribono que tem lá dentro.
(Quando o Mestre chega para olhar, eles escapolem e vão embora. Então, o
Mestre puxa outra peça que é acompanhada pelo coro. Cantam mais umas três peças.
Depois, o Mestre chama o primeiro Mateus.)
Mestre: Cravo Branco!
1o. Mateus: Tou aqui atrás desse canto.
Mestre: Flor do Dia!
2o. Mateus: Tou aqui, piando uma jia.
Mestre: Venha cá, dona Lica.
Lica: Tou ajeitando uma bica.
(Depois de muito lutar, o Mestre consegue que Mateus chegue perto da porta.)
Mestre: Agora vai dar certo, porque vai ser pela força da espada. Você abre a porta e reza ou,
então, você vai morrer, nego.
(Os dois Mateus e a Lica ficam por ali.)
Mateus: Mas seu Flecha!
Mestre: Como é que é, nego? Você tem que rezar. Você num disse que sabe rezar? Vamos
fazer o Sinal da Cruz.
Mateus: Sinal do que, seu Flecha? Sinal da cuia?
Mestre: Sinal da Cruz... Se ajoelhe aí, nego. Pra fazer o Sinal da Cruz.
Mateus: Nós só sabe fazer levantados.
Mestre: Tá certo. Pois faça aí o Sinal da Cruz, Mateus.
Mateus: (Rezando no rosário) A fome me faz tremer.
A desgraça o duro corta.
Eu tou conhecendo a morte,
PELO SINAL.
Se não chover em geral
em dezembro, com franqueza
se acaba toda pobreza
DA SANTA CRUZ.
A furtar não me dispus.
Morrer de fome acho feio.
Se é de pegar no alheio,
LIVRAI-NOS DEUS.
Pode até ser que os meus
me livre desse estandarte,
pois temo da vossa parte,
NOSSO SENHOR.
Não fiquemos a favor,
dos mais arremediados,
pois temo ser desprezado
DOS NOSSOS.
Ajuntei todos os meus troços,
só num digo que furtemos,
porque nós não queremos
INIMIGOS.
Que no caso de desabrigo,
que não possa resistir,
se é do governo pedir,
EM NOME DO PAI.
Achando a coisa tão pouca,
só dá pra meter na boca
DO FILHO.
Não tem feijão nem milho,
nem mandioca , nem cueira.
Só me resta uma palmeira
DO ESPÍRITO SANTO.
Por detrás daquele canto,
eu tenho profetizado,
que você há de morrer inchado.
AMÉM. (9)
(Aí o Mestre ameaça o Mateus com a espada e ele diz outra reza.)
Mateus: Ave Maria de Padre
Pade nosso de fusuca
pedi a vós, seu Meste
debaixo de uma arapuca.
Ave Maria de Padre
Pade nosso de latão
Pedi a vós seu Meste
debaixo de um alçapão. (Sebastião
Cosmo) (Em seguida, reza outra oração.)
Mateus: Tava um dia na quinta
ouvindo uma discussão
arrastei meu cinturão
botei a faca na cinta
chamei a véa Jacinta
que vinha no caminho
e dei pro véi Agostinho
que vinha trocendo o bigode
arreda que tu num pode
eu abro a porta sozinho.
(Este é o sinal pro dono da casa abrir a porta. Ele
abre.) Mateus: Abriu, minha nega, a porta. Você viu o dono da
casa? Lica: Vi o dono da casa.
Mateus: Tá satisfeito?
Lica: Tá. Meu nego, você vá lá diga a ele que o Mestre mandou saber se ele dá licença nós
brincar santos Reis do Oriente.
Mateus: É pra já.
(Mateus aproxima-se da porta aberta e fala pro dono da casa.)
Mateus: Boa noite, seu dono das cabras.
Dono da casa: Vá pra lá, rapaz. Sou dono de cabra não.
Mateus: Seu Flecha mandou perguntar se pode entrar aqui com um lote de cavalo e jumento.
Dono da casa: Não, minha casa é estribaria não. Pode voltar.
(O Mateus volta para prestar contas com o Mestre.)
Mestre: Como foi, nego, viu o dono da casa?
Mateus: Vi. (Apontando o pescoço.) Tá por aqui com o senhor.
Mestre: Por que?
Mateus: Porque disse que a casa dele não é estribaria. O senhor num mandou dizer que ia
entrá lá cum bocado de jumento?
Mestre: Não, nego, o recado num foi esse.
(Aí, o Mestre dá uma lapada com a espada no Mateus e manda-o voltar.)
Mestre: Você tá me ouvindo?
Mateus: Tou, sim senhor.
Mestre: Diga ao dono da casa, que eu mandei perguntar se ele consente nós brincar Santos
Reis do Oriente.
(Só na terceira vez os Mateus e a Lica dão o recado direito.)
Mateus: Pronto seu Flecha, aceitou. A casa tá direitinha, e capaz da gente brincar. Olhe o
tamanho do lixo que tem lá. A casa tá podre.
Mestre: Meu nego, então vá e varram a casa. Limpem tudo por lá.
(Os Mateus varrem a casa, recolhem o lixo e mostram-no pro Mestre.)
Mateus: E onde é que se joga o lixo?
Mestre: O lixo a gente joga fora.
(O Mateus joga o lixo na cara do Mestre. Há aquela correria, mas depois o
Reisado entra na casa, cantando uma peça.) (10)
Durante uma apresentação do Reisado do Mestre Tico, esta comédia teve a seguinte
versão:
Mestre: Venha cá meus dois nego querido da minha estimação.
Mateus: Vamo lá pareceiro. Nós tá seno chamado.
Mestre: Meu Deus, que vida é essa sua, meu irmão?
Mateus: É minha vida, a minha vida é essa mermo!
Mestre: É uma vida bacana, né?
Mateus: Sou de bacanão, malandrão, eu sou gaiato, né!
Mestre: É gaiato!
Mateus: Pode dizer seu Mestre.
Mestre: Você gosta de uma festinha?
Mateus: Hem!?
Mestre: Você gosta de andar numa festa?
Mateus: Gosto demais.
Mestre: Gosta de dançar?
Mateus: Ave Maria, pra dançar eu perco emprego!
Mestre: É o seguinte: nós vamos brincar aqui, nessa casa...
Mateus: Sim, pode dizer.
Mestre: Uma casinha... como vai ser muita gente... mas a casa tá fechada. Então num
pudemo brincar com a casa fechada... Com essa, num dá pra gente brincar... assim, tá certo?
Mateus: Pra nós brincar?
Mestre: Ai estão com a porta fechada, num dá! Pega-se assim um batido de ôi. Quem sabe
dizer uma oração forte?
Mateus II: E eu sei!?
Mestre: Você sabe dizer uma oração forte?
Mateus I: Sei. É comigo mesmo!
Mestre: Pois vá lá na porta olhar se dá certo você rezar uma oração.
Mateus: Já tá aberta, seu Meste.
Mestre: Tá aberta não, tá é fechada.
Mateus: Tá aberta, seu Meste!
Mestre: Não, num tô achano que tá aberta não! Tá fechada a porta. Você num tá enxergano,
não, meu?
Mateus: Seu Meste, eu deixei no bolso da rede a oração. Vou buscar nesse instante.
Mestre: E a rede tem bolso, rapaz?
Mateus: Tem, seu Meste, na minha tem.
Mestre: E você vai buscar e volta?
Mateus: Volto nesse instante.
Mestre: Vem mesmo?
Mateus: Vem. O senhor fica aí pastorano, viu!
(O Mestre puxa uma peça com o
figural.) Mateus: (voltando) Ela t’aqui debaixo
do pano. Mestre: Ó coisa, avia!
Mateus: Ele tá pegano uma jia.
Mestre: Vem cá meus dois nego querido do amor.
Mateus: (Para o outro Mateus) Ô cabra safado!
Mestre: Nêgo, você trouxe a oração ou como foi?
Mateus: Heim?
Mestre: Você trouxe a oração?
Mateus: Truxe.
Mestre: Como é, vai rezar ou num vai?
Mateus: Eu rezo, seu Meste.
Mestre: Pois olhe, você tá precisano de rezar. Eu quero umas oraçãozinha forte, daquelas de
quebrar pedra. Sabe rezar?
Mateus: Sei!
Mestre: Pois vamo, seu nego!
Mateus: (Grita)
Mestre: É na cadeia que vão lhe ensinar você rezar ou como é?
Mateus: Eu sei! (Para o outro Mateus) Reza aí meu parceiro, reza! Reza, parceiro reza!
Mestre: Arredem! Você não sabe rezar mermo!
Mateus: E o que foi que houve?
Mestre: Se ajoelha, nego, pra rezar!
Mateus: Se ajoelha, pareceiro! (Grita) Aiaai!!! Cuma é? Cuma é,
hein? Mestre: Nêgo, você num sabe se ajoelhar, rapaz?
Mateus: Cuma é?
Mestre: Eu vou ensinar você a se ajoelhar. Velha! Venha!
Mateus: Cuma é?
Mestre: Você se cruva, bem direitim. Vai se cruvando... Se levanta.
Mateus: Sim, tô cruvando.
Mestre: Ói, se cruvar é assim!
Mateus: Sim.
Mestre: Vai se cruvando, ó...
Mateus: Cuma é?
Mestre: Vá se cruvando! Vá, vá, vá!
Mateus: Num quero cruvar mais não, que num sou...
Mestre: Vá mais um pouquinho, nego, vá!
Mateus: Vou me deitar...
Mestre: Nêgo, num é pra se deitar não, rapaz!
Mateus: E cuma é?
Mestre: Se ajoelha!
Mateus: E cuma é? (Grita) Ainda tô
ajoelhado. Mestre: Pra que é que você tá de
joelho?
Mateus: E pra que é?
Mestre: E num é pra rezar, não?
Mateus: Hein?
Mestre: Você tá de joelho num é pra rezar?
Mateus: Pra rezar?
Mestre: Pra fazer o Pelo Sinal.
Mateus: Um trembecal?
Mestre: Que trembecal? Pelo Sinal.
Mateus: Trumbecal.
Mestre: Pelo Sinal.
Mateus: Pedo...
Mestre: Pedo não! Pelo Sinal!
Mateus: Pelo Sinal.
Mestre: Faça o Pelo Sinal, meu fi, faça!
Mateus: Ai! Pelo Sinal! Cuma é pareceiro, reza, pareceiro! Pelo sinal de gambeção. É assim,
seu Mestre?
Mestre: Pelo Sinal, meu irmão. Faça o Pelo Sinal pra você poder rezar!
Mateus: Va’mbora, pareceiro: Pelo Sinal
Mateus II: Pelo Sinal
Mateus I: De confessão!
Mateus II: De confessão!
Mateus I: Deixa de ser safado! (Risos) Eu num tô me lembrando todo não, seu Meste!
Mestre: Faça o Pelo Sinal, nego.
Mateus I: Pedo...
Mateus II: Pedo...
Mateus I: De trambecal
Mateus II: De confessal
Mateus I: Ói, seu Meste, ele tá me trapaiano! (Grita)
Mestre: Já andou lá dentro, seu nego?
Mateus: Andou?
Mestre: Vá perguntar ao dono da casa se já pode brincar o Santo Reis do Oriente?
Mateus: Santo Reis cum bocado de jumento?
Mestre: Que bocado de jumento, rapaz? Santo Reis do Oriente.
Mateus: Ele disse que pode.
Mestre: Pode?
Mateus: Santo Reis cum bocado de jumento.
Mestre: Pode entrar?
Mateus: Pode. Pode não.
Mestre: E como é? E eu vou ficar parado aqui, agora?
Mateus: Ou você fica ou eu num limpo.
Mestre: Já pode entrar, nego?
Mateus: Pode.
Mestre: E a casa tá limpa?
Mateus: Tá limpa, tá briiando. Vá atrás pareceiro! Abaixa sinhá, vamo dançar bonito.
(Entram na casa)
Sebastião Cosmo também descreveu sucintamente esta cena:
“Aí então a gente chama o Mateus, que é pra ele abrir a porta. Ele tá lá fora e eu faço
uma comédia mais ele.
Mestre: Ô Cravo Branco, ô Flor do Dia!
Mateus: Vai atrás da gata que ela mia.
Mestre: Como é, sai ou não sai, meu nego?
Mateus: Só saio se for com meu pariceiro.
Mestre: Chamei você aqui pra abrir esta porta.
Mateus: Mas como é que eu vou abrir essa porta?
Mestre: Rezando uma oração, meu nego.”
Antônio Félix completa a descrição da cena:
“Os Mateus rezam um rosário e batem na porta. Quando eles abrem a porta, o dono da
casa diz:  Podem entrar. Aí o Mateus vem e diz ao grupo de Reisado:  Ele disse que vocês
podiam entrar, que ficassem com a frente pra lá e com a barriga pra cá. Aí nós damos as
costas e vamos saindo. Ele corre atrás:  Ei, vem cá! Aí ele faz aquela graça.”
Nos Reisados de Alagoas, também aparece esta cena, à qual Théo Brandão, no seu
livro O Reisado Alagoano, ajunta um comentário: “A facécia do Mateu toma tal extensão
que se transforma quase num episódio ou farsa com muito de irreverência religiosa mas
também grandemente interessante como criação popular e que, encenada pelo Mateu, que é o
negro da trupe, deixa entrever como aos africanos adoradores de Ogum e de Xangô se
conseguiu
converter e que espécie de conversão foi esta, no mais das vezes.” (BRANDÃO 1953, p. 38)
Cabe observar, entretanto, que estas rezas irreverentes, invertidas, eram comuns nas festas
populares da Europa Medieval e Renascentistas, não se constituindo uma particularidade ou
resultado da catequização dos negros.
LOUVAÇÃO DO DIVINO OU SAGRAÇÃO AO CORAÇÃO DE JESUS
Os Reisados de Congo de outras regiões costumam chamar esta parte de Louvação do
Divino. No Cariri, por motivo de particular devoção ao Coração de Jesus (que ocasiona as
famosas renovações), estimulada pelo Padre Cícero, muitos Mestres usam substituí-la pela
Sagração ao Coração de Jesus. Na época de Natal, a sagração é feita ao Menino Jesus.
Aberta a porta pelo dono da casa, o figural entra para a sagração do Coração de Jesus
(ou para a louvação do Divino), feita ao pé do oratório que costumeiramente encontra-se na
sala da frente de qualquer casa, por mais modesta que seja, da região do Cariri. Quando a
apresentação é feita em praça pública, a louvação do Divino pode ser realizada numa capela
ou igreja. Mas há também Reisados que, antes de irem ao local da função, passam por uma
igreja ou capela para rezar ao Divino, como explica Raimundo Nonato: “O Divino é eu
chegar com um grupo de Reisado nos pés do Santo e me ajoelhar e rezar o Divino. Quando
se reza o Divino, se alivia o Coração de Jesus. Enquanto eu num der o Divino eu num brinco
na casa pra onde fui chamado, nem que o senhor me dê 500 contos. O Divino é na igreja. Da
igreja eu saio para brincar na casa do patrão. Antes de brincar na casa de qualquer pessoa,
tem-se primeiro que servir o Divino na igreja. Pode ser uma capelinha desse tamanho.”
Comumente, entretanto, o Reisado louva o Divino (ou sagra o Coração de Jesus) na
própria casa de quem contratou a brincadeira. No momento em que entra na casa, o figural
canta:
Entremos nesta nobre sala (observe a fórmula)
nesta nobre sala
no claro desta luz.
Louvores viemos dar
viemos dar
ao Coração de Jesus. (Miguel Francisco)
Ou faz uma louvação a Nossa Senhora:
Quando eu entro nessa nobre sala
eu vejo a donzela coberta com o véu.
A mulher é imagem do homem
é a Rainha perpétua do Céu. (Aldenir)
Em frente ao oratório, liderado pelo Mestre, o figural ajoelha-se. Os brincantes, com
solenidade, curvam a cabeça e põem as espadas de ponta no chão. Em Alagoas, retiram
da cabeça coroas e capacetes, colocando-os nas pontas das espadas ou segurando-os com
as mãos levantadas. (BRANDÃO 1953, p. 44) O Mestre, feita uma reza, desfia os versos,
transmitidos por Aldenir Calou:
Jesus tão judiado
pelas mãos dos fariseus,
que prenderam nosso Deus
numa cruz crucificado.
Herodes por ser malvado
tinha o coração cruel.
Já tendo perdido a fé
prenderam Jesus na cruz.
(11)
O Mestre emenda com outra oração:
Eu fui uma missa no Crato
às onze horas do dia.
Vi quando levantaram
a Conceição de Maria.
Depois de apreciar
quem vai lá
não quer mais voltar.
Foi meu santo pastor
foi meu Padrinho quem botou
a cruz no Monte Siná.
Aí o Mateus, pra arremedar o Mestre, diz assim:
Taquei-lhe o pau na cabeça
que você é um homem má.
O Mestre olha, repreendendo o Mateus, mas continua:
No Horto tem o Cruzeiro
escrivido pela frente
que admira toda gente
é aquele santo madeiro.
Aviso aos meus companheiros
falo sem medo de errar:
prenderam Jesus foi lá,
foi preso foi arrastado.
Quando passo vou dizendo
a Santa Cruz do Siná.
O Mateus responde ao Mestre:
Boto um cabresto em você
que você é um homem má.
Depois de louvar o Divino, cada um dos figurantes tem que dizer uma embaixada.
Principalmente, nos Reisado do Juazeiro do Norte, a louvação é feita ao Padre Cícero. Na
função do Reisado da rua Delmiro Gouveia, puxada pelo Mestre Zuza Cordeiro, a peça de
entrada na casa constava das seguintes quadras:
Oito e oito Oriente
menino vem festejar:
O nosso padrinho Ciço
é o dono do lugar.
Estou brincando este Reisado
com gosto e satisfação.
Tô brincando, dê licença
meu padim Ciço Romão.
Meu padrim Ciço Romão
queira me abençoar.
E aqui todo esse meu povo
aqui de vosso lugar.
Aqui de vosso lugar
fica a sua proteção.
Quero que me dê licença
Meu padrim Ciço Romão.
Após a reza do Mestre, os figurantes dizem loas, mais ou menos como esta:
Deu no Céu e deu na Terra
ó Maria Imaculada
nossa protetora
e nossa advogada.
Quando a figura acaba de dizer a loa, o Mestre cruza a espada com ela.
No Reisado de Dedé Luna, as embaixadas do Divino, como ele chama, louvam o
Menino Jesus e servem para explicar a origem e o sentido do Reisado. Senão veja-se:
Mestre: Eu sou o Mestre
desse tipo de Reisado.
Pra isso estou informado,
essa é minha obrigação.
O folclore é a tradição
mais velha desse Nordeste.
Do Reisado eu sou o Mestre,
essa é a minha função.
Rei: No Reisado eu sou o Reis,
comando o Mestre e o Reisado.
Pra isso estou preparado
porque sou um Rei cristão.
Na minha religião
ninguém erra uma só vez.
Errando já castiguei,
esta é a obrigação.
Mestre: Senhor, tive um pensamento.
Corrija bem a memória,
que é para dizer agora
os velhos acontecimentos.
Porque anteriormente
dos nossos antepassados.
Vai me dar o resultado
pelo Novo Testamento,
se tem o conhecimento
de onde nasceu o Reisado?
Rei: Lá em Belém da Judéia
onde nasceu Jesus,
perante um foco de luz.
Os pastores ali chegaram,
na manjedoura encontraram
o santo recém-nascido.
São José, seu pai querido,
sua mãe iluminada,
todos dois ajoelhados
dando assistência à Criança,
dando assistência ao Divino.
E a Criança sorrindo,
por na terra ter chegado.
Visita de todo estado
chegava no Oriente.
Rei de Congo tava presente
foi o primeiro avisado.
Em seguida, o figural diz outras embaixadas do Divino:
Boa noite meus senhores,
boa noite querido Deus!
Cadê o dono da casa,
por ele pergunto eu.
Lá se vai senhor,
lá vai Santos Reis do Oriente,
maracando do Sul ao Norte,
do Norte, ao Sul e Poente.
Minha gente, eu trazia
um cravo muito excelente.
Ele vinha entre os dente,
de vez em quando eu mordia
na flor da Cananea minha
as obras são diferentes.
Na rua do Monte Véu,
vi coroado no Céu
o Santo Reis do Oriente.
ENTRONAMENTO E DESTRONAMENTO DO REI
Terminada a devoção, o Reisado sai para brincar no terreiro, em frente da casa.
Antigamente, em Alagoas e também no Cariri, os Reisados brincavam no salão principal das
casas grandes, bastante espaçosos. Atualmente, as classes mais abastadas, donas de salas
razoavelmente largas para as funções, abandonaram a cultura popular e já não têm o Reisado
como divertimento. Por isso, as apresentações geralmente fazem-se por convite de pessoas
modestas. Daí a escolha dos terreiros ou do trecho de rua em frente à casa do contratante
para a apresentação da brincadeira.
O terreiro é iluminado por gambiarras, em caso de haver luz elétrica, por lampiões a
gás e, algumas vezes, até por enormes lamparinas. O público, em geral de 100 a 200 pessoas,
forma uma grande roda em torno do local da apresentação. A companhia de brincantes sai da
casa, primeiro os Mateus, depois os tocadores, que se postam em bancos, sentados de costas
para a fachada da casa e de frente para o terreiro.
Antes de começar a função, o Mestre ordena que os Mateus ágüem o terreiro. Eles
aproveitam para aprontar a maior comédia, fazendo-se de desentendidos e jogando água no
Mestre e na platéia. Por fim acabam dando conta do recado.
O espetáculo começa com a comédia de entronamento e destronamento do Rei. Esta
parte em que os Mateus têm um papel fundamental é bem típica do processo de inversão do
mundo que caracteriza o imaginário do Reisado. Reproduzir-se-á aqui a forma como ela foi
encenada durante uma apresentação do Reisado da Bela Vista, dirigido pelo Mestre Aldenir,
em 1995. (Quando as peças forem de outras procedência, colocar-se-á junto o nome do
Mestre informante). (12) Começa com o Mestre chamando o Mateus.
Mestre: Ó meu Mateuzinho do amor
venha me prestar atenção.
Em toda repartição
sempre falo ao seu favor.
(O Mestre canta.)
Mestre: Da prata e do ouro se faz um metá
arrasta a cadeira pro Rei se assentá.
Mateus: Da prata do ouro se faz um latão
Vamos dar balanço na gaveta do patrão.
Figuras: Eu venho, eu venho
do verde do mar.
Uma casa eu num vejo
sem poder entrar.
O dono da casa
tem muito que dar.
Prepara a cadeira
pro Rei se assentar.
(Então o dono da casa cede a cadeira e entrega ao Mateus que a coloca pro Rei
sentar-se. É seu trono. Em alguns Reisados, senta-se ao seu lado a Rainha. O Rei senta-se
e os figurantes cantam.)
Figuras: Nosso Reis anda no mundo
em sua barca imperiá.
Junto com seu batalhão
vendo o balanço do mar.
Um dia na semana
essas horas de alegria.
Mas o Governo é quem manda.
Mas o Governo é quem manda.
Viva Rei de Congo
viva Rei de Congo
viva Rei de Congo
nosso Rei da monarquia. (Tico)
Nosso Rei tá no trono, tá sentado
Olê lê lê lê
nosso Rei tá coroado. (bis) (Sebastião Cosmo e Dedé Luna)
Eu ouço dizer, eu ouço contar
a minha Rainha vai se coroar. (bis) (Sebastião Cosmo)
(Na parte instrumental da peça, os figurantes dançam abaixados e trocam espada,
fazendo continência ao Rei. O Rei levanta-se e o Mestre fala.)
Mestre: Ilustre, meu Governador
que vieste do Sul e do Norte
atravessaste todos os postos
até o mar do estrangeiro.
Rei: Ô meu Secretário de Sala
ô meu cidadão brasileiro!
Mestre: Disponha do meu serviço
meu nobre Governador.
Pronto, tou aqui aos vossos pés
pra cumprir vosso mandado.
Rei: Não se brinca mais?
Mestre: Só se nosso Rei mandar.
Rei: Num precisa eu lhe mandar
que é da sua obrigação.
Você é chefe da força
domina seu batalhão
Vila de Santa Luzia
Cidade do Japão.
Mestre: Viva o Governador da Nação!
Figuras: Viva!
(O Rei levanta-se para receber a homenagem dos brincantes e, neste momento,
um dos Mateus - que chamaremos Mateus I - senta em seu trono. O Mestre chega para
fazer cortesia ao Rei e encontra no seu lugar, o negro.)
Mestre: Oxente, que negócio é esse?! Nesse instante eu tinha aqui um Rei bem
bonito, bem coroado, e agora aparece um nego desse aqui! Você
sentou-se, que é que você vai ser? Eu digo, você quer ser um Rei.
Ô, rapaz, desocupa o trono. Aí ninguém pode se sentar, só o Rei.
Mateus: E eu, quem é mais Rei do que eu? Eu sou bonito e sou de família. E eu tou aqui
num é pra voltar não. Vim foi pra ficar.
(Começa então a confusão. O Mestre vai batalhar para o Mateus sair do trono.)
Mateus: Num saio, num saio que sou valente.
Mestre: Mas, meu amigo, aí só pode ficar gente de sangue real!
Mateus: E o que é que eu tenho? Não posso sair daqui.
Rei: Vou lhe tirar daí ou de gosto ou de contra vontade.
Figurantes: (Cantando) Nosso Rei está muito valente
porque se acha na corte.
Mas num briga com dois mariano
porque se acha na corte.
Mestre: O que é que você está fazendo aí?
Mateus I: (Mostrando a espada) O senhor vai agüentar daqui pra lá?
Mestre: Olhe, rapaz!
Mateus I: O que vier eu topo.
Mateus II: Parceiro, num se afrouxe não, parceiro. Se afrouxe não, parceiro.
Mestre: Sabe em que é que você está sentado?
Mateus I: No que eu tô sentado?
Mestre: Ei, me diga uma coisa: Como é seu nome?
Mateus I: Meu nome é Branco.
Mestre: É Branco?
Figura: Né Cravo Branco, não?
Mateus I: É Branco.
Mestre: Dá pra você agüentar essas espadas todinhas?
Mateus I: Ôxe, eu num tô vendo nada, home.
Mestre: É tudo briga.
Mateus I: Briga?
Mestre: É
Mateus I: Eu sai, mas cinco ou seis vai mais eu.
Mestre: O negócio é todo briga. Agora se você atender, você vai ser nosso
Rei.
Mateus I: O negócio vai ser só com lombriga?
Mestre: Como é nego? Ói, o negócio tem que ser sério.
Mateus I: É cego mesmo, home!
Mestre: Se você não atender, você vai sair daí mesmo na marra.
Mateus I: É esse aqui que vem, é o primeiro é, esse, é? Desse daí pode trazer de
carrada.
(O Mestre então ataca o Mateus com sua
espada.) Mateus I: Bata devagar. Bata devagarinho.
Respeite eu. Mestre: Vai sair daí de gosto ou de contra
vontade?
Mateus I: Do jeito que você quiser.
Mestre: Ô, meu primeiro Embaixador!
1o. Embaixador: Pronto.
Mestre: Ô, meu segundo Embaixador!
2o. Embaixador: Pronto.
Mestre: Tire esse nego daí, de gosto ou de contra vontade.
Mateus I: Pera aí, home. Num me tire não. Pelo amor de Deus, num faça
isso comigo não. (Os embaixadores tiram o Mateus I da cadeira, mas o Mateus II senta em
seu lugar na cadeira do Rei.)
Mestre: Mas será possive, será uma mina de nego que tem por aí?
Mateus I: Ô parceiro, num abra não, viu. Eu agaranto a você a barra, viu.
Mestre: Ei, rapaz, de onde você veio? Ainda ficou outro?
Mateus II: Ainda ficou foi bem dez, home.
Mestre: Vai sair ou num vai?
Mateus II: Sai nada.
Mestre: Eu quero que você saia daí.
Mateus II: Ôxe! Se fosse ao menos um cabra novo, mas um véi desses!
Figuras: (Cantando) Eu vou te dizer, eu vou te contar
o meu batalhão nosso Reis quer tomar.
O meu Embaixador, por aqui passou.
Foi duas figuras e dois Embaixador.
Meu Embaixador, não me negue não,
senão eu lhe corto com esse facão.
(bis)
Mestre: Tá
bom.
O meu Secretário, por aqui passou
com uma Figura e dois Embaixador. (bis)
Mateus II: Pode vir de lá pra cá, home. Um mói de muié
desse! Figuras: (Cantando) Eu vou dizer
Eu vou te
contar O meu
batalhão
Nosso Reis quer tomar.
Mateus I: É pra tomar mesmo.
Mateus II: Tô vendo nada. Agora num tô vendo nada.
(Enquanto isto, os brincantes cantam e trocam golpes de espada.)
Figuras: (Cantando) Ô meu Secretário
num me negue
não senão eu lhe
corto com esse
facão.
Mateus I: Parceiro, dá pra agüentar mais aí. Num saia não.
(Rei, Mestre e brincantes começam a lutar com o Mateus II, que está na cadeira,
ou melhor, no trono do Rei.)
Mateus I: Parceiro, num abra não.
(Primeiro o Embaixador vai lutar com o Mateus II, paa tirá-lo da cadeira do Rei,
mas não consegue.)
Figuras: Meu Embaixador
num me negue
não senão eu lhe
corto com esse
facão.
Mestre: Vai sair daí de gosto ou contra a
vontade? Mateus II: Ôxe! Saio quando eu
quiser, home.
Mestre: Hein?!
Mateus II: Eu sai quando quiser.
Mestre: Ó meu primeiro
Embaixador! 1o. Embaixador:
Pronto.
Mestre: Ó meu segundo
Embaixador! 2o Embaixador:
Pronto.
Mestre: Vai sair de gosto ou contra
vontade? (Os dois embaixadores atacam o
Mateus II.) Mateus II: Ai, ai, ai. Num pode
não.
Mateus I: Num abra não, parceiro.
(Embaixadores levantam Mateus II pelos braços e tiram-no do trono. Ele corre e
deixa a espada. O Rei senta na cadeira e o Mestre canta uma peça.)
Théo Brandão não se refere explicitamente, em O Reisado Alagoano, à cena de
entronamento e destronamento do Rei, mas sim às “chamadas do Rei”, quando o Rei
troca “embaixadas” com seu Secretário de Sala (o Mestre) e é atrapalhado pelo
Mateus.
Aparecem alguns diálogos semelhantes aos que reproduzimos acima, principalmente na
troca de gentilezas entre o Rei e o Mestre. Particularmente, um diálogo travado entre o Rei
e o Secretário, colhido em 1925, em Viçosa (Alagoas), guarda surpreendente semelhança
com o nosso. Observe-se o seguinte trecho:
Rei: Ô meu Secretaro de Sala?...
Secretário: Aqui ‘stou a vossos pés a acudi a vosso chamado.
Rei: Num se vadeia mais?
Secretário: Só se o gunvernadô mandá.
Rei: Num precisa lhe mandá que é de sua obrigação.
Secretário: Toque lá o maracá mode continuá a função. (BRANDÃO 1953, p. 51)
MÚSICAS E PEÇAS DE TERREIRO
No Reisado de Congo, a música aparece como elemento indispensável, que
acompanha o espetáculo, durante todo o seu desenrolar. Toda companhia de Reisado, em
apresentações ou ensaios, traz sua orquestra, composta geralmente de instrumentos de corda
(mais costumeiramente, viola, rabeca ou violão), de percussão (zabumba, caixa, triângulo,
maracá, ganzá, pandeiro etc.), de sopro (pífaros) e de fole (sanfona). Estes instrumentos
são utilizados alternadamente. Atualmente, no Reis de Congo, o cortejo e as batalhas são
acompanhados, usualmente, por uma Banda Cabaçal, conjunto formado por dois ou três
pífanos, um zabumba, uma caixa e um prato. Já o acompanhamento das peças dançadas
ou das apresentações de entremezes, durante o espetáculo, é feito, geralmente, por um
instrumento de corda ou de fole, secundado por instrumentos de percussão.
A execução instrumental da música, para acompanhamento da dança e/ou do canto, é
feita por instrumentistas que executam exclusivamente esta função, isto é, não dançam, nem
cantam nem encenam. Entre as figuras, apenas o Mateus traz na mão um pandeiro ou um
ganzá.
A música, no Reisado, tem a função primordial de dar e preservar o ritmo do
espetáculo. Por isto, está sempre presente. Em certo sentido, o Reisado pode ser visto como
um espetáculo musical ou mesmo uma ópera, onde há solos executados por personagens ou
pelo coro e recitativos dialogados entre diferentes personagens ou entre personagens e coro.
Mais freqüentemente, os solos são executados pelo Mestre (ou Mestra) ou pelo coro.
O regente do espetáculo é o Mestre. É ele que, através de apitos, gestos ou ordens
transmitidas oralmente, ordena a entrada e saída de peças, bem como o andamento das
execuções musicais. O coro é formado pelo figural. No desenrolar da função, em seus vários
momentos, a música toma características e funções cênicas particulares. Durante o Cortejo, a
Abertura da Porta, a Entrada na Casa e a Louvação do Divino, a música aparece na forma de
canções rituais, com o canto acompanhando as ações do grupo de brincantes. Em seguida, a
música toma uma função puramente lúdica durante a execução das peças de terreiro, canções
executadas para o canto e a dança dos brincantes.
Nos entremezes, a música tem função narrativa. Começa por descrever as
características principais do personagem e anunciar ao que ele veio. Muitas vezes, descreve,
também, a ação que está sendo realizada e anuncia a saída do personagem. Finalmente, na
Despedida, a música toma novamente a sua função ritual, acompanhando os gestos e ações
dos brincantes. Vale acrescentar que, muitas vezes, a música dá suporte ao texto, como nas
peças narrativas dos entremezes. Outras vezes, a melodia ou o ritmo aparecem em primeiro
plano, como acontece nas peças de batalha ou nas de bailado.
Após a comédia do destronamento do Rei, o Mestre dá início às peças de terreiro,
cantos bailados, executados pelo figural, sob seu comando. Estas peças se revezam, durante a
apresentação do Reisado, com os entremezes. Geralmente, o Mestre puxa duas ou três peças,
entre um e outro entremez. A apresentação segue, deste modo, interrompida apenas pelas
embaixadas de guerra e batalhas até a despedida.
As peças são curtas, com uma pequena melodia e, geralmente, uma ou duas estrofes
de letra. O acompanhamento é feito pelos tocadores com o instrumento principal, usando
a afinação chamada “paraguaçu” e solando sobre o canto do figural. A execução do canto é
feita com o Mestre puxando os versos, que são repetidos em seguida pelo coro de figuras.
O canto é uníssono, mas existe uma variação nas vozes, com as crianças cantando
em tonalidade muito aguda, algumas vezes uma oitava e até uma nota acima. A forma do
canto, nos Reis de Congo do Cariri, aproxima-se muito da descrição feita por Alceu Maynard
Araújo sobre o modo de cantar dos Congos: “Cantam alternadamente solista e coro. Quando
o coro canta, sobressaem as vozes dos meninos em oitava acima e as dos homens que cantam
em falsete. Outros acompanham o canto numa terça abaixo da melodia. Estas vozes em
falsete são muito do gosto africano.” (ARAÚJO 1964, p. 233) A melodia de uma peça sofre,
costumeiramente, variações durante sua entoação, não só por parte de diferentes figuras,
mas também por parte do próprio Mestre. Também, tanto uma mesma melodia pode servir a
diferentes letras, como uma mesma letra pode ser cantada melodias diferentes.
Na maioria das peças, há uma primeira parte cantada, a qual os brincantes entoam,
dançando um tipo de passo lento, quase sem sair do lugar. Em seguida, no meio da peça,
entra uma parte instrumental, quando os brincantes fazem coreografias mais complicadas e
depois voltam a cantar em passos mais lentos.
Há uma boa quantidade de variações de passos, quase sempre lembrando passos
de frevo e de capoeira. Para muitos deles, explicou o Mestre Aldenir Calou, há peças
especialmente apropriadas. É o caso, por exemplo, da “pisada valseada”, que consta de
quatro passos para a frente abaixado, marcando bem o pé, e quatro passos para trás. A
“pisada valseada” é dançada com esta peça:
Vou para Amazonas.
A minha onda é a proa do navio.
Espírito Santo para Amazonas A
minha onda é a proa do navio.
Meu Deus que frio, que aguaceiro
se o marinheiro vai atravessar o rio.
Também no Reisado de Aldenir, há o passo chamado “crato”: todos abaixados,
pulando, cortando a tesoura e trocando, acompanhando o ritmo com a espada, batendo a
espada uma na outra, o Rei e o Mestre, o Embaixador e o Contramestre etc., ao som da peça:
A minha amada aguou meu jardim
meu galho de alecrim
eu sei que vai murchar.
Ainda ontem ela me chamou
será que é o nosso amor
que vai se acabar?
O “tesoura valseada” dança-se, pisando e jogando com um pé e outro, pulando com os
dois pés e jogando um pé e outro, ao ritmo da peça:
O meu Mestre mais bonito
pega no apito
quem sabe rimar.
Lá vai ele, o rapagão
de leve pegar
no grupo escolar.
Na “tesoura rebatida”, o brincante tem que pisar e rebater cruzando uma perna na
outra, acompanhando o ritmo da peça:
Tá cercando areia
eu também quero cercar.
Só pra ver meu ar de socorro
eu dentro das ondas do mar.
As estrelas do céu correm.
Eu também quero correr.
Elas correm atrás da lua
e eu atrás do bem querer.
As estrelas do céu correm
correm tudo em uma linha.
Mais depressa corre um beijo
da tua boca para a minha.
Chove chuva miudinha
na copa do meu chapéu.
Eu também sou miudinho
como as estrelas do céu.
(13)
O “valseando” consta de dois passos para frente e dois passos para trás, como se fosse
um xote. Peça:
Meu canário amarelo, cantador
se tu vais aprender eu também vou.
Ainda tiro o costume que tu tens
de amar a morena e querer bem.
Miguel Francisco falou de vários outros passos: “O trupé é uma pisada no ritmo da
música, sem errar nada. O passo é só um contrapasso. A passeata são dois passos pra cá
e dois pra lá.” (Os trupés, ou tropéis, são passos sapateados, marcados com pisada forte
no chão, são passos guerreiros). Citou ainda, entre outros, os seguintes passos e trupés:
meia-volta, passeata, gingá, cruzado, mancá (para trás), sapateado, todas-as-cidades (tudo
misturado), na ponta do pé, encruza e baianada.
Em seu livro sobre o Reisado alagoano, Théo Brandão cita os passos do gingá,
muquila, costas com costas, ponta de pé e de calcanhar, corrupio, encruzado, trocado ou
perna trocada, e os tropéis: passo 40 ou marcha, passo 43, passo 44, tropel rebatido, balanço
e tropel cavalo manco. Destes, no Cariri encontra-se o “costas com costas”, que é dançado
seguindo a letra da peça: Nós somos soldados
que andam em guerra
costa com costa
joelho na terra.
Somos soldados
de dois batalhão
costa com costa
joelho no chão. (Aldenir)
Em Alagoas (Maceió, 1948), cantava-se com os seguintes versos:
Somos soldado
viemos da guerra
costas cum costas
joelhos em terra.
Somos soldados
dos Estados Unidos
costas cum costas
o corpo ixtendido. (BRANDÃO 1953, p. 60)
Encontra-se ainda, o gingá, que Théo Brandão descreve dizendo que “ao ser
executada(o), os figurantes abaixam-se ficando de cócoras e balançam ou remexem os
traseiros para os lados.” (BRANDÃO 1953, p. 77) E o encruzado, “em que as pernas se
encruzam, ora a direita à frente da esquerda, ora esta última à frente da direita enquanto os
pés se movimentam”. (BRANDÃO 1953, p. 78) Outros, muitas vezes, aparecem com nomes
diferentes, mas todos eles têm suas peças apropriadas para se dançar. Durante o canto, tanto
em Alagoas quanto no Cariri, quando os brincantes dançam em ritmo mais lento, o passo
usado é o balancê, que “consiste em dois passos dirigidos para um lado e um tanto para a
frente, dois outros dirigidos para o lado contrário e um pouco para trás, com requebros do
corpo para os lados para onde se dirigem os passos. Além disto, porque não são inteiramente
laterais, a posição do corpo vai virando continuamente de modo que os figurantes volteiam,
em movimentos independentes durante toda a dança.” (BRANDÃO 1953, p. 80)
Há um grande número de peças tradicionais, que fazem parte do repertório geral dos
Reis de Congos do Cariri. Algumas delas já existiam inclusive em Alagoas, na primeira
metade deste século, com pequenas variações na letra ou na melodia. São exemplos:
Menino Jesus da Lapa, A Viuvinha, O Pescador e a Sereia, Mandei Fazer um Buquê pra
Minha Amada,
Eu Esta Noite Acordei Chorando, Ó Mana Vamos à Praia, Os Olhos do Amado Rei,
Chove Chuva Miudinha, Quando Eu Vejo a Lua Saindo etc.
Mas há um número, igualmente grande, de peças compostas recentemente pelos
Mestres. Certas vezes, alguns deles improvisam, ampliando a peça tradicional, dentro da
mesma melodia. Outros, porém, como o Mestre Aldenir Calou, são pródigos na criação de
peças.
Tive oportunidade de presenciar Aldenir em plena criação de uma peça nova. Ele
trabalhava com o Rei de sua companhia, o Ricardo. A peça estava sendo preparada para ser
cantada pelo Reisado das Meninas, criado pelo próprio Aldenir, sob o comando de uma neta
sua, a mestra Luiziana (nesta época, com cerca de 12 anos de idade). Os dois trabalhavam
sem a ajuda do violão, criando ao mesmo tempo letra e melodia. Usavam, em ambos os
casos, uma nova combinação de fórmulas tradicionais: (14) casavam a variação de um verso
antigo com um trecho de melodia destacado de uma peça já conhecida. Assim ia surgindo
uma nova peça.
Aldenir contou que, muitas vezes, tem uma idéia para uma peça no meio da noite.
Acorda então um ou mais de um dos seus filhos ou netos, que ainda moram com ele, e
conjuntamente criam a nova peça. Especificamente para o Reisado das Meninas, que ele
fundou no início desta década, Aldenir criou uma infinidade de peças próprias para serem
cantadas por mocinhas.
Quanto aos temas das peças, Théo Brandão enumera: peças de negro, antigos cantos
em língua africana; peças guerreiras, cantos guerreiros antevendo ou narrando batalhas de
antigos cruzados e cavaleiros andantes; peças líricas, canções de amor extraídas de xácaras
e romances de origem medieval; peças de elogio, cantando as qualidades do dono da casa,
de autoridades, de pessoas beneméritas ou mesmo do próprio Mestre da brincadeira; peças
crônicas, notícias de feitos ou acontecimentos importantes ou extraordinários. (BRANDÃO
1953, pp. 53 a 75)
Nos Reis de Congo do Cariri, apenas as peças de negro são dificilmente encontradas.
Todos os outros tipos estão presentes em abundância. Acrescentem-se a eles as peças
de religião, que tratam da devoção aos santos católicos e ao Padre Cícero.
Para publicação, foram escolhidas algumas peças cantadas pelos Reisados do Cariri,
entre as centenas que foram escutadas. Muitas delas são cantadas por diferentes Reisados,
com ligeiras variações. Assim, o nome citado ao lado da peça é o do Mestre de quem foi
colhida a versão publicada, não querendo dizer que a peça seja, em todos os casos, de sua
autoria, embora muitas vezes isto ocorra. As mais numerosas e também as preferidas são as
peças líricas que, mesmo sendo de criação recente, guardam a singeleza e o tom delicado dos
romances e xácaras medievais. Atente-se para os versos abaixo:
A viuvinha na beira do mar chorava
chorava tanto, que as água do mar levava.
A viuvinha na sua reclamação
só tinha pena quando ela soluçava. (Aldenir)
Eu essa noite acordei chorando
chorando e pensando que tu longe estavas.
Só tenho pena da minha terra.
Ô minha bela, meu amor é lá. (Aldenir)
A peça seguinte é de criação recente, e parece uma crônica amorosa.
Eu essa noite tava em casa pensando
tava imaginando a vida como é que é.
Quando chegou um portador me chamando
e uma carta me entregando
quem mandou foi uma mulher.
Abri a porta e quando eu comecei a olhar
peguei a chorar quando vi a letra dela. (Note-se a fórmula)
Eu e ela, nosso amor era demais.
Viajou para Goiás. Adeus, adeus, Gabriela.
A casa dela é na rua São José.
Tem uma mulher que vive por conta dela.
Iludiu ela, até quando carregou
Gabriela, meu amor.
Hoje eu sinto saudade dela. (Aldenir)
Lá vem a lua saindo
por detrás do altimonte.
Adeus morena, do cabelo louro
anelão de ouro, meu diamante. (Aldenir)
Meu coração batia
e fazia tum tum tum.
Agora chegou você
meu amor número um.
Meu coração parou
de bater tum tum tum. (Aldenir - peça feita para o Reisado
das Meninas)
Meu Cravo Branco
tem cuidado nessa sala
que aqui tem uma menina
danada pra namorar.
Pequenininha
do tamanho do cêcedilha
se pesar num dá um quilo
e anda doida pra casar. (Aldenir - peça feita para o Reisado das
Meninas)
Ô Ana, ô Ana, acorda e vem ver
o mar pegar fogo e os peixes se arder.
Ô Ana, ô Ana, te acorda e vem cá
o mar pegar fogo e os peixes se acabar.
Ô Ana, ô Ana, que faz no portão?
Tô tirando as rosas e deixando os botão.
Ô Ana, ô Ana, que faz na janela?
Tô tirando as rosas e levando pra ela. (Aldenir)
Ó menina dos cabelos louros
te dou um tesouro
pelos teus carinhos.
Tu te alembras, fui teu namorado
por este Reisado
eu me acho sozinho.
Ó menina não corte o cabelo
me peça primeiro
é se eu aceitar.
Pode usar pó, ruge e batom
se for nesse tom
eu prefiro deixar. (Aldenir - peça recente)
Ô moça me diga porque é
que a pedra do seu anel
faz a luz do Sol parar.
Eu sou da Usina Babaçu.
Menina da saia azul,
eu tenho um prêmio pra lhe dar. (Aldenir)
Ô moça namoradeira
nessa ribeira todo rapaz ama ela.
Olhei pra ela
e ela olhou pra mim
tem seus dentes de marfim
morena cor de canela.
Ô moça namoradeira
nessa ribeira todo rapaz ama ela.
Ô moça tão bonitinha
Só me parece com a flor da laranjeira. (Aldenir, peça recente)
Viva guerreira que não me queres
sou sofredor nasci pra sofrer.
Viva guerreira que não me queres
vivo sofrendo no mundo
e penando pelos carinhos de uma mulher.
Eu te dei o meu coração
fora jogou.
A flor quanto mais cheirosa
é a rosa, isso é ilusão do amor.
Aí que dor no meu coração
chorar não sei
porque ela me deixou.
Eu perdi a minha morena
meu Deus, aí que pena
não vai mais voltar.
Que será dessa minha vida, querida
o meu consolo é só chorar.
Eu perdi a minha cartinha
toda ela falava em amor. (Aldenir, peça recente)
Na minha vida eu já tive um amor
que era uma flor escolhida por mim.
No jardim da minha infância
eu era criança
hoje eu recordo assim.
Foi assim o que aconteceu
o que ela me deu foi só ingratidão.
Foi em vão que tudo acabou
só me resta a dor no meu coração. (Tico - peça tradicional)
A minha amada me escreveu um bilhetinho
só para ver se eu conhecia a letra dela.
A letra dela já era conhecida
Ela me amava e eu amava ela.
Mandei fazer um buquê pra minha amada
tinha bonina a fulô mais disfarçada.
O nome dela era estrela matutina...
Adeus, menina, sereno da madrugada. (Tico)
(Théo Brandão registra uma versão desta peça colhida em Viçosa - Alagoas, entre
os anos de 1910 e 1920, com o seguinte texto:
“Mandei fazê um buquê pra meu amô
Mas sendo ele de bonina disfarçada.
Mas tem o brilho da istrela matutina
Adeus minina, sereno da
madrugada.”)
(BRANDÃO 1953, p. 62)
Eu tenho mãe,
tenho pai, tenho parente
eu tenho tanta gente que
num vejo toda hora.
Eu num fui ontem, meu benzim
porque não pude.
Estava preso
como um pássaro na gaiola. (Sebastião Cosmo - peça tradicional)
Quando eu vejo a lua saindo
a lua surgindo, tão alva.
Só me lembro do teu carinho
do tempo, benzinho,
em que eu te amava. (Antônio Romeiro - peça tradicional)
Há peças, cujo tema é o próprio Reisado, suas sagas, viagens, apresentações, Mestres,
os Mateus, glórias, dramas, recordações etc.
Ai quem me dera que eu fosse no Céu
pra mim pedir a Jesus
pra minha cruz ser coberta com um véu.
Quando eu morresse que fosse finado,
naquela cruz eu ia sepultado
quem passava ali dizia:
ele era um Mestre de Reisado. (Aldenir)
Em setembro de 74
eu vi o estado do meu Mateus.
Ele tava chorando, o coitado.
E pra consolá-lo
ali eu parei.
Perguntei porque tanto chorava
e se lastimava.
Ele respondeu:
num tem fé de ficar curado.
Morrer envenenado
era mió pra eu.
Disse a ele: tenha paciência
e não perca a crença
que Deus pode curar.
.............. ter fé em Deus.
Hoje meu Mateus
tá podendo brincar.
Em todo canto o povo falava:
ele não fica bom
era engano meu.
Eu pensei na hora da missa:
há justiça maior que Deus? (Aldenir)
Esse Reisado das Meninas tá bacana
se o espírito não me engana
tira o primeiro lugar.
Pra completar, tem Ricardo e Aldenir
eu também tô por aqui
boa noite pessoá.
Se duvidar as coisas sai da onde espera
tem também Rita de Vera
que é uma mocinha legal.
................. e tem Márcia e tem Raquel
Boa noite, Luiziana
seu Reisado é só o mel. (Aldenir, peça recente)
Nosso Reisado,
o povo acha decente.
Em sua frente,
nós brinca popular.
É pra cantar
como canta o passarinho
quando voa do seu ninho.
Canta, canta, sabiá.
Se apresentar,
até na televisão,
na Exposição,
quando no Crato chegar.
É pra cantar
para o povo nordestino.
Homem, mulher e menino,
todos vão apreciar.
Nosso Reisado quando sai à rua,
em noite de lua, se parece um beija-flor.
Tem um Mateus, sei onde ele mora.
O meu peito chora, meu coração sente a dor.
(Aldenir, peça feita para o Reisado das Meninas)
Reisado é bom,
Reisado pra mim é festa.
Ainda hoje eu tenho lembrança
do Reisado que eu brinquei.
Chegou a vez,
tô recordando,
e a velhice adesmanchando
o que a mocidade fez. (Aldenir)
Este ano fomos convidados
pra dar um passeio em três capitais.
Vou a São Paulo, passo quinze dias
volto pro Rio pra também demonstrar.
E do Rio venho a Fortaleza
é uma beleza nossa capital.
No domingo nós temos passeio
na beira da praia qu’é muito legal.
Nós viaja mais o Mestre João
que é chefe do grupo de Maneiro-pau.
Merma turma temos Aniceto
qu’é de primeira o seu Cabaçal.
(Tico - esta peça é cantada por vários Reisados)
De madrugada
fui seguir minha jornada
fiquei num canto parado
quando uma estrela passou.
Ela passou
se subiu ninguém viu mais.
Dê lembranças ao Zé Morais,
Mestre Cordeiro mandou.
(Sebastião Cosmo, peça provavelmente de autoria de
um dos irmãos Cordeiros, Zuza ou Manuel.)
Outras vezes, as referências ao Reisado misturam-se com elogios. Quando o
Presidente Fernando Henrique Cardoso foi ao Crato, alguns anos atrás, Mestre Aldenir
apresentou-lhe uma peça especialmente feita para a ocasião:
Já brinquei no Crato,
Juazeiro do Norte.
Toda vida tive sorte,
já brinquei na Capital.
Mas esse povo
que está aqui presente
eu dou viva ao Presidente
que inventou esse Real. (Aldenir)
As peças de elogio são costumeiras:
Seu Oswaldo, essa sua presença
é dinheiro achado no salão.
E garante muita brincadeira
que vale dinheiro no sul do sertão.
Mas Dona Gena
tem dinheiro e tem primor
no momento alevantou
casa nova de armazém.
A casa dela
se parece com uma garça
tudo que se caça, acha
nada falta e tudo tem. (Sebastião Cosmo)
Mas Seu Oswaldo
mandou fazer um muro
bem feito e bem seguro
pra nunca mais ter fim.
A esposa dele
sentada ali do lado
mandando suas criadas
aguar o seu jardim. (Sebastião Cosmo)
Seu Oswaldo
seu dinheiro voga
compre um automóvel
para o senhor dirigir.
Um espelho, com dois aparelho
pra sua família sair a passeio. (Antônio Romeiro)
Ana e Seu Pedro
home de composição
de momento alevantou
casa nova de algodão.
A casa dele
se parece com uma garça. (note-se o emprego da fórmula)
Tudo que se caça acha
tudo tem e nada falta. (Antônio Romeiro)
Muitas vezes, o elogio estende-se a cidades e lugares.
Juazeiro é prata fina .
Barbalha é ouro em pó. (fórmulas encontradas nos reisados
Crato é uma medalha, ôi Iaiá alagoanos)
que atrai o raio do sol. (Tico)
Juazeiro é lugar falado
alumiado pra ser capital.
Vou dar viva à Mãe das Dores
Padinho Cícero dono do lugar. (Aldenir)
No Juazeiro tão formando uma igreja
A frente dela virada pra beira do mar.
Quem nunca viu uma obra interessante
Nossa Senhora das Dores
Padroeira do lugar.
(Antônio Romeiro - notar que esta peça é semelhante
a uma cantada em Milagres, sobre a igreja do lugar.
Na verdade, trata-se do uso de fórmulas.)
Em muitos casos, o elogio ao lugar vem junto a um adeus.
Adeus, serra do Pavão
adeus, meu sertão
da Matriz de Água Bela.
Adeus, serra da Gurita
Maria Bonita
eu adoro ela. (Tico - peça antiga)
Adeus Maceió falado
abaixo do Oceano.
Só levo pena e saudade em mim
dessas morena alagoanas.
Adeus que eu vou embarcar
pra minha terra onde moro.
Só levo pena e saudade
pro meu Juazeiro do Norte. (Tico)
Freqüentes são as peças tematizando fatos históricos que ficaram registrados no
imaginário popular. Um destes fatos foi a II Guerra Mundial:
Alemanha entregou-se
Só falta Itália e Japão.
Viva a mulher brasileira
com seu rosário na mão. (Aldenir)
Eu canto peça
pra Prefeito e Delegado
para Agente e Capitão
pra Tenente Coroné.
Uma instrução
da polícia eu não conheço
mas se for num esmoreço
brigo contra os alemão. (Sebastião Cosmo)
Também numerosas são as peças que falam do Juazeiro do Norte e do Padre Cícero:
Juazeiro tem uma grande ciência
que a Divina Providência
lá do céu praqui mandou.
Meu Padrinho Cícero fez uma reunião
ajuntou todos os romeiros
e aqui mesmo abençoou.
Aquele padre santo que ele daqui se mudou
ninguém fique pensando
que de nós se separou.
Mas é verdade que sua alma está no Céu
mas tá olhando pra terra
cobrindo todos com véu.
Aquele véu é pra nos livrar do perigo
nos livrar do comunismo
que o Brasil quer tomar.
Mas é preciso ter muita fé em Deus
e em Nossa Mãe das Dores
e o rosário rezar. (Aldenir)
Pernambuco é pernambucano
Sergipe é sergipano
Ceará é cearense
Juazeiro eu penso que tudo é romeiro. (Aldenir)
Sou beata, beata Mocinha.
Ô beata, cadê meu Padrim?
Meu Padrim eu vi se mudar.
Mas ele deixou Juazeiro sozim.
A mudança do meu Padrim Ciço
fez tremer a todo coração.
Eu só queria ver o Meu Padrim
de tardezinha, botando a benção.
Ai que dor sinto no meu coração.
As palavras que meu Padrinho disse
Mais nenhuma há de cair no chão.
(Tico)
(Théo Brandão tem registrada uma peça cantada por reisado alagoano, em 1938,
que lembra a primeira estrofe desta.
“Ó biata, ó biata mocinha
me dizei pronde foi meu padrinho?
Meu padrinho fez uma
viage ôi deixou Juazero
sozinho.”
Vale lembrar que Luiz Gonzaga gravou uma música, onde aparecem
versos semelhantes, sem acusar a procedência folclórica:
“Minha santa Beata Mocinha
vim aqui vim pra ver Meu Padrinho.
Meu Padrinho fez uma
viagem e deixou Juazeiro
sozinho.”)
Há peças religiosas, onde Nossa Senhora das Dores entra, junto com a paixão de
Cristo:
Por Nossa Senhora das Dores
com seu resplendor
em seu trono assentada.
Coroada, coberta com véu.
Avistei no Céu
a Família Sagrada.
Ô Mãe de Deus coroada
eu vou rezar donde Cristo nasceu.
Eu vi a imagem do Senhor
com Jesus cravado
que por nós morreu.
Eu avistei a imagem do Senhor
cravado na cruz
que por nós morreu. (Miguel Francisco)
Outro tema recorrente é a adoração aos Reis Magos:
Quando a estrela correu
quem viu foi eu.
Quando a estrela se mudou
quem foi que viu?
Quando a estrela chorou
quem viu foi eu
quando a estrela se mudou.
Valei-me Deus,
peça ao Rei do Oriente
pra ir na frente
do meu Boi. (Sebastião Cosmo)
São comuns as peças que falam de reis, rainhas, jornadas, guerras e batalhas:
Sou casado, solteiro, civil.
Eu acho que aqui
não há outra que eu ame.
Eu amei as ruas que estamos
por gratidão, ô donzela, me ame.
Fui chamado pra guerra civil
eu não queria ir
mas meu Mestre obrigou.
Mas eu fui, venci a batalha,
ganhei a medalha do Governador.
Quando eu cheguei na ponta da rua
avistei de longe a corneta tocar (Versos encontrados com variasó
me lembro de ir pra guerra ções em peças
tradicionais.) ai amor, ai amor, ai amor. (Aldenir)
Prepare sua ciganada
que nós vamos é pra Lisboa
em jornada.
Eu tenho pena da moreninha
que levou água de cima
desprezada. (Tico - peça tradicional)
Do mesmo modo, é antiga a peça:
Não quero cativá
Pra não morrer no cativeiro.
Olha a moça na janela
diga aqui camarinheiro. (Zuza Cordeiro)
Os temas da natureza são constantes:
O céu se turva de chuva
as nuvens ficam pesadas
o mar fica marejando
as águas ficam paradas. (Antônio Félix)
peças
:
Olê-lê sabiá, pássaro nobre
daqueles que come da fina nobreza.
Ele anda no colo das moças
e só dá passeio em cima da igreja. (Aldenir)
As vaquejadas, exposições, a vida do vaqueiro em geral são tema de uma série de
Tem meu valor.
Chego na Exposição
só peço boi corredor.
Sou natural de Brejão
onde tem gado e criação
tem home e tem cidadão
nascido e bem respeitado.
Eu era um filho sem dono
me criei no abandono
as vezes eu durmo sem sono
por viver tão desprezado. (fórmula)
Sou filho de gente boa
eu nunca fiz nada atoa
só me banhei na garoa
correndo atrás de gado.
Gosto de reunião
e de festa de mourão.
Jesus dê a salvação
pros vaqueiros batizados. (Aldenir)
O futebol também é assunto de reisado:
O Guarani quando
joga com o Icasa
se ele pudesse matava
todos dez e o goleiro.
O Guarani canta
mas nunca entra.
O Icasa sempre assenta
campeão de Juazeiro. (Miguel Florentino)
Algumas peças são originárias de antigos entremezes, como esta proveniente do
entremez do Pescador e da Sereia, que aparece em reisados alagoanos de Viçosa, Maceió e
Pilar, da primeira metade deste século. A peça registrada no Cariri, entretanto, é uma versão
com muitas diferenças, inclui uma fala do Mestre e outra da Sereia. Em comum com uma das
peças de Alagoas há o refrão. (BRANDÃO 1953, pp. 129 a 132)
Pescador que anda pescando
dentro de umas corredeira
olha o canto da sereia
pescador da barca bela.
Ei, pescador
ei, pescador
da barca bela.
Pescador, tu que passas
eu te quero.
Vamos ficar
na ponta da minha agulha
pois não dou do meu alguidá.
Ei, pescador
Ei, pescador
da barca bela. (Zuza Cordeiro)
Entre as peças ouvidas de Sebastião Cosmo, foram separadas duas peças crônicas. A
primeira foi inspirada em fato acontecido em Cajazeiras. O próprio Mestre explica: “Esse
homem, ele tinha uma amizade muito assim, ele pra lá, nós pra cá. De vez em quando ele
vinha olhar aqui minha brincadeira. Mas num era um homem bem católico, isto é, passava a
mão. Aí houve um caso com ele, lá pra Banda de Cajazeiras. Aí, eu botei:
Marque Lolô...
Ele saiu de Juazeiro,
ele foi pra Cajazeiras
visitar Frei Damião.
Quando chegou lá
agüentou uma prisão.
Às cinco horas da manhã,
o Delegado soltou ele.
Voltou pra trás
eu vou mudar de assunto
ele foi pegou o ônibus
na ladeira ele parou.
Quando ele desceu
quando ouviu o tiroteio
o Lolô saiu correndo
caiu lá e faleceu.” (Sebastião Cosmo)
A outra peça fala de um desastre:
Na Naguariba
veio um carro na carreira
no meio da ladeira
a roda caiu no chão.
Meu caminhão
é chevrolé.
Foi o chofé
que perdeu a direção. (Sebastião Cosmo)
Aldenir Calou é um talentoso compositor de peças. Algumas são muito interessantes,
como esta dialogada:
- Aldenir aonde tu tava
que eu te chamava
o senhor num me ouvia.
- Ô Assis, eu tava trabaiando
empregado na granja
o senhor nem sabia.
Algumas peças misturam temas e estilos, como esta de Antônio Romeiro, na verdade a
junção de várias peças ou trechos de peças diferentes, numa mesma melodia:
Ô baiana, estou vendo
a proa do navio. (refrão)
Ô baiana do dente de ouro
parece um tesouro.
Só parece uma santa doutrina.
Fazei a menina no ar celeste.
Mas eu vou, seu Zé Isaías,
dentro da Bahia
não ia lá mais.
Que fui preso por uma baiana.
Fui alimpar cana
e a polícia atrás.
Mas, ô baiana, o tamborete é bambo
eu pisei no barranco, só faltou virá.
Mas, ô baiana, é um bê, é um a.
Eu quero me casar
com uma baiana pequena.
Eu pego na pena
escrevo no papel
se teu pai não quiser
eu me jogo, morena.
Mas, ô baiana, quem te disse
que bala de rifle não mata ninguém.
Mas a bala que mais me mata
é jogo de futebol e partida de trem.
Mas, ô baiana, minha baianinha
chapéu de bainha do Aracati.
Ô baiana, se eu fosse solteiro
ganhava dinheiro
casava contigo.
Mas, ô baiana, nesse carnaval,
eu queria brincar
lá no Rio de Janeiro.
Ô guerreiro, qual é tua sina?
É morrer na campina
no meio do terreiro.
Mas, ô baiana, se tu for pra São Paulo
me traga dois galos
puxado a motor.
Que esse galo tem bico, esporão
ele enfia no chão
e derruba o vapor. (Antônio Romeiro)
EMBAIXADAS E BATALHAS
Depois de algum tempo revezando, no espetáculo, peças e entremezes outros, o Mestre
dá o sinal para começar as embaixadas e combates guerreiros. Geralmente, são precedidos
por peças com temáticas épicas e de guerra, durante as quais o Mestre pode trocar golpes de
espada com as figuras mais próximas, como por ocasião da que se segue:
Ó que casa grande
que eu avistei.
O primeiro que vi
foi uma luz acesa.
Olhei pra França
França e Bahia.
Meu Governador
da cavalaria.
Da cavalaria
Antõe Conselheiro (15)
fez um embalamento
pro Rio de Janeiro. (Aldenir)
A guerra acontece dentro do próprio Reisado, com o Mestre fazendo as vezes do
embaixador do Rei mouro que desafia o Rei, no caso o Rei cristão.
É sempre precedida de embaixadas, isto é, troca de estrofes poéticas entre os contendores
como em desafio guerreiro, onde cada um proclama sua valentia e outras virtudes,
conclamando o outro para a luta. As embaixadas, recitadas geralmente pelos chefes dos
grupos em disputa, comumente, são retiradas de cordéis que trazem temas de cavalaria, como
a Batalha de Oliveiros e Ferrabrás, Roldão e o Leão de Ouro, Os Doze Pares de França etc.
Embaixadas e batalhas representam episódios guerreiros de cavalaria, com alusões
medievais, como a guerra entre cristãos e mouros (ou turcos). São parte muito apreciada e
desenvolvida nos reisados caririenses, sendo que alguns deles, como o do Mestre
Sebastião Cosmo, especializam-se nestas lutas. Exercem, ainda, profunda atração sobre a
juventude, fazendo os rapazes e as moças (porque também existem combates nos reisados
femininos) esmerarem-se em mostrar destreza e coragem nas disputas. Desenrolam-se com
os contendores interpretando lances mortais com muito empenho e dramaticidade.
Às vezes, exageram, pelo menos na opinião dos Mestres mais antigos. No Reisado
do Mestre Zequinha, por exemplo, um Mestre jovem e ainda inexperiente (na época em
que o conheci - 1978), do Juazeiro do Norte, a luta de espada é fortemente dramatizada,
os contendores correm e jogam-se no chão, morrem enfim, o combate se dá com grande
veracidade. Miguel Francisco não aprecia, diz ele que é muito violento e que o Reisado não é
daquela maneira. Explica que Zequinha “viu aquilo no cinema e quer botar no Reisado”.
As disputas de espada, fabricada pelos ferreiros com aço ou ferro temperado,
obedecem a coreografias minuciosamente determinadas, com pontos e jogos marcados.
Quando os combates se dão com o canto de peças guerreiras acompanhadas pelos tocadores,
os jogos de espada são mais lentos, quase rituais. Porém, quando o combate generaliza-se, a
música passa a ser só instrumental, algumas vezes executada por Bandas Cabaçais.
Começa com o Mestre repetindo os versos ditos por Ferrabrás e Oliveiros, no famoso
cordel de Leandro Gomes de Barros: (16)
Mestre: Levanta-te cavaleiro
prepare as armas se apronte
pegue o cavalo se monte
e mostre ser bom guerreiro.
Tenha seu corpo ligeiro
veja não dê uma falha,
que a morte entre nós se espalha
a hora de um é chegada,
lance mão de sua espada
vamos entrar em batalha.
Rei: Quem és tu tão pequenino
que vem me desafiar?
Achas que vou me ocupar
de dar batalha a menino?
Logo tu que não tem tino,
ele diz com o furor (sic).
(17) Seja por qual forma for,
agora diga e confesse
qual foi o mal que fizeste
contra teu imperador?
Mestre: Beijando a cruz da espada,
seguindo a oração, (18)
oh! Virgem da Conceição
Maria Pia e Sagrada
Mãe de Deus Imaculada
esposa casta e fiel
pelo vinagre e o fel
que Cristo bebeu na cruz
rogai por mim a Jesus
nessa batalha cruel.
Rei: Eu sou um forte guerreiro
e tenho perseverança
dos Doze Pares de França
eu sou um dos cavaleiros.
Mestre: Tenho meu corpo ligeiro
um exército não me ganha.
Perante as minhas façanhas
demonstre o seu valor.
Defendo o Imperador
segundo Rei de campanha. (19)
A cada embaixada, dita por um dos contendores, há uma troca de golpes de espada,
mecânica, quase ritual, como para marcar o ritmo. Funcionam como símbolos de que ali se
está travando um combate.
“Nessas alturas, o Mateus já anda lá pelo meio do povo, todo se encolhendo, dizendo
que tá com dor de barriga e nunca viu uma coisa daquela, que a brincadeira tava tão boa e
o clima mudou, que tava todo mundo diferente, o Mestre tava contra o Rei, o Rei contra o
Mestre, pedindo socorro.” (Dedé Luna)
Mateus: Faz um jeitinho pra não acontecer nada! Eu sou muito valente, agora mesmo me deu
uma dor de barriga danada. Eu acho que eu vou é me embora. (Chegando perto do Mestre)
Seu Flecha, olhe! Aqui já prestou, agora não presta mais. Dê licença que eu vou me embora,
que eu tou adoentado.
Mestre: Não, nego sem vergonha!
Começa, então, a batalha. Metade dos guerreiros do lado do Mestre, metade do lado
do Rei. O Mestre joga espada contra o Rei, cada figura de uma fileira joga espada contra a
figura correspondente da fileira contrária, Embaixador contra Embaixador, Guia contra Guia
etc., enquanto os tocadores executam peças guerreiras. Primeiro, todos cantam:
Figuras: Eu tava no mato acampado
no chão deitado
com as armas na mão.
Nós somos soldado de guerra
que briga completo
com dois batalhão.
Depois, o combate generaliza-se.
Mestre: Haja fogo e haja guerra.
Figuras: Oi guerra no mar.
Mestre: Guerra contra Reis de Congo.
Figuras: Oi guerra no mar.
Mestre: Guerra contra as leis do povo.
Figuras: Oi guerra no mar.
Mestre: Guerra contra o magro vinho. (Note o conteúdo dionisíaco.)
Figuras: Oi guerra no mar.
O combate é todo codificado, por meio de movimentos convencionados, que os
brincantes chamam de pontos e jogos de espada. Os pontos de espada são aquelas partes
do corpo às quais os golpes do adversário dirigem-se. São elas: a cabeça, os pés, furando
no centro, de um lado e de outro. Os jogos de espada são diferentes combinações de golpes
em direção a estes pontos. Podem incluir, ainda, movimentos vários entre os contendores,
como o de jogar as espadas um para o outro, de atirar as espadas no chão e lançarem-se em
suas direções para as pegar (são os jogos de velocidade); o de arrastar o bico das espadas no
chão, tirando faísca do metal etc. Há jogos, também, onde um contendor está em pé e o outro
deitado. Os jogos de espada podem ser feitos com o brincante abaixado ou em pé, sempre
dançando.
Há mais de uma dezena de jogos de espada diferentes. O primeiro jogo é de cima
para baixo, o segundo jogo é de baixo para cima. Os contendores, primeiro, fazem o jogo e
depois o desfazem. Por exemplo, da esquerda para direita e depois da direita para esquerda,
ou de cima para baixo e de baixo para cima. Trocam de lado, arrastam a espada no chão
e batem de acordo com o ritmo do violão. No jogo seguinte, um dos contendores defende
seu lado direito enquanto o adversário defende o lado esquerdo. Depois mudam de lugar.
No sétimo jogo, cruzam as espadas quatro vezes e, em seguida, jogam-nas um para o outro,
para, depois, cruzá-las três vezes em cima e riscar, com elas, o chão uma vez em baixo.
Então trocam as espadas. No oitavo jogo, um dos lutadores mira o umbigo do outro, cruza
a espada duas vezes em baixo e uma na cabeça, enquanto o outro defende-se. No nono
jogo, o atacante lança a espada contra a cabeça do adversário, que se defende. Depois,
cruza a espada no ombro do outro, em seguida, nos pés, e embaixo, à esquerda e à direita.
No décimo jogo, os adversários cruzam os braços, enlaçando-se mutuamente e batendo
as espadas uma na outra. Depois riscam com as espadas o chão, correndo e riscando. No
décimo primeiro jogo, os adversários cruzam as espadas duas vezes do lado direito e duas
vezes do lado esquerdo. No décimo segundo, batem uma espada na outra e cruzam-nas,
furando a barriga, duas vezes. No décimo terceiro jogo, cruzam as espadas no ombro, um do
outro.
Os jogos são combinados entre os brincantes que se batem do seguinte modo: O
atacante, inicialmente, tem que sinalizar para o outro o ponto que vai atacar e o jogo de
espada que vai empregar. Se o outro conhecer o jogo, faz um sinal de assentimento e a luta
começa. Senão, balança a cabeça ou a espada, dizendo que não pegou o jogo. Neste caso,
o atacante tem que propor um outro jogo de espada. Os jogos de espada são a tal ponto
codificados que Mestre Aldenir, mesmo tendo a visão muito reduzida, consegue travar com
seu filho Assis, simulações de combate, com grande violência e velocidade.
Há também jogos de espada dançados, cada um deles com sua peça apropriada.
Miguel Francisco fala em sete destes jogos de espada, cuja coreografia é dada pela peça
executada. As peças são as seguintes:
A primeira:
A segunda:
A terceira:
A quarta:
Todo mundo cantou peça
só eu não cantei a minha.
Viva o trono da Sereia
onde morou a Rainha.
Minha barca bela (note-se a fórmula, muito comum)
da América do Sul.
Ai, meu Deus que eu morro
no cordão azul.
Ô mana vamos à praia
vamos à praia brincar.
Vamos ver a lancha nova
que do céu caiu no mar.
Meu canário amarelo cantador
se tu for o primeiro eu também vou.
Eu te tiro o costume que tu tem
de amar a morena e querer bem.
A quinta:
O sexto:
O
sétimo:
O relógio da Penha
tocou já deu hora.
Meu coração
pede suspira e
chora.
Perdi meu ouro
do dedo mindinho.
Vamos caçar ele
bem abaixadinho. (20)
Eu vi o trovão
zoar o viado berrar
na verde campina.
Menina eu vou
ensaiar eu quero é
brincar
pra cumprir minha sina.
São Bom Jesus
vós que sois tão
amoroso Me protegei,
me guiai no bom
caminho.
E a coroa
que ele leva na
cabeça é uma coroa
com setenta e dois espinhos.
Enquanto o combate desenrola-se feroz, os Mateus, fingindo medo, correm de um
lado para outro fazendo suas comédias. “O pessoal só olha mais pros Mateus porque eles
são muito humoristas, pulam muito, gritam, se valem de tudo quanto é santo do Céu. Dizem
que nunca tinham visto uma coisa daquela, é muito sangue!” (Dedé Luna)
Figura: (Ao Mateus) Hôme, pra vim a paz é preciso levantar a bandeira.
(“Os Mateus correm e levantam uma bandeira vermelha. Mas a guerra faz
é aumentar.”)
Figura: (Ao Mateus) Não, home, é uma bandeira branca, branca ou azul.
(Os Mateus correm pela platéia, arrancam uma camisa azul ou uma camisa
branca, levantam a bandeira e a guerra vai diminuindo até acabar.)
Segundo Aldenir Calou, no período de Natal, por ocasião das apresentações dos
Reisado, a batalha vira uma luta de cristãos contra mouros, em defesa do Menino Jesus. A
guerra, então, é representada por dois Reisados, um interpretando as forças cristãs e o
outro, as forças infiéis. Deste modo, Aldenir narrou o episódio:
“A gente leva o Menino Jesus deitado naquele bercinho, pra fazer esta parte. Aí
canta aquela peça:
Menino Jesus da Lapa
quem te deu cabelo
louro foi a minha vó
Santana que tirou do seu
tesouro.
Jesus da Lapa, Jesus da Lapa
Jesus da Lapa eu vi foi triunfar.
Menino Jesus da Lapa
quem te deu esse chapéu.
Foi a minha vó Santana
que me trouxe lá do Céu.
Jesus da Lapa, Jesus da Lapa
Jesus da Lapa eu vi foi triunfar.
(Então o Mateus faz sua paródia.)
Mateus: Eu li no Jesus da Lapa
quente eu gravei meu boi
foi a minha vaca Antonha
vei de lá do seu viver.
Meu Jesus da Lapa
Jesus da Lapa
Jesus da Lapa
eu encontrei um par.
Jesus da Lapa
eu encontrei um par.
Menino Jesus da Lapa
quem te deu esse chapéu?
Foi a minha vaca Antonha
quem me veio lá do Céu.
Meu Jesus da Lapa
Jesus da Lapa
Jesus da Lapa
eu encontrei um par.
Jesus da Lapa
eu encontrei um par.
Menino Jesus da Lapa
quem te deu essa camisa?
Foi a freira do convento
que ama a rainha linda. (Tico)
Terminado, o Mestre diz:
Mestre: Deus fez no dia primeiro
o mundo sem luzimento
No segundo o firmamento.
O mar no terceiro dia.
No quarto fez o luzeiro
que a todos nós alumia.
No quinto, a fera, cria.
No sexto fez o humano.
Daí a sete mil anos
a Conceição de Maria.
Rei: Do ventre da Virgem pura
nasceu um Deus verdadeiro
Senhor do mundo primeiro
pra reunir as criaturas
com tão fina formosura
entendimento e memória.
Para ganhar a vitória
da sua divina luz,
nasceu o Menino Jesus
soberano Rei da Glória.
(Depois desta parte, chamada adoração, iniciam-se as embaixadas que
vão desembocar no combate em defesa do Menino Jesus.)
Mateus: Rei cristão, tá chegando o Rei dos mouros com seus guerreiros.
Rei: Quê que tá dizendo, Cravo Branco?
Mateus: É o Rei dos mouros que quer proibir de nós adorar o nosso Deus
Menino.
(Então o Rei levanta-se empunhando a espada.)
Rei: Nós somos cristãos e tamos prontos pra lutar. Que me diz, Cravo
Branco?
Mateus: Que o Rei dos mouros quer proibir de nós adorar nosso Jesus
Menino.
Rei: Somos cristãos, defendemos nosso Deus. Estamos prontos pra lutar.
(Então o Rei mouro chega.)
Rei Mouro: Aprontai-vos, Rei cristão. Aprontai-vos. Mataremos você e
vosso Deus.
Rei Cristão: Não queremos guerra. Queremos paz. Venha com vossos
guerreiros adorar nosso Deus Menino.
“Aí é uma luta de se escangalhar, porque o Rei mouro não quer adorar nosso Deus
Menino. É uma luta de espada de Embaixador com Embaixador, de Mestre contra Mestre.
Tudo porque o Reis mouro não quer adorar nosso Menino. Mas no fim ele se entrega e nós
dois, juntos, nossos Reisados, vamos adorar o Menino. E canta de novo a peça do Menino
Jesus da Lapa.” (Aldenir)
Mestre Tico, também, deu sua versão do mesmo episódio: “Porque, antigamente,
dançador de espada tinha o Reis cristão e o Reis de moura. O Reis cristão era da igreja e o
Rei de moura era ateu. Então eles foram entrar na luta. O Reis de moura tinha a parte dele
e ele tinha que entrar naquela luta pra defender. E um ou outro dá a mão de amigo. Aí, o
Reis cristão tava lá no canto dele, quando chegou o nego.  Reis cristão tá chegano o Reis
dos moura com seus guerreiros pra destruir nossas imagem e nosso Deus Menino. Aí, ele
respondeu:  O que é que tu tá dizeno, ô nego?  Tá chegano o Reis de moura pra
destruire as nossas image e o nosso Deus Menino.  Nós tamo pronto pra defender as
nossas image. Tamo pronto pra lutar até a morte. (21) Aí o Reis de moura chegou com
aquela turma dele.
 Quem é esse senhor? Quem é esse Deus? Aonde está qu’eu num vejo? E fulano e senhor
nenhum! Quem num quiser morrer e que vosso Deus num seja destruído pelas nossas espada,
defenda-vos! Aí já foi emendando no baião, emendando na espada, mermo no duro. O Reis
moura caiu, o Reis cristão empurrou-lhe a espada. Não matou. O Reis moura caiu como
quem tinha morrido. Aí o Reis cristão empurrano a espada ali, furano, furano, inté que ele
se levantou, se arrependeu, pediu perdão a ele. Aí foram dar a mão de amigo, foram brincar
junto!”
A versão do Mestre Sebastião Cosmo é diferente e inclui a morte por envenenamento
de um dos Mateus, com sua posterior ressurreição, o que remete às batalhas do folguedo dos
Congos, onde o mesmo acontecia com um dos filhos do Rei. Veja-se a cena narrada pelo
Mestre de Juazeiro do Norte:
(Mestre entrega um pedaço de papel aos dois Mateus.)
Mestre: Tá olhando pra isso, Flor do Dia? Você vai entregar esse segredo ao Rei. Ele num
tá sabendo. Faz parte da minha briga com o Rei. Mas, olhem, vocês não vão comer isso no
meio do caminho.
(Então os dois Mateus saem para entregar o objeto ao Rei. Mas, no meio do
caminho, um faz que come o papel e que cai envenenado. O Mestre chegando, vê a cena.)
Mestre: Que negócio é esse aqui?
(O outro Mateus responde.)
Mateus II: Não, eu num sei não, seu Mestre.
Mestre: Você foi entregar o objeto que eu mandei pro Reis? Pro Reis e pra Rainha? Porque
eu disse que era uma espécie de guerra com o Reis.
Mateus II: Pois Ioió comeu. Cravo Branco comeu.
Mestre: Que conversa! Eu quero já aquele papel, que era um contratempo para o Rei. Pois eu
quero que você levante ele.
(“Então o Mateus II endoidece. Sai doido, arrumando uma ‘pilha’ (pílula), que é
dinheiro pro mode o outro Mateus se levantar. Quando o outro Mateus levanta, vai e
entrega a encomenda ao Rei.”)
Mateus: Olhe aqui o que o Mestre mandou. É uma carta ou qualquer coisa.
Rei: (Depois de ler o papel) É uma declaração de guerra. Guerra contra o palácio do Rei.
Eles vêm tomar nossa Rainha. Nós precisamos defendê-la e tomar a Rainha deles.
(Então formam-se dois cordões, dividindo os brincantes do Reisado, o cordão do Rei
e o cordão do Mestre. Os dois trocam embaixadas.)
Mestre: Lá em casa tem um rifle
como todo mundo sabe.
Quando eu boto a mão nele
a porta do Céu se abre.
Eu faço tanto defunto
que no cemitério num cabe.
Rei: Aceito tua força pouca
para comigo brigar.
Se você não pode comigo
se abaixe e me venha adorar.
Tenho a força do meu Pai
para contra ti mandar.
No gume da minha espada
teu pescoço vai rolar.
(Então, depois, começa a batalha das rainhas.)
RELAXOS E COMÉDIAS DO MATEUS
Durante todo o espetáculo, os Mateus fazem suas comédias e dizem suas poesias (ou
relaxos), sempre que são solicitados pelo Mestre. Encenam comédias e dizem orações por
ocasião da abrição da porta, na cena do destronamento do Rei e durante os entremezes,
mas também, a qualquer momento, podem intervir no espetáculo provocando a platéia ou o
Mestre com suas estrepolias. Freqüentemente, fazem paródias das peças sérias, como neste
caso:
(O Figural canta.)
Figurantes: Eu disse assim quando eu peguei na mão dela
pois era ela quem nasceu pra me amar:
Vamos casar na igreja de Belém
recebemos os parabéns, lá no altar.
Vou te contar, quando do sonho despertei
só num chorei, porque é feio homem chorar.
Fui procurar ela no canto da cama.
Perdi a minha bacana. Vai ser difícil encontrar.
(Enquanto isto, o Mateus faz a paródia.)
Mateus: Ela era casada com um cara de Itu.
Eu vi um pássaro voar, sentado num tiá.
Em cima de teu focinho
eu vi um tamanduá. (Aldenir)
A peça seguinte também é uma paródia. No original, o figural canta o refrão: “Mulher,
mulher, mulher,/veja a vida como é.” Já o Mateus canta:
Mateus: Muié, muié, muié.
Veja a briga como é.
Muié, muié muié.
Veja a briga o que é que dá.
No sítio Periquito, donde eu fui nascido e criado.
Em São João dos Cacete, aonde eu fui batizado,
fui a primera festa, perto do pau infincado. (Aldenir)
Outra paródia do Mateus:
Figurantes: Ô Noé, ô Noé, ô Noé, Noé, Noé,
quando Deus andou no mundo
foi na barca de Noé.
Meu Reis mariim
meu Reis mariá.
Ói ela é a dona
a rainha do mar.
Mateus I: Meu Reis mariquim
ô meu Reis maricota.
Mateus II: Eu não conhecia essa não. Que peça doida!
Mateus I: Palma pá peça, seu Meste. (Raimundo
Nonato) Algumas vezes, para um refrão “sério”, o Mateus improvisa um desenvolvimento:
Figural: Ô mulher que vida é essa
ô mulher, deixa teu marido andar. (refrão)
Mateus: Lá vem o Boi
que vem de ponta pra trás.
Carneiro que vem atrás
chega todo mundo igual.
Acho engraçado
a carreira do pavão.
O touro quebrou a bota
lá na trava do mourão. (Miguel Francisco)
A paródia de orações são muito freqüentes, tanto na parte da abertura da porta, quanto
nos intervalos dos entremezes e peças, junto ao público, rezando no rosário. Observem-se:
Mestre: Eu fui uma missa no Crato
às onze horas do dia
e quando alevantaro
a Conceição de Maria.
A Conceição de Maria
é boa de se apreciar.
Quem vai num quer mais voltar.
Foi meu Padrim quem botou
a cruz no Monte Siná.
Mateus I : Tem um véi e uma véia
ó Maria Imaculada
nossa protetora
nossa grande amada pa-pá-rá.
Em seguida, os Mateus cantam, também parodiando:
Mateus I : Fazemos um tacho de mé.
Mateus II : Ei vamos adorar. (O refrão é igual ao “sério”.)
Mateus I : E no segundo um firmamento.
Mateus II: Ei vamos adorar.
Mateus I : E uma nuvem de ciro (círio).
Mateus II: Ei vamos adorar.
Mateus I : E no quarto fez um luzeiro.
Mateus II : Ei vamos adorar.
Mateus I : Esqueceu tu de dar o meu.
Mateus II : Ei vamos adorar.
Mateus I : E do tutu já comeu.
Mateus II : Ei vamos adorar.
Mateus I : E do vento fez um trovão.
Mateus II : Ei vamos adorar.
Mateus I : E a Conceição de Maria.
Mateus II : Ei vamos adorar.
Mateus I : E da ilha sete dia.
Mateus II : Ei vamos adorar.
Mateus I : Eu atirei meu avião.
Mateus II : Ei vamos adorar.
(Tico)
Agora, têm-se algumas orações de Mateus, ouvidas de Miguel Francisco e seu
parceiro, completadas por pequenos diálogos:
Mateus I : Santa Bárbara, São Jerome
e o tabaqueiro do velho João Gome.
O ditado mais velho é
mulher magra virá home.
Três são um poste
dois São Capilé
e o outro derrete
pra encher seu boné.
A mãe.
Mateus II: A mãe de quem?
Outras orações da mesma fonte:
Mateus II: Salve Rainha
por detrás do aveloz
morreu o corno velho
e a mulher ficou pra nós.
Mateus I: Amém.
Mateus II : Quando eu vim de lá de casa
que passei cinco cancela
vinha doido de raiva
me meti numa tramela.
Mateus I : Tramela, trameliano
trameliano, tramela.
Mateus II : O direito do anzol
é ser torto sem baibela
que dois carneiro de chifre
num bebe numa tigela
que um pula e o outro pula
com pouco o chifre tramela.
Mateus I : Tramela, trameliano
trameliano, tramela.
Mateus I : Quando eu vi o São Caetano
perdi minha espingarda véia
fui achar pra mais de ano.
A espingarda tava tão véia
tinha enferrujado o cano.
No guardador da laquita
se arranchou umas abeia.
Dois jacu fizeram ninho
na caixa da espoleta.
Convidei meus camaradas
pra tirar essas abeia.
Só o mel que se estragou
deu dez arrobas e meia
fora o que levei pra casa
nove cabaça cheia. (Miguel Francisco)
Numa apresentação do Reisado do Mestre Antônio Romeiro, em Campos Sales, por
mim presenciada, o Mestre ensina o Mateus a rezar o pai-nosso, após uma discussão entre os
dois:
Mateus: Eu vou cantar uma peça, Mestre?
Mestre: Cantar o que, menino? Você num é liberado pra cantar.
Mateus: Num sou não.
Mestre: Oxente! Que conversa é essa? Você já viu nego ter vez?
Mateus: Por isso é que tu é nego.
Mestre: Venha cá, venha cá.
Mateus: Venha cá não, a casa é dos outros.
Mestre: Você tá muito maleducado, e eu vou lhe dar uma disciplina, que é mode você
compreender. Eu tou cansado de lhe falar. Quando eu falar pra você, você não venha com
esses maldo. Se ajoelhe, se ajoelhe!
Mateus: Aonde, seu Mestre?
Mestre: Aí.
Mateus: Aqui mesmo?
Mestre: Nos pés do tocador. (Mateus ajoelha-se) É longe, tá longe. Mais pra cá.
Mateus: Não sei, Mestre. Aqui tá bom?
Mestre: Avia, nego!
Mateus: É aqui?
Mestre: Aí, vamos. Pronto. Você já leu a doutrina, hoje?
Mateus: A doutrina?
Mestre: Sim.
Mateus: Qual a doutrina?
Mestre: Você num já sabe, não?
Mateus: Há tempo que eu já rezei.
Mestre: Já?
Mateus: Já.
Mestre: Pois é pra rezar agora. Viu?
Mateus: De novo?
Mestre: Sim. Vamo!
Mateus: Fazer o pelo-sinal...
Mestre: Pelo-sinal.
Mateus: Pereno siná.
Mestre: Da Santa Cruz.
Mateus: Da solta cruz.
Mestre: Rapaz, é assim, pra lá!
Mateus: É!?
Mestre: Da Santa Cruz.
Mateus: Da solta cruz.
Mestre: Num é lá não, rapaz! É aqui na sua cabeça.
Mateus: Livre os deus.
Mestre: Pra baixo!. Ora, livre os deus.
Mateus: Livre eu só.
Mestre: Nosso Senhor.
Mateus: Ora, nosso Senhor! É eu mesmo só.
Mestre: Do nosso...
Mateus: Do nosso o quê?
Mestre: Inimigo.
Mateus: Inimigo seu. Meu mesmo não.
Mestre: Mas ora, você vem com cada estória!
Mateus: Conte, seu Mestre, que eu tou vexado.
Mestre: Mas num tem vexame não.
Mateus: Vamo.
Mestre: Padre Nosso.
Mateus: Padre nosso não. É pai só meu.
Mestre: Que estais no Céu.
Mateus: Tá no Céu não. Tá aqui na Terra.
Mestre: Santificado.
Mateus: Infincado não. Eu tou desarrancado.
Mestre: Seja o Vosso Nome
Mateus: Ora, vosso nome. Só o meu só!
Mestre: Venha a nós.
Mateus: Venha a nós, quem?
Mestre: O vosso reino.
Mateus: Ora, vosso Rei!
Mestre: Seja feita
Mateus: Feita o quê?
Mestre: Contra vontade.
Mateus: Contra a vontade não, eu faço porque quero.
Mestre: (Para um figurante) O que é que eu faço com esse nego?
Figurante: É deixar de mão.
Mateus: É deixar de mão, né! Que o nego tá dizendo as coisas como é.
Durante a brincadeira, os Mateus vão soltando embaixadas e poesias:
Mateus: Eu vi gambá nua
calçadinha de chinela.
Vi a moça donzela
casada com um caitu.
Eu vi o pássaro urubu
assentado no tiá
(tear).
Vi dois preá contando capim.
Dois tamanduá pareceram
em cima do teu fucim. (também aqui aparecem fórmulas.)
Santo Antônio tava quinta
fazendo uma discussão.
Chamou pela véia Jacinta
desabotuou o cinturão.
Lá vem o velho Gustavo
vem torcendo seu bigode
arrede do meio,
que não pode.
Quando eu era pequenino
que eu andava de cerôla
as Meninas me chamava
pra pegar na minha rola. (Miguel Francisco)
Os Mateus brincam com o público:
Mateus: Meu padrinho, tão belo , tão bonitinho ,
como vai, como passou?
Me jogue uma centenária
minha cara deixa o buraco ficar (?)
senão aviso o Cabeludo
pra vim aqui lhe buscar.
Tão belo e bonitinho (fórmula que aparece sempre)
olho de coruja baiano
vai morder quem te fez mal.
Menina dos olhos d’água
me dê água pr’eu beber.
Não é sede, não é nada
é vontade de te ver. (Miguel Francisco)
“Aí o povo cobre na gargalhada, porque o Mateus se engraçou daquela jovem bonita.”
Também são constantes os diálogos (as “comédias”) entre os dois Mateus, e deles com
o Mestre. Eis alguns deles:
Mateus II: - Bem feito tu ter fazido. Camaleão penoso, aí tá comido.
Mateus I: Camaleão grelou os ói, tá cozido. Óia o tamanho do ói. (Miguel Francisco)
Na apresentação do Reisado da Rua Delmiro Gouveia, ouviu-se a seguinte conversa
entre os dois Mateus, terminada com uma poesia:
Mateus I: Cadê a farinha, cumpade, cadê?
Mateus II: Cazizim, leu quem sou eu, não sou branco também não?
Mateus I: Ai é, desculipe!
Mateus II: Ora que bolas!
Mateus I: A bola é essa ai...
Mateus II: Ó, eu vou dizer aqui uma relagem bem bonita, viu!
Mateus I: Diga!
Mateus II: Da costela de uma purga (pulga)
fiz quatrocentos badoque
seiscentos curridiboque
cem anel de tartaruga.
Na cidade de Pompeu
o sol subiu e desceu
meu corpo ardeu em brasa
dou-lhe no dono da casa
beba tu e beba eu.
Mateus I: Ora, Mateu!
Este diálogo também foi ouvido no Reisado da Delmiro Gouveia:
Mestre: Ô, patrão!
Mateus: Sinhô?
Mestre: Meu Deus, meu Deus o que é que tá havendo aqui no mei desse pessoá?
Mateus: Quer sentar, Meste?
Mestre: Meu Deus, o que quê... sabe dizê que meu... no mei desse pessoá?
Mateus: Oxente, o sinhô num é gago não, meu Deus?
Mestre: Eu tô chamano meu Deus, mas é meu Deus, num é você não!
Mateus: Oxente, mas o sinhô disse que é meu Deus!
Mestre: Você é Cravo Branco!
Mateus: Ah, taí o sinhô disse: meu Deus...
Mestre: O que é que está havendo, aqui, entre nós? (Dá com a espada em Mateus)
Mateus: Não, dê mais devagar, viu!
Mestre: Não, eu quero saber o que está havendo aqui entre nós.
Mateus: Seu Meste, tá haveno muita coisa! O gato e o urro da raposa.
Mestre: Não, nem gato, nem onça, nem raposa. Eu quero que me diga de que se usa!
Mateus: Que se usa? É o sinhô cantar mais animado pro... pr’eu acabar de me alegrar.
Mestre: E é?
Mateus: É.
Mestre: Escute, e eu num já cantei tão animado?
Mateus: Agora eu vou cantar...
Mestre: Apois quero que me paguem..
Mateus: Eu tou apreparado, home. Num tá com medo, ainda, não?
Quando está sentado no trono do Rei, fazendo se passar por ele, Mateus tenta enganar
o Mestre, como acontece nesse diálogo ouvido durante uma apresentação do Reisado da Rua
Delmiro Gouveia:
Mateus: Eita, seu Mestre, o sinhô num viu a Burrinha qu’eu tava com ela, aqui, não? Ô meu
Secretário de Sala! Ô meu Secretário de Sala!
Mestre: Pronto, senhor Reis, pelo vosso chamado!
Mateus: Todo serviço o senhor faz?
Mestre: Só se o Rei mandar.
Mateus: Vá buscar aquela pecinha que dá num quilo barbado, nós comemo carne gorda e
Mestre Zé comeu a pata.
Mestre: Mentiroso! Ah, mentiroso!
Miguel Francisco relata o seguinte diálogo, envolvendo os dois Mateus e o Mestre:
“Quando eu entro, para formar a abrição da porta. Eu digo assim:
Mateus I: Quando eu vinha lá do meu sertão
que passei lá na matinha
vi o seu Mestre debaixo de uma arapuca.
Mestre: Oxe, Mateus, e eu sou uma nambu?
Mateus I: Não senhor, o senhor é uma suru.
Mateus II: Não parceiro, ele é cotó. Não chame ele de suru.
Noutra ocasião, o Mateus vem com a cafuringa na mão e pergunta para o Mestre:
Mateus: Oi seu praga, a gente joga é no novo ou é no velho?
Mestre: Não sei não. Joga aí em quem quiser.
Mateus: Apois toma! (Joga a cafuringa na cara do Mestre.)
Mestre: Ai, o que é isso neguinho? Respeita!.
Quando os brincantes do Reisado vão louvar o Divino, aos pés do altar, cantando
peças do Reisado, os Mateus ficam no coice do Reisado, “ajeitando os figurado”. Os
figurantes dizem embaixadas e o Mateus brinca.
Figurante: O dono da casa é rico
tem dinheiro no baú
tem muita nota de cem
verde casa de azul.
(bis)
Figurante: Da cozinha de Orós
adeus que eu vou embora
para o triste mato do Sul.
Mateus: Vam’bora, seu Frecha, mais eu! (Seu Flecha é o Mestre.)
(“Aí, ele vai, corre com a espada atrás da gente. Aí o Mateus fala.”)
Mateus: Olhe Mestre, tá na hora de nós botar os entremeios que tá ficando tarde e amanhã
nós temos que ir trabalhar, né Iaiá. (“Nós chama a dona de casa de Iaiá, e o dono da casa
de Ioiô.” - Miguel Francisco)
Em cena que presenciei, no Reisado do Mestre Antônio Romeiro, depois de sair
correndo atrás do Sapo (personagem de entremez), quando este, terminado o entremez, entra
dentro de casa, o Mateus volta e trava um diálogo com o Mestre.
Mateus: É o sapo mais feio que eu já vi.
Mestre: Mas nego, num parece com tu não, meu nego?
Mateus: Cum, eu?
Mestre: Sim.
Mateus: Você já viu um sapo daqueles parecer com um galego que nem eu?
Mestre: Mas, por que todo nego é assim? Você num sabe que nego não é do meio dos home,
nego é do meio da peia!
Mateus: Da peia? Peia ficou pra animal, seu Mestre.
Mestre: E foi?
Mateus: Foi, você num sabia?
Mestre: Me diga uma coisa, eu ouvi falar que tem uma moça aqui que está doidinha por
você? Como é?
Mateus: Uma moça?
Mestre: Sim.
Mateus: Ah, seu Mestre, o senhor não sabia que tem é muitas, não?
Mestre: E tem?
Mateus: E muito, tudo doida, doida.
Mestre: Eu bem sabia, porque um galego que nem esse, é das moças ficarem apaixonadas.
Mateus: Num é não?
Mestre: Apois é.
Mateus: As moça é tudo doida por mim e eu num...
Mestre: E é?
Mateus: É, tudo doida pra levar um cacete.
PERSONAGENS E ENTREMEZES
Chamam-se “entremeios” (corruptela de entremezes) pequenas encenações, quadros
dramáticos representados que, durante o espetáculo do Reisado, se intercalam com a
execução de peças, embaixadas e batalhas. Estas cenas desenrolam-se, geralmente, em
torno de um, dois e até três personagens, que não tomam parte do restante da apresentação
(diferentemente das figuras), e que por isso são chamados, comumente, também, de
“entremeios”, ou seja, tanto a cena, como seus personagens centrais, são chamados de
“entremeio” pelos brincantes.
Os entremezes são definidos pelas características dos personagens que deles fazem
parte e pela ação que executam. Não têm texto definido, os brincantes atuam improvisando,
mas fazem-no a partir de elementos, roteiro, falas, gestos, movimentos, dados pela tradição.
Comumente, não só o brincante, que interpreta o personagem do entremez, mas também o
Mestre sabem de memória as falas e procedimentos do personagem. Não se trata, porém, de
um texto fixo (só é fixo o sentido geral), mas variável de reisado a reisado, e até dentro de
um mesmo Reisado, de apresentação para apresentação.
Cada entremez tem sua peça de chamada, que anuncia seu personagem central e,
muitas vezes, peças de retirada. Alguns deles podem ter, ainda, outras peças exclusivamente
a eles destinadas como é o caso do Boi, que além das peças de entrada e despedida, tem
canções específicas relativas à morte e à ressurreição, entre outras. Outros entremezes
(poucos), como o da Sereia e o da Alma, possuem diálogos inteiramente cantados.
O Mestre e os Mateus, obrigatoriamente, tomam parte em todos os entremezes,
contracenando com seus personagens. O Mestre atua como diretor de cena e interlocutor
dos personagens, e os Mateus, nas suas características cômicas, brincam com a situação.
Algumas vezes, até outras figuras são chamadas a intervir durante as cenas representadas,
atendendo a chamado do Mestre ou mesmo por iniciativa do personagem principal do
entremez.
O entremez apresenta comumente uma situação de conflito, que aparenta ser o
clímax de um enredo mais desenvolvido, simplificado pelo tempo e pela tradição. Em
outras palavras, o entremez parece ser a cena principal de uma história que perdeu seu
desenvolvimento. Trata-se, invariavelmente, de situações conflitivas, de grande movimento e
impacto dramático.
Os personagens do Reisado, como acontece comumente no teatro popular tradicional,
são tipos humanos ou animais e seres fantásticos humanizados, cheios de vida, energia e
determinação. Suas características são dadas pela tradição, sejam eles figuras ou personagens
de entremezes. Como se trata de personagens de praças, ruas e terreiros, não comportam
sutilezas psicológicas ou físicas. Suas características aparecem em grandes traços, fisionomia
bem definida, aspecto físico inconfundível, gestos largos, voz nasalada e possante e
movimentos amplos. Quando eles aparecem em cena, anunciados ou não por sua peça, todos
já sabem de quem se trata e o que veio fazer. Eles não hesitam, agem. Não têm conflito
interior, fazem o que têm que fazer, de maneira clara e direta. Seu modo de ser não é ditado
por singularidades psicológicas e nem mesmo por atributos sociais. Importa primeiro sua
ação, o que eles vão fazer. Todo o resto é decorrência disto.
Para tornar verossímil sua ação cênica, para obter-se dela o efeito desejado, seja
de riso, emoção lírica ou arrebatamento épico, é constituído o personagem. A tradição
fornece sua estrutura, fazendo as vezes de autor. Informa a aparência física do personagem,
sua máscara, seu figurino e adereços. Indica os gestos e movimentos por ele usados. Diz
como deve proceder em cena, qual seu fazer (que no teatro popular tradicional é bem mais
importante que seu querer). Empresta-lhe, ainda, um acervo de falas, muitas das quais em
versos, que pode ser empregado em diálogos previamente fixados ou em improvisos.
A caracterização do personagem do Reisado parece um tanto quanto esquemática,
mas não se trata, como muitos acreditam, de um personagem apenas esboçado, delineado
mas não preenchido, inacabado, enfim. É mais um personagem sintético, compactado em
traços essenciais. O trabalho da tradição encarrega-se de seu enxugamento. No decorrer
da transmissão oral, geração a geração, os detalhes vão se perdendo, desaparece seu
enchimento, para restarem apenas seus traços definidores. Aparenta ser um personagem
pobre, pouco desenvolvido, se comparado ao da moderna dramaturgia. Mas, em cena,
ganha uma clareza, uma concretude, uma vivacidade, uma capacidade de provocar impacto
imediato, poucas vezes obtidas por personagens de maior detalhamento psicológico.
Gerados por processo de criação coletivo e milenar, os personagens do Reisado
retêm arquétipos, fragmentos de mitos e matrizes culturais, que lhes dão qualidades
universalizantes e representatividade cultural. São personagens universais pelo conteúdo
e regionais pela forma. Daí se explica, em parte, a forte empatia que exercem sobre seu
público. São personagens tirados do inconsciente coletivo, fortemente incrustados no
imaginário popular.
Em muitos casos, são figuras míticas, partes de uma ordem cósmica, onde aparecem
em comunhão com a natureza e a coletividade. Mesmo quando trata-se de animais ligados
ao cotidiano popular, a exemplo do boi ou de tipos humanos comuns, como o Mateus,
guardam uma grandiosidade similar à dos personagens do teatro clássico. São todos eles
elementos do grande corpo popular, a exemplo dos personagens grotescos das festas públicas
nas praças da Idade Média.
O estoque de personagens dos reisados não é muito extenso. No Ceará, inclui apenas
algumas poucas dezenas. Como todo teatro, reúne personagens mais e menos desenvolvidos,
mais e menos ativos. Seu espectro abarca desde personagens com características
relativamente detalhadas, com ampla liberdade de movimentação e interferência durante todo
o espetáculo, como os Mateus e a Catirina (estes não apenas agem, mas também interagem
e dialogam, inclusive com a platéia), até simples figurantes, como Guias, Contraguias,
Coices, Contracoices e Figurinhas, cujas participações, quase sempre, limitam-se ao canto e
à dança, compondo a hierarquia do folguedo. Inclui, ainda, inúmeros bichos, animais reais ou
imaginários, que entram somente em determinados quadros, não falam, restringem-se, quase
sempre, a dançar, embora, às vezes, estendam sua ação a investidas de brinquedo contra a
platéia.
Como foi dito, os personagens do Reisado, segundo a nomenclatura tradicional, estão
distribuídos em figuras, quando pertencem à própria estrutura do folguedo, permanecendo
em cena durante todo o espetáculo, e em entremeios, denominação dada aos personagens
móveis, que entram apenas em um determinado quadro, durante o espetáculo. Estes
entremeios geralmente são feitos por brincantes que também interpretam figuras durante o
espetáculo, algumas vezes numa interpretação dupla, como é o caso do Mateus, que faz o
vaqueiro na cena do Boi.
De acordo com os gêneros, os personagens do Reisado podem ser divididos em: a)
Líricos - geralmente vêm à cena apenas para expor seus sentimentos amorosos ou emoções
num bailado cheio de graça, são pura sensibilidade e cheios de singeleza, a exemplo da
Sereia e da Zabelinha, originam-se, provavelmente, de xácaras e romances populares da
Idade Média, também pode-se arrolar entre os líricos alguns animais, como o Sapo (que
vem à cena porque quer se casar); b) Épicos - cuidam da guerra, dos negócios da honra
e da valentia, trocam embaixadas, diálogos cavalheirescos em versos, mesuras e vênias,
lutam com espadas, repetem trechos do romanceiro histórico-cavaleiresco popular, como
A Luta de Oliveiros e Ferrabrás e Os Doze Pares de França, incluem as diversas figuras
guerreiras, o Rei, o Mestre e a Rainha (que também pode ser considerada lírica); c)
Cômicos - tratam de inverter a ordem das hierarquias e relativizar a seriedade do mundo por
expedientes grotescos, são os Mateus, Catirinas, Diabos, velhos e velhas libidinosos, como
os personagens das farsas, metem-se em estrepolias e burlas, são ainda cômicos, os tipos
sociais, geralmente paródias grotescas de personagens sérios, como o Padre, o Doutor e o
Soldado; d) Fantásticos - monstros animalescos ou híbridos de homem e animal, homem e
vegetal, tornados risíveis, de modo a desfaz-se o terror que poderiam provocar, é o caso do
Jaraguá, do Guriabá, da Caipora, do Folharal e do Babau; e) Religiosos - proclamam sua fé,
lutam contra o mal, cantam loas e tiram versos em louvor aos santos e às coisas da religião,
são, entre outros, São Miguel, o Mestre, o Rei e demais figuras dos cordões.
Muitas vezes, os personagens dos Reis de Congos aparecem em parelhas, como as
formadas pelo Mateus e Catirina, pelos dois Mateus, pelo Urso e o Italiano, pelo Mateus e o
Mestre, e em grupos, como o dos Mateus (que podem incluir dois ou três Mateus, ou, além
do Mateus, comparsas de nome Fidélis e Bastião, que tanto podem aparecer em grupo como
em parelha). As parelhas poder ser similares, como as que formam Mateus e Catirina, ou
os dois Mateus (que tomam nomes diferentes: Cravo Branco e Flor do Dia, por exemplo),
ou contrastantes, como no caso do Italiano e do Urso (domador e domado), do Mestre e do
Mateus (sério e jocoso), ou do Soldado e do Cangaceiro (ordenador e desordenador).
Na construção do seu personagem, o brincante parte dos seus aspectos exteriores, de
sua máscara, que pode ser uma máscara propriamente dita (como nos velhos e velhas), uma
maquiagem (como no Mateus e na Catirina), ou uma certa aparência física (como no Rei, no
Mestre e figuras dos cordões). Na verdade, a tradição indica o modo de ser do personagem
através de traços físicos e comportamentais, que o brincante adota, dando-lhe vida. O
público já conhece cada um deles, bem como o que vão fazer em cena. Sua curiosidade, seu
divertimento ficam por conta de como o brincante faz, a cada vez, seu personagem.
O estilo de interpretação dos atores ao fazerem estes personagens segue os princípios
do realismo grotesco, com súbitas metamorfoses tanto na aparência física, quanto nos
sentimentos dos personagens, gestos e expressões faciais exageradas, onde destaca-se a boca
e o nariz, movimentos amplos, incluindo constantes quedas e saltos etc, princípios estes que
podemos encontrar delineados no famoso livro de Bakhtin, A Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento.
Para os teatrólogos e atores que se inspiram no teatro popular tradicional, um
bom exercício seria partir desses personagens sintéticos, elaborados pela tradição e darlhes
desenvolvimento, recriando seus detalhes e recompondo-lhes o enchimento. Outro
procedimento, a ser experimentado, poderia consistir em compor novas combinações entre
esses personagens, montando situações dramáticas diversas das encontradas nos folguedos
tradicionais
A denominação do entremez é dada pelo nome dos seus personagens principais. Nos
Reis de Congo do Cariri, os entremezes mais freqüentes são: o Boi, o Jaraguá, a Burrinha (ou
Zabelinha), a Alma São Miguel e o Cão, o Velho Anastácio, o Italiano e o Urso, o Guriabá,
O Soldado e o Cangaceiro, a Sereia, e o Sapo, mas pode aparecer também uma infinidade de
outros, como: o Gigante, o Bode, o Babau, o Lobisomem, Pai Tomé e Mãe Maria (ou Mãe
Joana, ou Ana Rosa), a Doida, o Bacurau, o Pequenininho, o Cavalo-marinho, o Sapateiro, o
Barbeiro, o Folharal, o Velho e a Velha, a Caipora e o Méi-de-Mundo.
Os “bichos” (nome usado pelos brincantes de Reisado para denominar não apenas
os personagens animais, mas também os híbridos), quase sempre, são remanescentes das
mitologias africanas e ameríndias, onde é muito comum, segundo Gilberto Freyre, “bichos
confraternizando com as pessoas, falando como gente, casando-se e banqueteando-se.”
(FREYRE 1978, p. 130) Alguns desses “bichos” fazem parte do ciclo do terror infantil. O
mesmo Gilberto Freyre chama a atenção para o fato de o menino brasileiro não ter medo
de nenhum bicho em particular, “mas de um bicho que não se sabe bem qual seja, espécie
de síntese da ignorância do brasileiro tanto da fauna como da flora de seu país. Um bicho
místico, indefinível, horroroso: Babau, Jaraguá, Guriabá, Carrapatu, Zumbi, Papangu, Mocobebe,
Tutu-marambá, em última análise: o Jurupari.” (FREYRE 1978, p. 331)
Os personagens do entremez são interpretados, quase sempre, pelas próprias figuras do
Reisado, que trocam de traje para caracterização, ou simplesmente colocam algum adereço
novo. Há casos, como o dos Mateus, no entremez do Boi, em que eles usam o mesmo
figurino. Algumas vezes, o Reisado inclui brincantes especiais, brincadores de entremezes.
BURRINHA
É entremez singelo e bem simples, porém muito apreciado. Consiste no bailado de
uma menina cavalgando uma burrinha. A menina chama-se Zabelinha e pode ser interpretada
tanto por uma criança do sexo feminino como do masculino. A Burrinha entra em cena
acompanhada dos Mateus. Faz volteios, mesuras e outras evoluções. Cumprimenta a platéia
e bota sortes. O dançador (ou dançadora), de pé, mete-se dentro dela, como montado.
Suspende a Burrinha através de duas tiras que passam por seus ombros. O corpo do animal
consiste em uma armação de varas finas e leves, com cabeça esculpida em madeira, imitando
uma pequena burra. É coberta com tecido colorido, tem arreios, rabo e duas pernas saindo,
uma de cada lado, imitando as pernas do cavaleiro.
Em alguns Reisados, o dançador pode ser um adulto do sexo masculino e a Burrinha
aparecer confundida com o Cavalo-marinho. Algumas vezes, inclusive, aparece também
a Zabelinha na forma de uma boneca de pano, sentada na garupa do Cavalo-marinho ou
da Burrinha, junto com o cavaleiro. Neste caso, o entremez seria uma reminiscência do
entremez do Cavalo-marinho, como aparece no Bumba-meu-boi, animal montado pelo
Capitão, fazendeiro, dono do Boi e da brincadeira. Tanto isto é verdade que no próprio Cariri
e mesmo no Reisado do Mestre Aldenir, até a década passada, muitas vezes ainda se falava
em Cavalo-marinho, no lugar de Burrinha. Nos últimos anos, entretanto, o entremez vem
tomando uma forma definida, em que a Burrinha diferencia-se completamente do Cavalomarinho.
Mesmo assim, a chamada da Burrinha continua usando a mesma solfa da do
Cavalo-marinho e há versos com referências a elementos do mar, evidenciando sua origem
ligada ao Cavalo-marinho.
Registrei o entremez numa apresentação do Reisado das Meninas, de Bela Vista 
Crato, dirigido pela Mestra Luiziana, sob a orientação do Mestre Aldenir Calou, em julho de
1995. Eis sua descrição:
(Zabelinha vem montada na Burrinha. A Zabelinha é representada pela menina que
interpreta o Rei. A Burrinha tem o pescoço e a cabeça branca e vem vestida com uma saia
bem larga, estampada em vermelho e branco. A menina veste uma jaqueta de lantejoulas
vermelhas por cima do seu traje de Rei. Parece uma princesa. Ela dança montada na
Burrinha. Quando cantam o “tim tim tim...”, a menina dança arrastando os pezinhos para
um lado e para o outro e a bunda da Burrinha fica para lá e para cá. As outras brincantes
ficam assistindo acocoradas para dar visão aos assistentes e a Mestra permanece no meio
dançando junto com Zabelinha, dando rodadas com a espada na mão. Os Mateus, que são
dois, ficam atrás fazendo brincadeiras. Cada Mateus traz um revólver na mão. No canto
da peça da Burrinha, a Mestra puxa e os brincantes repetem sempre o refrão: “Não sou
bananeira, nem sou bananá”.)
Mestra: Arreda moleque do meio do camim.
Não me tire do cavalo
não me jogue no espim.
Figurantes: Zabelim tim tim tim tim.
Mestra: Minha Burrinha decente das ondas do mar.
Figurantes: Não sou bananeira, nem sou bananá.
Mestra: Minha Burrinha faceira das ondas do mar.
Figurantes: Não sou bananeira, nem sou bananá.
Mestra: Minha Burrinha bonita das ondas do mar.
Figurantes: Não sou bananeira, nem sou bananá.
Mestra: Minha Burrinha bonita chegou no lugar.
Figurantes: Não sou bananeira, nem sou bananá.
Mestra: Eu tinha 7 saias mandei costurar.
Figurantes: Não sou bananeira, nem sou bananá.
Mestra: Eu tinha 7 lenços mandei embainhar.
Figurantes: Não sou bananeira, nem sou bananá.
Mestra: Eu tinha 7 blusas, mandei engomar.
Figurantes: Não sou bananeira, nem sou bananá.
Mestra: Bota a sorte Burrinha das ondas do mar.
Figurantes: Não sou bananeira, nem sou bananá.
Mestra: Vai embora Burrinha para o teu
lugar. Figurantes: Não sou bananeira, nem sou
bananá. Mestra: Leva ela Mateus lá pro lugar dela.
Figurantes: Não sou bananeira, nem sou bananá. (22)
Zabelim tim tim tim tim.
(Quando canta “Bota a sorte”, Zabelinha vai distribuindo lenços, que troca por uma
contribuição em dinheiro. Ela entrega o lenço à pessoa e o Mateus vai recebendo o
dinheiro atrás, dividido entre o brincante que faz a Zabelinha e os Mateus. Depois, a
Zabelinha sai, montada na Burrinha e acompanhada pelos dois Mateus.)
Em conversa que tive com os Mestres Raimundo Nonato, Antônio Félix e Zuza
Cordeiro em 1978, eles afirmaram que o Cavalo-marinho e a Burrinha eram entremezes
diferentes. Informaram, ainda, que, no Cariri, nunca apareceu o Cavalo-marinho, somente
a Burrinha. Disseram ter notícias de que há Mestres usando o Cavalo-marinho, mas que
eles mesmos nunca haviam visto. Do mesmo modo, no Cariri, nunca havia aparecido o
Capitão do Mato, como em Alagoas, ou o Mascarado, como aparece no Reisado de Caretas,
montando o Cavalo-marinho.
Entretanto, pelo menos nos versos da peça da Burrinha, a confusão perdurava. Em 17
de setembro de 1989, Aldenir Calou, com seu Reisado, ainda trocava Burrinha e Cavalomarinho,
tanto que, na peça da Burrinha, ainda apareciam versos referindo-se a ele, como
“Cavalo-marinho chegou no lugar”, ou “Cavalo-marinho dança devagar”, ou ainda “Bota a
sorte cavalo das ondas do mar”. A referência, na peça atual, às “ondas do mar”, portanto, é
um resquício da antiga confusão.
JARAGUÁ
É um personagem totêmico, provavelmente originário das selvas africanas ou das
florestas tropicais. Uns dizem que é um pássaro, porém assemelha-se mais a um animal
resultante da fusão entre uma girafa (o corpo) e um jacaré ou cavalo (a cabeça). Sua cabeça
consiste em uma caveira de cavalo ou em uma armação de madeira imitando a cabeça de um
animal de mandíbulas avantajadas, que abrem e fecham repetidamente, batendo com grande
barulho. A queixada possui um mecanismo que permite sua manipulação pelo dançador
e está fixa a um cabo de madeira, que lhe serve de suporte. Seu corpo é formado por uma
‘empanada’ presa ao pescoço, ocultando a figura do dançador.
Em cena, o Jaraguá baixa a cabeça, enquanto a primeira parte (mais lenta) de sua peça
é cantada. Depois, dança, bate as queixadas, corre atrás do Mateus e da criançada. Segura
algum espectador com os dentes, pelo braço ou outra parte qualquer do corpo. Só solta
mediante uma contribuição, em prenda ou dinheiro, para o Reisado. Também pode “botar a
sorte”, conduzindo uma espada na boca e entregando-a a alguém da platéia, que a devolve
com uma contribuição.
A encenação do entremez começa com o Mestre apitando e, junto com todo o figural,
cantando a chamada do Jaraguá, enquanto este entra escoltado pelos dois Mateus. Eis a peça
do Jaraguá:
Mestre e Figuras :Estava debaixo de um arvoredo
ao meio-dia estava descansando.
Ouvi um canto tão saudoso,
só me parece um passarim cantando.
Ó que bicho feio, Virgem Mãe de Deus,
é o Jaraguá, ó maninha,
vem pegar Mateus.
Vem com a boca aberta, ó maninha,
pra pegar Mateus.
Mestre: Chegou, chegou,
lá chegou meu Jaraguá.
Figural: O bichinho é bonitinho,
ele sabe vadiar.
Mestre: Brinca bem, meu Jaraguá
brinca bem, meu Jaraguá.
Figural: O bichinho é bonitinho,
ele sabe vadiar.
Mestre: Levanta ele, meu Mateus (bis)
Figural: O bichinho é bonitinho,
ele sabe vadiar.
Mestre: Vai embora, Jaraguá (bis)
Figural: O bichinho é bonitinho,
ele sabe vadiar.
Mestre: Olha o menino, Jaraguá (bis)
Figural: O bichinho é bonitinho,
ele sabe vadiar.
Mestre: Tu fez bonito, Jaraguá (bis)
Figural: O bichinho é bonitinho,
ele sabe vadiar.
Mestre: Olha o povo, Jaraguá (bis)
Figural: O bichinho é bonitinho,
ele sabe vadiar.
Mestre: Tu vai logo, Jaraguá (bis)
Figural: O bichinho é bonitinho,
ele sabe vadiar.
A peça do Jaraguá, por ser composta de partes com melodias diferentes, como se
justapostas, parece uma junção (uma ‘bricolage’) de peças de várias origens. No entremez do
Lobisomem em Alagoas, aparece, por exemplo, uma peça com os versos: “Ó que bicho
feio,/Virge mãe de Deus./É o Lobisome,/Vem pegá Mateu.” (BRANDÃO 1953, p. 127) Já no
entremez do Jaraguá, também em Alagoas, consta peça com os versos: “Chega pra diente
jaraguá/Jaraguá, meu jaraguá/Bate a boca jaraguá/Jaraguá, meu jaraguá/Pega o nego jaraguá/
Jaraguá, meu jaraguá.” (BRANDÃO 1953, p. 127)
Interessante é ouvir dos próprios Mestres a descrição e o juízo que fazem do Jaraguá.
Zuza Cordeiro dizia que “O Jaraguá é uma fachada de cavalo bem trabaiada, com um
pescoço que vai lá naqueles mundo, vestido num vestidão solto, com uma queixada que bate
acolá em cima. É representado por uma queixada de cavalo de verdade. Os olhos são umas
bilas de vidro. Ou pode ser feito de pau. A queixada de cavalo precisa cobrir com papel e, se
vai bateno muito, cai aqueles dente no mei d’uma sala. Hoje não usamo mais. Hoje tão usano
de pau.”
Mestre Tico, no entanto, prefere o Jaraguá de caveira de animal como antigamente.
Disse: “Agora, eu fiz um bom, que é de cabeça de jumento. Aqui é legítimo mermo. Porque
pra Reisado só aceita Jaraguá da cabeça de jumento porque é maior e quando o bicho abre a
boca parece que é um jumento mesmo.”
Já Sebastião Cosmo explica a natureza do Jaraguá: “O Jaraguá é um pássaro. Aí então
o cabra vai, se veste ali dentro. Tem uma corda, que quando a gente tá cantando, ele puxa e
a boca de madeira vai batendo. Ele não tem asa, tem somente a formosura de pássaro. Ele
baixa a cabeça. A gente canta, ele dança. A gente bota sorte, ele abre o bico, a gente bota
sorte com o bico dele.” Da mesma opinião é Antônio da Mariquinha, de Campos Sales, para
quem “o Jaraguá é um pássaro que existe na mata.”
SAPO
A cabeça, redonda como a de um sapo, é feita com saco de estopa cheio de algodão,
formando uma máscara semelhante a uma almofada. Também de saco de estopa, pintado
de várias cores, é feito o corpo do Sapo. Na barriga, coloca-se uma folha de papel crepom
branco, ‘bem fininho’, para fazer o papo subir e descer, imitando a respiração do animal. O
brincante fica dentro e salta imitando um sapo. O entremez começa com o Mestre cantando
a chamada do Sapo. (Baseado aqui, na forma como o entremez é encenado pelo Reisado
do Mestre Aldenir.)
Mestre: Meus senhores todos, oxente.
Todos me prestem atenção
na representação do Sapo, minha gente
pulando aqui neste salão.
(O Sapo entra pulando)
Figurantes: Oxente, oxente, tá bom demais.
Mestre: Meus senhores todos, oxente,
o Sapo quer se casar.
Mas tá lhe faltando é a gravata, oxente.
Esse moço é quem vai dar
Figurantes: Oxente, oxente, tá bom demais.
Mestre: Meus senhores todos, oxente,
o Sapo quer se casar.
Mas tá lhe faltando a cueca, oxente,
essa moça é quem vai dar.
Figurantes: Oxente, oxente, tá bom demais.
(A peça prossegue com a falta de outras partes da indumentária, que, antigamente,
os presentes iam retirando e dando para o Sapo. Agora, em vez disto, os assistentes dão
contribuição em dinheiro. No final, o Mestre puxa a despedida do Sapo.)
Mestre: Meus senhores todos, oxente,
minha mãe bem que dizia.
Que a sina aqui do Sapo, minha gente,
era se casar com a Jia.
Figurantes: Oxente, oxente, tá bom demais.
Mestre: Meus senhores todos, oxente,
o Sapo que se casar.
Só falta se retirar, oxente.
O Sapo pode ir embora.
(O Sapo sai pulando para dentro de casa, com o Mateus atrás.)
Em alguns Reisados, segundo Miguel Francisco, o Sapo saía pela assistência
procurando uma noiva. Ele jogava um lenço no ombro de uma moça e ela só escapava se
desse alguma prenda. No Reisado de Antônio Romeiro, a peça do Sapo varia nos versos,
faltando ao Sapo, entre outras coisas, um penico, uma aliança e um cinturão.
Em Alagoas, o entremez do Sapo era cantado com a tradicional cantiga de ninar do
sapo-cururu, à qual os brincantes do Reisado acrescentavam o estribilho: “Oxente, oxente/
Tá muito bom/ Oxente, oxente/Tá bom demais.” Mas não se falava no desejo do Sapo de se
casar.
SEREIA
“A Sereia é um peixe do mar, uma moça encantada. A gente aqui tem um vestido
comprido, bota uma máscara com o retrato de uma mulher. Quem faz a Sereia é um homem
vestido de mulher, mascarado, com um pano na cabeça, que nem uma trança”. (Aldenir)
O entremez começa, como de costume, com a chamada:
Rei e coro: Eu vi a Sereia cantando
na torre da barca bela.
Só comparo o meu amor, ô iô iô
c’um broquel de rosa amarela.
Sereia: Meu Reis eu sou uma Sereia
venho remando das ondas do mar.
As ondas tão muito forte
dê licença pra mim vadiar.
Rei e coro: Eu trago Sereia, trago cabedá
trago o rei dos peixes
das ondas do mar.
Sereia: Meu Reis eu sou uma Sereia
venho remando das ondas do Mar.
As ondas tão muito forte
tou cansada e não posso brincar.
Coro: Olê Sereinha, olê Sereiá
trago o rei dos peixes
das ondas do mar.
Sereia: Meu Reis eu sou uma Sereia
venho remando das ondas do mar.
Eu quero saber do senhor
Se tem um rapaz pr’eu casar.
Coro: Olê Sereinha, olê Sereiá
trago o rei dos peixes
das ondas do mar.
Sereia: Meu Reis eu sou uma Sereia
venho remando das ondas do mar.
Eu peço licença ao senhor
dê licença vou me retirar.
Coro: Olê Sereinha, olê Sereiá
trago o rei dos peixes
das ondas do mar.
(Durante o diálogo cantado, os brincantes ficam em roda agachados e, no centro da
roda, apenas a Sereia e o Mestre. Quando os versos terminam, todos se levantam, cantam
e dançam uma nova peça.)
A borboleta, das que tem as asa azu
quando ela se senta faceira no avoar.
Só tenho pena da minha jovem donzela
ô minha bela, vi a Sereia no mar.
Me embarquei para o Rio de Janeiro
quando dois avião passou.
A Sereia cantou no mar.
Meu Reisado, adeus que eu já me vou.
(Depois de um apito do Mestre, encerrando o entremez, a Sereia sai, secundada
pelos Mateus.)
A Sereia aparece dançando e cantando também nos pastoris e dramas, inclusive no
Ceará. Em Alagoas, existe o entremez do Pescador e da Sereia, porém bem diferente do
nosso. Nele, a Sereia procura seduzir o Pescador e atraí-lo para o fundo do mar. De comum,
só há a referência à “barca bela”, que parece ser uma fórmula, isto é, um termo recorrente na
poética tradicional popular.
No Cariri, ouvi do próprio Dedé Luna, com confirmação de alguns outros Mestres,
que o entremez da Sereia, como é apresentado ali, foi uma criação do mesmo. Fica a dúvida,
porque muitas vezes os Mestres consideram criador de um entremez aquele que o apresenta
pela primeira vez no lugar.
GURIABÁ
Ser fantástico, híbrido entre homem e animal, era velho Reisado independente,
que depois se somou ao Reis de Congo. Aparece nos antigos reisados alagoanos. É um
homem mascarado, vestido de vermelho, entra em cena com o Mateus puxando-o por uma
corda amarrada na cintura. Deste modo, ele é descrito pelos Mestres: “O Guriabá é uma
urupembinha (peneira de palha de carnaúba), bem ajeitadinha, bem pintadinha, parecida
com uma cara feia. Você bota na cabeça e amarra aqui no pescoço... O caba bem ajeitado,
com uma garrafa ali. O cara bebeno cachaça e bateno no chão.” (Tico) “O Guriabá é do
tipo de um monstro. A cabeça bem redondona, toda cheia. É que nem um bicho feroz, com
a cabeçona e o fucinhozinho bem fininho. Ele chega com uma garrafa, batendo no chão,
bebendo, como se fosse aguardente. Dança e briga. Quando está bêbado, pega a tombar.
Aí é tempo dele ir embora. O Mateus pega pelos braços e leva. O negócio dele é só beber.”
(Antônio Mariquinha, de Campos Sales)
Antes de o “bicho” entrar, o figural canta sua chamada:
Figural: Meu Guriabá
das gaia do pau
bebe aguardente
pra ficar legal.
Meu Guriabá
lá de Juazeiro
bebe aguardente
pra ficar maneiro.
Agora, sim,
é que eu quero ver
meu Guriabá
onde vai beber.
No sertão, usa-se a expressão “bebo como um gambá”, numa alusão ao costume que
este animal teria de beber. Não sabemos ao certo, mas pode haver aí uma relação entre
gambá e guriabá. No Reisado de Antônio Romeiro, o Guriabá aparece com o nome de
Bacurau.
CANGACEIRO E SOLDADO
Tradicionalmente, o Reisado fixa em seus entremezes tipos populares, como o padre,
o doutor, o fiscal, o beberrão, o doido, a mulher casamenteira, o velho mulherengo etc. Por
isso, não podiam faltar, entre eles, o soldado e o cangaceiro, que marcaram com suas
disputas todo um ciclo sóciocultural. O Cangaceiro é o valentão, que vem romper com a
ordem e o Soldado é o que vem pôr fim ao caos provocado pelo Cangaceiro, restabelecendo
o equilíbrio social. Dessa forma esses personagens ficaram fixados no imaginário do
Reisado.
No entremez, o Cangaceiro é representado por um brincante vestido a caráter, com
máscara, chapéu de couro (de aba virada), ao modo de Lampião, cartucheira, faca e revólver
na cintura e pente de balas cruzado no peito. O Soldado, também, veste-se a caráter, com
uma farda antiga da polícia militar e revólver na cintura. No Reisado do Mestre Aldenir, a
peça de chamada do Cangaceiro é a seguinte:
O dono da casa
tem muito dinheiro.
Dentro dessa casa
mora um Cangaceiro.
Segundo, ainda, Aldenir, o desenrolar do entremez se dá deste modo: “O Cangaceiro é um
velho valente, que chega para acabar a brincadeira. Diz que aquilo está incomodando ele,
que sua mulher está doente e não pode estar ouvindo zoada, que também seus filhos não
podem dormir e tudo o mais. O velho vem armado de faca e revólver. Então chega o
Soldado, porque onde tem uma pessoa valente tem que ter a polícia para prender ela. O
Soldado manda tocar a brincadeira pra frente. O Cangaceiro manda parar. Aí começa a
confusão.
Finda os dois se testando. O Soldado quer desarmar o Cangaceiro, pede a faca e o revólver.
O Cangaceiro não quer dar. Os dois brigam, tapa vai, tapa vem. Até que o Cangaceiro se
entrega. Então o Soldado leva o Cangaceiro pra fora do salão, carregado nas costas.”
Miguel Francisco narra o episódio dramático do mesmo modo e diz que sua finalidade
é fazer rir. Diz ele: “O Soldado é pra prender o Cangaceiro. O Cangaceiro chega brabo,
querendo brigar e o soldado vem e prende ele. Tem uma luta medonha entre os dois, quando
o Soldado dá voz de prisão ao Cangaceiro. Isso é tudo pra gaigaiada. Se trava aquela luta, até
quando o Soldado pega o Cangaceiro e conduz para o xadrez.”
No Reisado do Mestre Sebastião Cosme, o entremez aparece com uma modificação
fundamental: quem vence o Cangaceiro não é o Soldado, mas um cangaceiro de outro
bando, de nome Antônio Porcina, que, segundo ele, fazia parte da ‘turma’ de Lampião. A
ação dramática do entremez tem o seguinte desenvolvimento:
(O Cangaceiro chega acabando a brincadeira.)
Cangaceiro: Que zoada é essa aqui?
Mestre: Meu amigo, aqui é uma função... função de Reis de Congo.
Cangaceiro: (Dá uma risada) É bom parar esse negócio.
Mestre: Não. Aqui, quem manda na minha brincadeira é, primeiramente, Deus e depois eu.
Cangaceiro: (Dando uma risada) Rá, rá rá! Mas eu num quero zoada aqui no meu pé do
ouvido não.
Mestre: Mas, por qual razão? Por que você chega acabando minha brincadeira, com ordem
de quem?
Cangaceiro: Com a minha ordem.
Mestre: Será que o senhor é mais valente que todo mundo?
Cangaceiro: Rá rá rá! Se aparecer um mais valente que eu, nós se agarra e nós se lasca.
Mestre: Então, pera aí que o senhor vai falar com Antônio Porcina.
Cangaceiro: O valente aqui sou eu. Num tem esse negócio de Antônio Porcina não.
Mestre: O senhor sabe como ele é?
Cangaceiro: Ele é por cima lá no Diabo, em cima de mim, não.
(Mestre e figurantes cantam a chamada de Antônio Porcina)
Mestre e coro: Que grande fogo na serra
que grande frieza no mar.
João Mateus tu toma cuidado
que Antônio Porcina num tarda a chegar.
Se o dono da casa
é homem de dinheiro
previna suas armas
mode os cangaceiros.
(O Mestre chama Antônio Porcina. Ele chega valente, bravo.)
Mestre: Eu mandei lhe chamar porque chegou um home valentão aqui. E pior é que ele
chegou acabando com minha brincadeira.
Antônio Porcina: Se aparecer um mais valente que eu, eu me mudo de lugar.
(O Mestre apita, os tocadores executam um baião e Antônio Porcina começa a dançar.
Quando chega o Cangaceiro, Porcina se esconde. O Cangaceiro sai e o Mestre faz
uma pergunta.)
Mestre: O senhor num viu ele não?
Antônio Porcina: Vi não.
Cangaceiro: Me diga uma coisa, o senhor tá cego?
Antônio Porcina: Eu num vi o homem, eu num vi não.
(O Mestre manda tocar de novo o baião. Antônio Porcina dança. O Cangaceiro
chega e os dois encontram-se, agarram-se e embolam-se no chão, até que, ao apito do
Mestre, eles apartam-se e saem de cena.)
Em Alagoas, este entremez existia pelo menos desde a década de 40. No livro de Théo
Brandão, consta, como sendo do entremez, uma peça que inclui versos semelhantes aos
encontrados no Ceará. Veja-se a quadra: “Sinhô dono da casa/é home de dinhêro./Privina sua
arma mode o cangacêro”, colhida em Pilar, no ano de 1947.
PAI TOMÉ E MÃE MARIA
Entremez que busca o riso proveniente do desencontro. Trata-se de um casal, cujos
membros procuram-se um ao outro e, por muito tempo, não se encontram. Pai Tomé é
um “velhinho bem velhinho”, barrigudo e mulherengo. Mãe Maria é uma mulher nova,
assanhada. O registro do entremez é baseado no Reisado do Mestre Dedé Luna. Eis sua ação
dramática:
Mestre e coro: (Cantando) Hei Mãe Maria cadê Pai Tomé?
Ele foi para o mato foi tirar mé.
(Então o velho aparece com o machado nas costas, a barba branca e pergunta.)
Pai Tomé : Mestre, você viu minha Maria por aqui?
Mestre: Não, eu num vi não.
(Os Mateus, então, conversam com Pai Tomé.)
Mateus: Meu velho, como é essa mulher?
Pai Tomé : Minha mulher é uma mulher boa e simples.
(Pai Tomé sai. Mãe Maria chega, muito assanhada, dizendo que perdeu o marido,
que ele saiu para tirar umas abelhas e não voltou mais.)
Mestre: A senhora é casada, é moça ou é viúva?
Mãe Maria: Meia lá, meia cá. Eu sei que sou uma mulher muito sincera.
(Então, o Mateus começa a conversar com Mãe Maria. Depois o coro
canta novamente.)
Mestre e coro: (Cantando) Hei mãe Maria
cadê Pai Tomé?
Ele foi pro mato
foi tirar mé.
(Então, o velho chega e ela foge. Depois que isto acontece pela terceira vez, é que
eles se encontram.)
Este entremez aparece em outros reisados com variações. Às vezes, muda o nome
de um dos personagens ou mesmo dos dois e até suas características, transformando-se em
outro entremez, ou no mesmo entremez com nome diverso, isto é, em alguns Reisados,
Mãe Maria ganha o nome de Mãe Joana (no Reisado do Mestre Tico) e até de Ana Rosa (no
Reisado do Mestre Olegário, de Jardim). Em outros reisados, o casal que se desencontra
é formado por Manezinho e Velha Vovó, e noutros, ainda, pelo Doido e pela Doida
(neste
caso como decorrência de uma confusão). Parece, nos três casos, tratar-se de variações do
mesmo entremez. Para efeito de melhor clareza, entretanto, é oportuno descrevê-lo como três
entremezes diferentes.
VELHA VOVÓ E MANEZINHO
Entremez apresentado pelo Reisado de Antônio Romeiro, de Campos Sales. Como
já foi dito, trata do desencontro de um casal. A Velha Vovó, interpretada por um homem
mascarado de mulher, traja um vestido comprido. O Manezinho é um velho, usa máscara,
com barba de couro de animal, chapéu de madeira e uma sacola de lado. Na apresentação
que assisti, Manezinho foi interpretado pelo Mateus. O entremez começa com a Velha Vovó
toda agachadinha, como se estivesse procurando alguém.
Mestre: O que é que você anda atrás?
Velha: Eu ando atrás de Manezinho.
Mestre: De Manezinho?
Velha: É sim.
Mestre: E onde você perdeu esse Manezinho?
Velha: Eu tava dormindo mais ele.
Mestre: Sim.
Velha: E ele me deixou na cama e viajou.
Mestre: E viajou, e você nem deu fé?
Velha: Eu tava dormindo e num vi.
Mestre: E anda atrás do Manezinho?
Velha: Eu ando atrás do Manezinho.
Mestre: E você acha que o Manezinho tá aqui?
Velha: Eu acho que eu soube uma notícia...
Mestre: Soube duma notícia?
Velha: Soube, lá está ele.
Mestre: Mas Véia, me diga uma coisa, e só foi ele sair, você se esquentou?
Velha: Não. Foi porque, quando ele saiu, me deu uma coceira! Eu vou atrás do Manezinho.
Mestre: E que coceira é essa?
Velha: É porque, quando num coça atrás, coça na frente.
Mestre: Mas, Véia! Já uma véia assim!
Velha: É porque eu sou assim.
Mestre: Apois caça o Manezinho, ele tá por aí.
Velha: Tá mermo!
Mestre: Tá, vamos ver.
Velha: Ô Manezinho, onde é que tu tá, Manezinho?
(A Velha sai correndo atrás de qualquer um, chamando o Manezinho. O pessoal vai
se afastando.)
Mestre: Ei, Véia!
(A Velha sai correndo atrás de todo mundo. Sai gente para tudo quanto é lado.)
Velha: Ô Manezinho. Vem cá, Manezinho.
Mestre: Ei, Véia, me diga uma coisa: num achou Manezinho, não?
Velha: Cacei Manezinho e num achei.
Mestre: Olhe, ele aí!
Velha: Ô, Manezinho!
(A Velha sai correndo e espalha gente para tudo quanto é banda.)
Mestre: Num achou não, Véia?
Velha: Fui pegar Manezinho, mas ele correu.
Mestre: E você num achou, Manezinho?
Velha: Manezinho se soltou. E eu vou caçar.
Mestre: Mas essa Véia é bonita, menina!
Velha: E dengosa.
Mestre: Manezinho tá’qui, Véia!
Velha: Tá com brincadeira? Meu negócio é sério. Quando eu num coço na frente, eu coço
atrás. Eu andando atrás de Manezinho é uma coceira danada.
Mestre: Manezinho tá’qui!
(O Mestre avisa à Velha e ela agarra o Manezinho. Ele consegue se soltar. O povo
ri, todo mundo espalhado, brincante misturado com platéia.)
Mestre: Mas Véia, tanto que você peleja pra achar Manezinho e num encontra!
Velha: Num pude encontrar Manezinho. Andei por todo canto.
Mestre: Quer saber de uma coisa?
Velha: Quero.
Mestre: Você perdeu Manezinho! Perdeu, perdeu.
Velha: Será? Quando eu achar, eu acho ele.
Mestre: Acha não, Véia.
Velha: Ah, meu Deus. Cadê Manezinho?
Mestre: Oxente! Que coceira é essa, Véia?
Velha: É uma coceira medonha.
Mestre: Uma coceira? Por quê?
Velha: Por Manezinho.
Mestre: Você quer saber? Você vai embora.
Velha: Embora, sem achar Manezinho?
Mestre: Ói Manezinho aqui! Ói Manezinho aqui!
(Mestre mostra o Manezinho, que é o Mateus. A Velha agarra o Mateus e começa
a bater nas costas dele. Agarra-se todinha com o Mateus.)
Mestre: Achou Manezinho?
Velha: Achei. Manezinho, tu saiu que eu num vi, Manezinho?
Manezinho (Mateus): Eu tava ali.
Velha: Ali, onde?
(A Velha sai dançando com o Manezinho/Mateus. Ele tenta fugir, mas a Velha
agarra- o e não solta. O Mateus sai arrastando a Velha para o lado de fora. A Velha some.)
DOIDA E DOIDO
Entremez que parece ter sofrido muitas confusões e modificações. Os personagens
do entremez podem aparecer juntos ou separados. Muitas vezes, a Doida é confundida com
Catirina e, como a Velha Vovó, entra em cena para procurar o marido. É o que acontece no
Reisado do Mestre Aldenir, embora ele diga que a Doida não é a mesma Catirina. Mas, já na
chamada da Doida, aparece o nome da Catirina.
Mestre e coro: Catirina, nega velha
na tua terra choveu.
Apanha teu algodão
que a lagarta já comeu.
A ação do entremez é a seguinte: A Doida chega de viagem ao salão “com um balaião
de lata, cheio de catrevage” e fala com o Mestre. O Mestre pergunta o que ela veio fazer e de
onde ela vem. Ela diz que anda procurando o marido, que deixou em cima da serra. Então,
o Mateus diz que o marido dela é ele, mas a Doida não aceita. O Mestre apresenta, uma por
uma, as figuras do Reisado: o Contramestre, o Embaixador etc. Restando só o Mestre. Então
a Doida agarra-se com ele, dizendo que o Mestre é seu marido. O Mestre larga-lhe a espada,
o balaio da Doida cai no chão espalhando as latas velhas e forma-se aquela briga. Então o
Reisado canta:
Valei-me Nossa Senhora
a Mãe de Deus dos prazer.
Aqui chegou uma Doida
Deus queira me proteger.
No Reisado do Mestre Tico, além da Doida, aparece também o Doido.
A Doida é interpretada por um homem mascarado e travestido de mulher, usando um vestido
bem velho e rasgado. É feia e traz um balaio na cabeça, cheio de lata velha. Chega jogando
pedra e procurando o marido.
Mestre: Quem é o seu marido?
Doida: O meu marido, qu’eu perdi, ele.
Mestre: Mas você perdeu o seu marido?
Doida: Perdi o meu marido.
Mestre: Como é o seu nome?
Doida: Eu me chamo Chica Fiapo.
Mestre: Mas rapaz, você perdeu o...
Doida: Perdi.
(Com pouco, a Doida sai e lá chega o Doido, todo aleijado, caçando.)
Mestre: Meu amigo, o que você tá caçano?
Doido: Eu tô caçano minha muié.
Mestre: Qual é tua muié?
Doido: Perdi.
Mestre: Como é seu nome.
Doido: Francisco de Chico Sabugo.
(Começa o desencontro. Quando um chega, o outro sai. Até que, finalmente, os
dois encontram-se. Então, fazem aquela farra.)
Doido: Vamos brincar, minha véia. Nunca mais lhe vi, minha véia.
(Naquela alegria maior do mundo, vão dançar um baião. Então a Doida sai e o
Doido fica dançando só. O Mateus chega.)
Mateus: Rapaz, tu tá dançano é só, rapaz!
(O Mateus vai querer dançar com o Doido. Quando chega a Doida o Mateus troca
de par, dança com a Doida. O Doido vai dançar com o Mateus, pensando que era a Doida.
Os três dançam juntos e vira a maior brincadeira.)
Já Miguel Francisco descreve o entremez da Doida como algo mais simples. Começa
com a chamada:
Ô Doida, ô Doida,
ô Doida do Sul
amarra essa Doida
no cordão azul.
A ação dramática é sucinta: “Ela traz um balaio, igualmente uma doida mesmo, cheia
de lata velha, urupema, caneco, tudo no mundo. Ela vai palestrar com o Mateus, vai fazer
fofoca no salão. Todo mundo corre com medo dela.”
No Reisado de Antônio Romeiro, o Doido é personagem único. O entremez é tão
simples como o descrito acima por Miguel Francisco. “O Doido chega numa sala, com a
bengala. Então o Mestre pergunta:  O que é que você veio fazer aqui? Ele fica assim...num
sabe o que é que diga. E faz a ação de Doido. Bate com as mãos, pra’qui, pra’colá e diz que
quer dinheiro, só pede dinheiro. Então o povo fica sabendo que ele não é doido não, é doido
por dinheiro.” (Antônio Romeiro)
Em Alagoas, aparece o Doido como um entremez independente, no qual a ação é
mínima e semelhante à descrita por Antônio Romeiro. O Doido, simplesmente, faz ações
de doido, isto é, joga pedras em alguns casos e, noutros casos, entra no terreiro procurando
um cavalo perdido “e vai botando o chocalho do cavalo em todas as pessoas com quem se
depara.” (BRANDÃO 1953, p. 143)
ANASTÁCIO
Tem como centro o próprio Anastácio, velho grotesco e libidinoso, que vem de viagem
à procura de uma mocinha para casar-se. É corcunda, usa máscara, com nariz, barbas e
bigodes longos, paletó velho e anda com um passo miúdo. Além disso, o velho Anastácio é
valente, não enxerga muito bem e, como quase todos os ‘caretas’, anda com um cacetinho
na mão. Descrever-se-á o entremez como presenciado num espetáculo do Reisado do Mestre
Antônio Romeiro, apresentado no Sítio Lagoa, em Campos Sales, sob a luz de enormes
lamparinas e acompanhado por um público de mais de 200 pessoas.
(O Mestre apita e em seguida puxa a chamada do Anastácio, junto com o coro
de figurantes.)
Mestre e coro: Seu Anastácio, ele vem de viagem
alguma coisa ele há de contar.
ele há de contar, ele há de contar.
Seu Anastácio
que vem lá do Crato
Seu Anastácio
está cheio de carrapato.
Seu Anastácio
que vem do Mulungu.
Seu Anastácio
é ladrão de peru
é ladrão de peru
é ladrão de peru. (Sebastião Cosmo)
(Mateus abre a roda trazendo o velho Anastácio. Este tem uma máscara com
barba feita de couro de animal, o chapéu de papelão e, atrás, um pano vermelho.)
Anastácio: Rá. É comigo né?
Mestre: Que negócio é esse?
Anastácio: Que negócio é esse o que? Eu sou desse jeito.
Mestre: Desse jeito, por quê?
Anastácio: Por quê? Como é que eu venho chegando, aí vão dizer que seu Nastácio é ladrão
de peru, seu Nastácio é ladrão de peru. Não tão considerando.
Mestre: Me diga uma coisa, e como é que você se chama?
Anastácio: Ó Mãe de Deus, quem cai também se levanta.
Mestre: E como é que você se chama?
Anastácio: Eu me chamo Coroné.
Mestre: Coroné Nastácio?
Anastácio: Não, num me empurre não, viu! Qué qui você tá pensando o que do mundo?
Mestre: Me diga uma coisa, você é casado ou solteiro?
Anastácio: Ó Mãe de Deus, o mundo véio vai melhorar a situação! Eu sou solteiro.
Mestre: É solteiro?
Anastácio: Sou solteiro.
Mestre: E você anda ruim de quê?
Anastácio: Ruim de se casar.
Mestre: De se casar?
Anastácio: De se casar.
Mestre: Mas eu tou achando que você aqui num se casa não, porque aqui é meu reinado, aqui
tudo é gente fina.
Anastácio: Tudim sabe que é seu reinado?
Mestre: É meu reinado.
Anastácio: Apois por isso mesmo que eu vou me casar.
Mestre: É mesmo?
Anastácio: É.
Mestre: Você quer procurar logo ou como é?
Anastácio: Demora aí.
Mestre: Bom, me diga uma coisa, esse véio vai caçar novela, viu!
Anastácio: Me diga uma coisa. Eu vendo minha trança toda, meu cabelo dá farofa. Num
tenho coco nem trança, eu sou do reino das cantoras. Se meu pai num me der um vestido,
com manga e eu casar com dois chorando, num conte comigo não.
Mestre: Ganhou, ganhou. Mas você num vai casar no meu Reisado não.
Anastácio: Num vai.
Mestre: Vai não. Quer saber por quê?
Anastácio: É porque o Nastácio é um véio, num vale nada.
Mestre: Ah, com a conversa ainda há réi (relho).
Anastácio: É mesmo?
Mestre: Apois então se procura aqui, a primeira é essa aqui. Vamos ver se ela quer.
Anastácio: E essa menina é bonita, já jogou...
Mestre: Olhe, você deixe desse negócio, viu.
Anastácio: Ô cabocona gostosa!
Mestre: Olhe, deixe disso.
Anastácio: Menina, você quer casar comigo?
Figurante: Quero que você morra.
Outra figurante: É. Há muito tempo eu pensei que você já tinha morrido, eu pensei que você
era um finado.
Anastácio: Me diga uma coisa, você quer casar comigo?
Figurante: Quero não.
Anastácio: Tá bom, mi’a fia, eu também acho.
Mestre: Num tem quem queira não, véio. Num tem quem queira aqui no meu Reisado, não.
Sabe?
Anastácio: Num tem quem queira?
Mestre: Num tem quem queira.
Anastácio: Home, eu tava era brincando.
Mestre: E era?
Anastácio: Era
Mestre: Apois taí, aí tudo é minha filha.
Anastácio: Menina, me diga uma coisa, você quer casar comigo?
Figurante: Não, boto você pra casar com outra.
Anastácio: Ah...
Mestre: Eu num tou dizendo, véi!
Anastácio: Eta, caboca bonita!
Mestre: Olha, vamos deixar disso.
Anastácio: Menina, você quer casar comigo?
Figurante: Quero não senhor.
Anastácio: Eu também num quero não minha fia. Eu digo assim mas é brincando.
Figurante: É brincando?
Anastácio: É.
Mestre: Assim, agora tá aqui. Agora você começa daqui. Olha, daqui, viu.
Anastácio: Ô menina bonita, benza Deus.
Mestre: Olha, vamos deixar esse negócio, viu.
Anastácio: Ô menina, você quer casar comigo? Eu também sei virar, minha bichinha. Só
porque você vira, eu viro também.
Mestre: Pois é, óia aí!
Anastácio: Ô caboca bonita, gostosa!
Mestre: Mas deixe desse negócio, viu!
Anastácio: Menina, você quer casar comigo?
Figurante: Tem meio?
Anastácio: Eu dou é dez... é.
Mestre: E aquela é séria.
Anastácio: Aquela cá de lá? Ô menina, você quer casar comigo?
Figurante: Quero que você morra.
Mestre: Num tem uma que queira, véio.
Anastácio: Eu tou dizendo assim é brincando.
Mestre: Não, mas num tem quem queira.
Anastácio: (Para Figurante) Você falou, se eu quisesse você queria?
Figurante: Não queria não.
Mestre: Num tem quem queira não.
Anastácio: Num tem ainda essa aqui?
Mestre: Agora, essa aí é rica. Viu?
Anastácio: É rica?
Mestre: É rica.
Anastácio: Opa!
Mestre: Que é que você tá pensando, véi?
Anastácio: Apois é, rico com rico.
Mestre: Pois eu quero saber agora, vamos ver.
Outra figurante: Num tem nem perigo. Com minha irmã, não.
Anastácio: Você quer casar comigo?
Figurante: Quero.
Outra figurante: Opa! Com esse véi?
Mestre: Você derrotou nosso trabalho.
Anastácio: Agora doeu no coração.
Mestre: Doeu?
Anastácio: Bateu em meu coração.
Mestre: Me diga uma coisa, você quer casar com ele?
Figurante: Quero, mas só se ele mandar fazer a barba.
Mestre: Ah, certo. Agora você disse tudo.
Figurante: Agora tem que tirar. Se mandar tirar a barba eu caso.
Anastácio: Não, case primeiro.
Figurante: Não.
Anastácio: Compro uma lata de fogos.
Figurante: Num quero não, só quero se tirar a barba.
Anastácio: Vamos dormir.
Figurante: Você num quer?
Anastácio: Eu quero.
Figurante: Num quer tirar a barba?
Anastácio: Pois é, se eu tirar...
Figurante: Eu caso, se tirar a barba nós casa.
Anastácio: É agora mesmo.
Mestre: Agora vamos, vamos tirar a barba. Tira ou num tira?
Anastácio: Tiro.
Mestre: (Para o Mateus) Forma aí a cadeira. A cadeira aí veio do Recife, é boa. Agora vou
tirar a barba. Viu?
(Mateus bota o joelho para o velho sentar. O Mestre vai tirar a barba com a espada.
O outro Mateus pega duas espadas, cruzando imitando uma tesoura, e começa a fazer
a barba dele.)
Mestre: Esse véi presta lá pra casar, home! (Para a figurante) Você num ganhou nada não?
Você ainda quer casar com esse véi caindo.
Figurante: Quero.
Mestre: Mas isso é que é interessante!
Anastácio: A menina é sincera.
Mestre: É, né?
Anastácio: É.
Mestre: Apois agora eu vou botar o pó. Não precisa se segurar não, eu vou botar o trinco na
cadeira. Treem! Pronto, pode sentar, pode se deitar. Viu?
(A cadeira é o Mateus, que, quando sai, o velho cai no chão.)
Anastácio: Isso num é cadeira não.
Mestre: E num é, véi?
Anastácio: Não é não.
Mestre: Que num é cadeira, véi? Como é que você chega botando falta nas minhas cadeiras?
Anastácio: Home, você deixe de brincadeira, que eu num gosto de brincadeira com macho,
não. Você tem que me respeitar.
Mestre: Respeitar por quanto?
Anastácio: Você sabe, eu sou Coroné Nastácio, eu num sou moleque não.
Mestre: Você é nada.
Anastácio: Você num pegue na minha barba, não!
Mestre: E esse cacete, pra que esse cacete?
Anastácio: É porque eu sou bom sou barbeado.
Mestre: Dê cá esse cacete. Dê cá o cacete. Solte o cacete, viu! Solta!
Anastácio: Num solto.
Mestre: Solta o cacete.
Anastácio: Não.
Mestre: Solta o cacete. Num solta não?
Anastácio: Não.
(O Mestre puxa o cacete do velho e entrega-o ao Mateus.)
Mestre: Como é que você vem pro meu reinado com um negócio desses, véi! Você tá vendo
como você nem é de nada.
Anastácio: Você num pode me dar soco, não.
Mestre: Por quê?
Anastácio: Você num pode.
Mateus: Ô, Seu Mestre, ajeite esse véi pra casar, pra ele ir embora.
Anastácio: Eu?
Mestre: Esse véi, vou dar uma pisa nele, mode ver se ele num quer. (Para a figurante) Você
ainda quer?
Figurante: Quero.
Mestre: Mas isso é que é. Tá bom de apanhar todos dois.
Anastácio: (Para a figurante) Meu coração!
Figurante: Num é coração seu, não.
Anastácio: E nós num vamos casar?
Figurante: Mas num pode entrar assim em liberdade não.
Mestre: Bem, pois a barba já tá tirada, eu vou fazer agora o casamento. (Para a figurante)
Você quer, num quer?
Figurante: Quero.
Mestre: Pois tá certo. Você vai casar é com um véi. Mas esse véi é ladrão de peru.
Anastácio: Me respeite.
Mestre: Respeitar por quanto.
(A figurante, uma mocinha, bota a mão em cima da mão do velho. Todos os
brincantes colocam a mão também.)
Anastácio: Bota outra não, porque, quando foi pra mim casar, ninguém quis. Aí eu achei uma
que quis e agora mais de 30 que quer. Quer dizer que querem tirar a sorte da minha?
Mestre: Não, véi. É as testemunha.
Anastácio: Assim, me desimunhe, né!
Mestre: Pois é, o negócio é esse. Vai casar o véi Nastácio com Maria Francisca, tanto trisca
como belisca.
Anastácio: E ela belisca?
Mestre: Por causa do arrependimento tá feito esse casamento!
Anastácio: (Para a noiva) Num vá me beliscar não. Viu?
(O Mestre faz o casamento, fazendo o sinal-da-cruz em cima das mãos dos noivos.)
Mestre: Num vá embora não. Agora, você vai pagar o tocador.
Anastácio: Agora, eu vou...
Mestre: É, ajeitar. Você paga ele. Ninguém tem direito de botar festa pra noivo não. O
tocador aí, o sanfoneiro... Faça o negócio mais ele.
Anastácio: Boa noite, meu sanfoneiro.
Sanfoneiro: Só toca se tiver dinheiro.
Anastácio: Me diga uma coisa, falando de home pra home, você pode tocar uma dança pra
mim? Eu sou Anastácio, mas num sou daquela família não, sou de outra.
Sanfoneiro: Estou um pouco aborrecido de tocar pra essa família de Anastácio. Tou com um
tempo que toco para esse povo, vou tratar de negócio de dinheiro, ela vem com negócio de
cheque sem nada e no fim num aparece nada. Me diga uma coisa, você é irmão do outro?
Anastácio: Não, nem sou nem...
Sanfoneiro: É não?
Anastácio: Quem deve dinheiro é dos primeiros Anastácios. Dos segundos e dos terceiros,
como é que fica?
Sanfoneiro: Me diga uma coisa, você paga logo o quanto é?
Anastácio: Você aceita?
Figurante: Esse daí é irmão do outro.
Sanfoneiro: Vamos aceitar.
Anastácio: Você aceita. Né?
Sanfoneiro: Apois, ói, quando acabar a festa...
Anastácio: Quando acabar eu pago.
Mestre: Mas quando acabar, você num corra não. Viu?
Anastácio: Corro não.
Mestre: Mas qual é a sua profissão?
Anastácio: Minha profissão?
Mestre: Sim.
Anastácio: Minha profissão, eu vou dizer.
Mestre: Pode dizer, diga.
Anastácio: É só negociar, doutor. Mas óia, rapaz: farrar. Né?
Mestre: Pensei que você era outra pessoa mais..
Anastácio: Eu sou farrista.
Mestre: É farrista, né?
Anastácio: Sou farrista.
Mestre: Pois vamos continuar a festa.
(Anastácio dança forró com a mulher com quem se casou. Vão para frente, vão para
trás. O Mateus tira discretamente a mulher do Anastácio e começa a dançar com o velho.
O Mestre começa a mangar do Anastácio dançando com o Mateus. O velho puxa uma
faca.) Anastácio: Que negócio é esse?
Mateus: Não quero sua mulher.
Anastácio: Que negócio é esse?
Mateus: Que negócio é esse não.
Mestre: Mas velho, como é que você traz uma faca aqui pro meu reinado, véi?
Pois pegue, dê na minha mão. Você deixe desse costume, viu! Em minha mão.
Vamos, um, dois, três, já. (Anastácio esconde a faca no chão.)
Anastácio: Eu num tenho.
Mestre: Apanha a faca, véi. No chão, aqui no chão, apanha a faca.
(O Mestre dá um tapa no velho e ele apanha a faca.)
Mestre: Gente, ainda tem outra?
Figurante: Tem não.
Mestre: O senhor é bagunceiro, né!?
Anastácio: Bagunceiro não, você me respeite. Eu num sou moleque não.
Mestre: Você num é de nada. Não é de nada.
Anastácio: Você num acha que isso é desaforo? (O velho puxa outra faca.)
Mestre: O que é isso?
Anastácio: Você num pega mais duas vezes não.
Mestre: Mas esse véi, sabe que esse véi é perigoso.
Anastácio: Por quê?
Mestre: Porque você anda com essas facas tudinho.
Anastácio: Essa farra?
Mestre: É porque você não presta ou por que é que é?
Anastácio: É porque eu sou bom e sou barbeado.
Mestre: É barbeado, né?
Anastácio: É.
Mestre: Pois me dê na minha mão, pro mode você saber quantos pecado custou. Vamos!
(O Mestre tira duas facas de dentro das coisas de Anastácio.)
Mestre: Uma, duas, três...mais.
(De novo o velho joga a faca no chão e sai correndo. Então, o Mestre agarra-o e
o traz de volta para o meio da roda.)
Mestre: A faca, apanha a faca aí. Apanha a faca no chão, véi.
(O Mestre dá uma tapa no velho e ele apanha a faca no chão.)
Mestre: Você num compreende nada, véi. Você apanha, véi. Eu num tou dizendo! (O velho
apanha a faca.) Ainda tem?
Anastácio: Num tem mais não.
(O Mestre procura a faca no velho.)
Mestre: E se você ainda tiver?
Anastácio: Se eu tiver, eu vou dizer, você pode contar muito dinheiro.
Mestre: É? Você vai s’embora agora?
Anastácio: Vou.
Mestre: Vai?
Anastácio: Vou embora agora mesmo.
Mestre: Pois vá embora.
Anastácio: Eu num saio correndo duma festa.
Mestre: (Ameaçador) Você num vai não?
Anastácio: Eu digo assim é brincando.
Mestre: Você vai, que você prometeu.
Anastácio: Vou não, vou não. Eu disse que não ia. E agora?
Mestre: Tou vendo. Por que você num vai, véi? Por que você num vai? (Faz menção
de bater no velho.)
Anastácio: Você marcou o murro foi pra mim, foi?
Mestre: Foi pra você.
(O Mestre finge bater no velho.)
Mestre: E essa faca aqui?
Anastácio: É minha.
Mestre: Ai, ai, você!...
Anastácio: Não, essa eu num dou não.
Mestre: Por que você num dá? Me dê a faca!
Anastácio: Porque num quero.
Mestre: Me dê a faca, véi.
Anastácio: Num dou.
(Anastácio ainda tem uma faca. O Mestre tenta tomar, mas o velho não deixa. Brigam.
O velho passa a faca por debaixo do joelho, passa outra vez e o Mestre não consegue
tomar. Até que o Mestre consegue tomar e entrega a faca para o Mateus. Então, o
Anastácio agarra-se com o Mateus. Espalha-se gente para tudo quanto é lado. Mateus sai
agarrado com o velho, rodando lá para dentro de casa. Fica a maior algazarra do lado de
fora. O sanfoneiro puxa mais uma peça e os figurantes voltam a dançar.)
No Reisado de Sebastião Cosmo, o entremez desenrola-se de maneira semelhante. Há,
porém, uma parte bem interessante: o momento em que o velho Anastácio vai tirar a barba.
O Mateus, que fazia as vezes de cadeira, levanta-se e o velho cai no chão. Anastácio reclama
que está com os quartos doídos, que a cadeira não presta. Então, o Mestre pergunta:
Mestre: Você gosta de uma cadeira de mola?
Anastácio: Eu vou querer uma cadeira de mola.
(Então, o Mateus põe-se de novo na posição de cadeira e o velho fica em cima, bem
abusado, pensando que é uma cadeira de mola. O Mestre e o outro Mateus tiram a barba
do Anastácio. Quando terminam, ele fala.)
Anastácio: Agora eu quero um espelho.
Mestre: Você gosta de espelho de cristal ou de um espelho cristalino ou de um espelho
comum?
Anastácio: Me dê o comum.
(O Mateus apresenta o espelho ao velho.)
Anastácio: Num tô vendo nada.
Mateus: O senhor quer um cristalino?
Anastácio: Quero.
(O Mateus vira as costas para o Anastácio e mostra a bunda.)
Anastácio: Esse daí, eu num tou vendo também nada não.
(O Mateus, se quiser, apresenta a cafuringa dele Mateus cheia de espelhos.)
Este entremez é muito admirado no Cariri, fazendo parte de quase todos os reisados.
Aparece no livro de Théo Brandão, entre os entremezes do Reisado alagoano, porém
muito menos desenvolvido. Explica o folclorista que o entremez tem origem numa cantiga
intitulada Seu Anastácio - Impressões de um Matuto, publicada em O Trovador Marítimo,
editado pela Livraria Quaresma, em 1910, e posteriormente no livro de J. Brito Mendes,
Canções Populares do Brasil, que traz além da letra a melodia. Trata-se da história de um
matuto que, após visitar a cidade grande, conta suas impressões em linguagem caipira,
particularmente a visita a um necrotério. (BRANDÃO 1953, p. 133)
Nas versões alagoanas do entremez, Anastácio aparece apenas como tal, isto é, como
um matuto: “vestindo roupa de brim mescla, calças curtas arregaçadas, bornal à tiracolo,
chapéu de couro, alpercatas, trazendo máscara com bigodes compridos, e um cacete. Sob o
paletó, traz escondida uma bexiga de boi cheia de ar, de modo a imitar um ventre dilatado.”
Sua ação é apenas dançar e fazer piruetas, enquanto o figural canta uma peça, na qual diz-se
que ele vem de viagem.
No Cariri, o tema do matuto que vem de viagem, no entremez de Seu Anastácio, figura
apenas nos versos da chamada. No restante da cena, deu lugar ao tema do velho libidinoso
em busca de moça nova para casar. Ganhou mais desenvolvimento e maior interesse. É um
bom exemplo de como a tradição, se trabalha em alguns casos para a simplificação (ou o
desmantelamento) das manifestações dramáticas populares; em outros trabalha no sentido
de seu aperfeiçoamento e de emprestar-lhes novas significações. Nota-se, por exemplo,
nos reisados caririenses, que o tema do matuto perdeu muito do sentido e da atratividade,
ganhando espaço, nos entremezes, outros temas, como os ligados à violência e à sexualidade.
URSO E ITALIANO
Este entremez é uma herança da Europa medieval. Imita os artistas ambulantes,
principalmente italianos, que percorriam as feiras, apresentando-se junto com um urso
amestrado. Numa roda de praça, faziam o urso mostrar habilidades e, ao final, fingiam entrar
em luta com ele, assustando a assistência.
No Reis de Congo, o Italiano é interpretado por uma pessoa com a fala mudada,
imitando o estrangeiro, chapéu na cabeça, enfeitado de fita. Ele vem de viagem, como
acontece com vários personagens humanos dos entremezes, e chega para falar com o Mestre.
Pede ao Mestre a permissão para fazer a apresentação de um urso. O Mestre diz que não
quer, porque o Urso pode ser muito “brabo” e atingir alguma pessoa por ali. O Italiano
responde que o Urso é manso, que dança na boca de uma garrafa, em cima de uma cadeira.
Faz uma propaganda danada do Urso, até o Mestre aceitar. Então o Italiano arrecada algum
dinheiro junto à platéia para financiar a apresentação ao público.
O Urso veste roupa de saco de estopa, imitando o corpo do animal, com uma máscara
na cabeça, também imitando um urso, entra querendo avançar em todo mundo. Então o
Italiano bota o Urso para dançar na boca de uma garrafa, ele faz que dança, mas botando só
um pé em cima. Depois, o Italiano pega um tamborete para o Urso dançar em cima. O Urso
joga o tamborete no Italiano, o Italiano joga nele e fica aquela confusão toda. Quase sempre
o Italiano é feito por um dos Mateus e o Urso pelo outro.
Reproduzir-se-á em seguida o entremez do Urso e do Italiano, em duas versões: A
primeira foi colhida do Reisado do Mestre Aldenir, em julho de 1995, em Bela Vista - Crato
e a segunda é do Reisado do Mestre Tico, em Buriti, também no Crato, em 1978. Eis a
apresentação do Mestre Aldenir:
Mateus I: Como é que vai o senhor?
Mestre: Vou bem, graças a Deus.
Mateus I : Às minhas custas.
Mestre: Mas o senhor num é da parte desse mundo não?
Mateus I: Sou não. Eu sou um representante.
Mestre: É representante de quê?
Mateus I: Eu sou um representante.
Mestre: Aí tá certo.
Mateus I: Aí tá certo?
Mestre: Tá, eu concordo com o senhor.
Mateus I: Pra mim, o senhor tava pensando que eu era...
Mestre: Quem é o senhor?
Mateus I: Olhe, eu sou da Itália.
Mestre: Cê é da Itália?
Mateus I: É, eu sou da Itália.
Figurante: É italiano?
Mateus I: Italiano. Aí eu ando no meio do mundo. De mundo a fora.
Mestre: Sei.
Mateus I: Toda festa que tem, eu tô representando os espetáculo.
Mestre: Sei. Muito bem!
Mateus I: Entendeu?
Mestre: Sim.
Mateus I: Aí eu ando representando o meu Ursuru.
Mestre: Urso?
Mateus I: Ursuro. Eu sou italiano. O senhor sabe disso. Sabia não?
Tô representando o Urso. Trouxe pra Exposição. Seu Elói tirou muita foto dele lá.
Mestre: É o seguinte. Eu num concordo com isso aí não, porque o Urso é
muito valente. Vai chegar nessa pratéa, que tem muita gente aqui, um pessoal muito honesto.
Aí esse Urso vai querer fazer uma coisa aqui que num agrada a gente. Aí, como é esse
negócio?
Mateus I: Ele num faz medo. Ele só faz o que eu mandar. Olhe, ele brinca na boca de uma
garrafa, na boca duma cacimba, em riba dum tamborete, em riba duma mesa. Tudo isso ele
faz.
Mestre: Rapaz e você se responsabiliza?
Mateus I: Me responsabilizo.
Mateus II: Ô parceiro, ele é namorador, é?
Mateus I: O Ursuro?
Mateus II: Ele gosta de muié?
Mateus I: Ave Maria, dá o maior valor!
Mateus II: Bom.
Mateus I: Eu posso ir buscar meu bicho pra representar?
Mestre: Se você se responsabilizar, vá buscar.
Mateus I: Garanto ao senhor que ele num faz nada com ninguém. Agora, só se o senhor for
me pagar caro pr’eu trazer esse bicho.
Mestre: Quanto?
Mateus I: Ora, eu trago na jaula. Só a jaula vem comendo sabe quantos milhões e
milhões só de reais?
Mestre: Bom, primeiro que tudo eu quero saber como é o nome do senhor.
Mateus I: Meu nome? Eu sou italiano, meu amigo. Eu num tô dizendo pra você que eu sou
italiano! Eu sou da Itália. Dá pra respeitar mais não?
Mestre: Você é italiano é?
Mateus I: Na hora. Tá é falado, home. Sem rir, meu amigo.
Mateus II: O nome dele é o nome do país que ele mora. O nome dele é Itália.
Mateus I: Eu sou italiano. Eu num tem nome não. Meu nome é Itália. Pronto, acabou-se.
Mestre: Vou dar uma chance pro senhor. Agora tem uma coisa. Eu vou lhe dar uma chance.
Agora, se houver qualquer coisa de mal, o senhor vai me responder por isso aí, né?
Mateus I: Eu só quero falar que os menino se levante. Quando ele chegar aqui... (Os
figurantes formando uma roda estão acocorados em torno do Mestre e dos
Mateus.) Mestre: Quer dizer que ele dança em quê?
Mateus I: Na boca de uma garrafa, em riba duma mesa, em riba dum tamborete. Pinota uma
corda. Aquele pula-pula!
Mestre: Pois vá buscar ele. Vá buscar esse bicho pra mode eu ver.
Mateus I: Já que o senhor aceitou, agora eu quero que o senhor me dê licença para fazer um
cachezinho aqui para o bicho.
(Então, depois de arranjar aquela “contribuiçãozinha”, o Italiano vai trazer o bicho.
Enquanto isto, o Mestre puxa a peça e os figurantes cantam o refrão.)
Mestre e Figurantes: (Cantam) Italiano, Italiano. Ói ele como dança
Garante a brincadeira. Ói ele como dança
Meu bichim venha pra cá. Ói ele como dança
Italiano, Italiano. Ói ele como dança
Faze a apresentação. Ói ele como dança
Venha cá, menino. Ói ele como dança
Italiano, Italiano. Ói ele como dança
Italiano, venha cá. Ói ele como dança
Meu bichim, venha pra cá. Ói ele como dança
Pra representar. Ói ele como dança
Tu dança bem, Italiano. Ói ele como dança
Ele tá dançando. Ói ele como dança
Tá representando. Ói ele como dança
E esse bicho Italiano. Ói ele como dança
Vai embora Italiano. Ói ele como dança
Tá na hora Italiano. Ói ele como dança
Muito bem, Italiano. Ói ele como dança
E vai embora, Italiano. Ói ele como dança
(O Mateus I entra trazendo o outro Mateus, fazendo o papel de Urso, com uma
máscara de papelão e sendo puxado por uma corda amarrada na cintura. Ele vem de
quatro pés como se fosse um urso. Vem dançando. Então o Mateus I mostra para a platéia
seu urso, exibe-o. O Mestre está no meio do terreiro, cantando, enquanto os outros
brincantes, agachados ao redor, também cantam, respondendo. O Mateus I manda o Urso
sentar. O Mestre pergunta ao Mateus se é verdade que o Urso dança em cima de uma
cadeira e na boca de uma garrafa como havia ouvido falar. Então uma criança traz uma
cadeira para
o Italiano (Mateus I) fazer uma demonstração. Mas o Italiano diz que não, que aquela é
uma carteira escolar e que o Urso não ia estudar. Então, o Urso pega uma criança,
arrasta para o meio do salão e começa a dançar com ela. No fim, vai embora do salão
levando a criança.)
No Reisado do Mestre Tico, o entremez apresenta uma versão semelhante. Diz ele:
“O Urso é uma máscara, vestido numa roupona de estopa, bem feita com uma mascarona
toda com uns dentão, com umas luva e o caba amarrado, e eu sustentano. Ele amarrado pela
cintura, dançando, pulando, correndo nas coisas.” Durante a apresentação, por mim assistida,
registrei o seguinte diálogo:
Italiano: Boa noite, seu Meste!
Mestre: Boa noite. Quem é o senhor?
Italiano: Sou italiano.
Mestre: Italiano? (Risos) Bem, logo vi que o senhor num é daqui não. É do estrangeiro, né?
Italiano: Sou italiano. Dá licença eu botar uma brincadeirinha aqui?
Mestre: Brincadeira? O que é que você apresenta?
Italiano: Apresento um urso.
Mestre: Urso!? E esse urso num vai comer a gente não?
Italiano: Ele é muito valente, mas ele dança na boca duma garrafa. Ele dança em cima dum
tamborete. Faz muita brincadeira. É muito valente.
Mestre: Mas rapaz, ô Italiano, esse negócio, será qu’ele num vai atingir aqui a gente não?
Italiano: Não! Ele é muito valente, muito valente mesmo, mas ele...
Mestre: Você se garante, mermo?
Italiano: Garanto.
Mestre: Dança num tamborete?
Italiano: Ele dança num tamborete e dança na boca de uma garrafa.
Mestre: Você vai...
Italiano: Vou buscar ele.
Mestre: Qualquer coisa que houver aqui, a culpa foi sua.
Italiano: Tá
(Entra o Urso e o Mestre e os figurantes cantam.)
Mestre: Italiano, Italiano.
Figurantes: Ói ele como dança.
Mestre: Italiano com urso
Figurantes: Ói ele como dança.
Mestre: E ói o Urso, Italiano.
Figurantes: Ói ele como dança.
(Repete muitas vezes as estrofes, enquanto o Urso dança.)
Italiano: Vou apresentar a minha brincadeira, agora! Vou buscar ele pra dançar aqui. Mestre,
o senhor manda ele subir aí! (Para o Urso) Vamos subindo! Peres, Peres, vamos, Peres,
entrar na brincadeira. Plana direito, direito! Vamos dançar em cima! Dança direito, dança!
Vamos! Vai, vai, vamo, vem...(Gritaria)
Mulher: Ele deu uma queda n’eu, acolá. Quase morro de rir.
(Depois o folguedo continua de maneira semelhante à apresentação do Reisado
do Mestre Aldenir.)
O BOI
É o principal entremez do Reisado. Tematiza o mito da morte e ressurreição do herói
na figura do Boi. Geralmente é o último a ser apresentado, embora também possa aparecer
a qualquer momento da função. É entremez obrigatório em todas as apresentações e o mais
desenvolvido. Sua figura principal é o Boi, velho totem do sertão nordestino, personagem
originário do Bumba-meu-boi. No Reis de Congo, entretanto, a trama que envolve a morte
e ressurreição do Boi é mais pobre, se comparada com a do Reisado de Caretas, ou mesmo
com o chamado Bumba-meu-boi.
De acordo com o modo como é confeccionado, há dois tipos de boi. O boi de junta
(ou de pano) e o boi de costela. O boi de junta é mais pobre, porém tem melhor mobilidade
tanto no transporte até o local da apresentação quanto no desenrolar desta. Consiste em
uma caveira de boi legítima, ou em uma escultura em madeira imitando a cabeça do animal,
presa a um cabo de madeira grossa, segurado pelo dançador, que o conduz meio encurvado.
A forma do corpo do Boi é dada pelo próprio corpo do brincante, coberto com um grande
lençol de chita colorida, com desenhos de florões. Pode também ser conduzido por dois
dançadores, o primeiro fazendo a parte dianteira e o segundo a parte traseira do Boi. Este é
um boi maneiro e prático, que permite grande desenvoltura ao dançador.
O boi de costela é considerado mais bonito, porque imita com maior perfeição a
forma do corpo do animal. Além da cabeça, confeccionada igualmente a do boi de junta, é
composto por uma armação de madeira ou metal fino e leve, coberta com tecido pintado com
manchas imitando a malha do Boi, ou com chita colorida, decorada com florões. É conduzido
apenas por um dançador encurvado (que neste caso pode ficar quase em pé). Tanto o boi de
junta, quanto o boi de costela, levam um chocalho no pescoço e um rabo na traseira.
O dançador do Boi, seja de costela, seja de junta, precisa ser ágil e ligeiro, como
explica Sebastião Cosmo: “Pra brincar dentro do Boi, o cabra tem que ter manejo no corpo,
caçar por onde o povo tá, rebolar pra onde quiser. O cabra bota a cabeça lá e encolhe a
cabeça, olha pro lado, pro outro, se fasta pra trás, faz finca pé. Só aquela menção. Tem muita
gente que tem medo mesmo. Mesmo gente que já conhece, pensa que a gente vai largar o
chifre.”
Todo Boi tem um nome, seja Janeiro, Coração, Estrela, Ponta Fina, Surubim, Espácio,
Tungão etc. Os outros personagens do entremez são o Doutor, as Pastorinhas, os Mateus no
papel de vaqueiro e o Mestre, que interpreta o Patrão, o dono do Boi. O Rei, também pode
interferir na brincadeira.
A ação dramática, como se disse, é simples, alguém mata o Boi e a culpa recai no
Mateus. O dono do Boi chama o Doutor para curar o animal e ele ressuscita através da
aplicação de um ‘clister’, ou seja, da introdução e posterior retirada de uma criança de dentro
da sua carcaça. No caso do Boi ser de junta, a ressurreição é feita com o Boi tomando uma
pílula, receitada pelo Doutor. Conforme a condução dada por cada Mestre, a ação pode ser
entremeada de peripécias e os diálogos desenrolar-se com menor ou maior complexidade.
(23)
O Doutor é representado por um brincante devidamente caracterizado: homem
corcunda, de paletó, grandes barbas, chapéu, óculos de míope, traz numa mão uma bengala e
na outra uma pasta, ou a imitação de um estereoscópio. Muitas vezes usa máscara. Os demais
personagens humanos são interpretados com o mesmo traje do Reisado. As Pastorinhas são
representadas pelos figurinhas, as molecas e molecotes do Reisado.
A ação do entremez desenrola-se mais ou menos assim: (24)
Mestre: Mateus, meu nego, eu tô precisando de um vaqueiro bom pra pegar um boi. Você
conhece, aqui pela região, um vaqueiro com esta capacidade?
Mateus: Tem, seu Meste, eu conheço um vaqueiro ali, com um cavalo bom, certo para pegar
o Boi.
(O Mateus vai buscar seu parceiro. O outro chega caxingando e o Mestre fala.)
Mestre: Esse num serve pra pegar boi.
(O Mestre dá uma carreira nos Mateus. Então o Mateus I vai buscar outro vaqueiro.
Quando chega, traz uma figura montada no espinhaço do outro Mateus. Vem numa
carreira danada.)
Mestre: Este daqui serve. (Perguntando ao vaqueiro) Por quanto é que você vai?
(É feita uma colheita de contribuições para completar um cachezinho. Mesmo que não
apareça dinheiro, o Boi sai. É cantada então a chamada do Boi. O Mestre puxa cada verso
e os brincantes repetem.)
Todos: Pastorinha ô mana ô bela
venha ver, venha ver o nosso gado.
Nosso gado ainda hoje
não comeu nem bebeu, ficou parado.
Mestre: Pastorinha ô mana,
que que faz lá dentro?
Pastorinha: Tou fazendo doce
pra meu casamento.
Mestre: Pastorinha ô mana
quê que faz na sala?
Pastorinha: Pastorando o gado
que vem de Goiás.
Mestre: Pastorinha ô mana
quê que faz aqui?
Pastorinha: Pastorando o gado
que vem do Piauí.
(que vem do jequi.)
Mestre: Pastorinha ô mana,
que que faz lá fora?
Pastorinha: Pastorando o gado
que vem de Vitora.
Mestre: Pastorinha ô mana,
que andas fazendo?
Pastorinha: Pastorando o gado,
que anda comendo.
Mestre: Pastorinha ô mana
que andas fazendo?
Pastorinha: Pastorando o gado
que anda bebendo.
Mestre: Pastorinha, ô mana,
que que faz aqui?
Pastorinha: Pastorando o gado
pr’ele num fugi.
(Entra o Boi, enquanto os brincantes cantam: “Olê, olá, ôi dança meu Boi, olê olá”;
o Boi faz a festa, espalhando a assistência. Como diz Antônio Félix: “o Bumba-meu-boi lá
vem peidando, fazendo graça, dando chifrada nas mulheres, nos Mateus, derruba os
Mateus, sai botando tudo pelo chão. Aí é a graça do Reisado.” Quando o Boi amansa, o
Mestre canta um aboio.)
Mestre: Meu Boooi
Nasceu de manhã, ô mamãe,
na porteira do curral ê ê ô ô.
Eu chamava, ele vinha, ô mamãe,
chamava de Paraná.
Filho de uma vaca velha, mamãe,
chamava-se Paraná.
Eu passei pelo sobrado, mamãe
uma dona me chamou.
pra vender o Surubim, mamãe.
Que contos de réis ou dou?
Eu passei, fiquei calado, mamãe.
O touro foi quem falou:
Trinta contos e oitocentos, mamãe,
meu dono já injeitou.
(Então todos os brincantes cantam para o Boi dançar.)
Figural (canta): Olê, olá.
Oi dança, meu boi, olê, olá.
Vamos lá namorar, olê, olá.
Meu Boi bonito, meu Boi espanhola
tu faz uma vênia nos pés da viola.
Olê, olá.
Vem cá namorar, olê, olá.
Meu Boi bonito, meu Boi trovador
tu faz uma vênia para o tocador.
Olê, olá.
Oi dança direito, olê, olá
Oi dança Boi Estrela, olê, olá.
Meu boi é bonito, meu Boi Coração
tu faz uma vênia ao pé do violão.
Olê, olá.
Meu Boi bonito será namorado
entra no salão, vem dançar Boi lavrado.
Olê olá.
Ora dança meu Boi, olê olá.
Vem dançar, Fita Fina, olê olá.
Meu Boi bonito da serra da Rita
tu faz uma vênia às menina bonita.
Olê olá.
Ora dança meu Boi, olê olá.
Vem dançar namorado, olê olá.
Meu Boi bonito, meu Boi forasteiro
tu faz uma vênia, no meio do terreiro.
Olê olá.
Ora dança meu Boi, olê olá.
Meu Boi Estrela chegou da Bahia,
Ele é tão bonito, meu Boi Maravilha.
Olê olá.
Ora dança meu boi, olê, olá.
(Há também outras peças, que podem ser cantadas, como uma registrada
durante apresentação do Reisado de Antônio Romeiro.)
Figural: Boi, Boi, vamos vadiar.
Olê, olá, vamos vadiar.
Pancada igual
vamos vadiar dentro do salão.
Vamos vadiar
meu Boi Coração.
Vamos vadiar.
Bonito não é o Boi
bonito é aboiá. Ê ê ê ê ê....
Mestre: (Recitando) Meu Boi bonito,
fio de uma vaca véia,
por nome Paciença.
Por desconto de pecado, meu Boi,
leve essa pancada na venta.
Tome!
(O Mestre, com a espada, dá uma pancadinha no focinho do Boi.)
Mestre: Ó, Cravo Branco!
Mateus: T’aqui, debaixo do banco!
Mestre: Venha cá, nego.
Mateus: O que, seu Meste?
Mestre: Nêgo, você disse que é toureiro?
Mateus: Sim.
Mestre: Chegou aqui esse Boi. Dissero que o Boi é o tal, que é muito valente.
Mateus: Esse Boi, seu Meste, eu digo que ele briga.
Mestre: Você diz que ele briga? Exatamente. Aí chega aqui, solta o Boi aqui... Você
entendeu? Agora o que é que você vai fazer com esse Boi danado? Cuidado na gente! Como
é que você vai se atar com isso?
Mateus: Seu Meste, ele num dá não. Se der, eu pego ele, seu Meste.
Mestre: Ói que ele dá!
Mateus: Se ele for brabo, eu pego nele, qu’eu brigo com ele.
Mestre: Bom, você briga com ele, num é meu nego?
Mateus: Brinco com ele.
Mestre: Olhe que o meu Boi é brabo.
Mateus: Fogo é nós pegar esse Boi, que ele se embrabece.
Mestre: Pois você vai fazer aqui uma apresentaçãozinha, viu!?
Mateus: Hein?
Mestre: Traz um baiãozim, traz um baiãozim aí, menino!
Mateus: Quebro uma tapa nele aí? Donde esse Boi véi vem... (Gritaria)
(Inicia-se, então, uma briga entre o Mateus e o Boi. Termina com o Mateus matando
o Boi com a espada. Ele dá uma pancada no “tutu”(dorso) do Boi. O Mateus mata porque
o Boi está valente, brigando com ele. Não suporta o Boi e acaba matando-o. O Boi estirase
no chão, no meio do terreiro. Os brincantes, que estavam sentados, levantam-se. Ficam
em
círculo ao redor do Boi, que continua morto. O Mateus, então, corta o Boi todinho e reparteo.
Começa a repartição do Boi.) (25)
Mestre: Seu Antõe Geraldo
Coro: Assim mesmo é. (Refrão repetido pelos brincantes, a cada verso.)
Mestre: Nosso Boi morreu.
Coro: Assim mesmo é.
Mestre: Morreu foi de fome.
Coro: Assim mesmo é.
Mestre: Mas porém se come.
Coro: Assim mesmo é.
Mestre: Na beira do poço.
Coro: Assim mesmo é.
Mestre: Quebrou o pescoço. (E assim continua, o Mestre improvisando e o
Lá no Pioí coro respondendo o refrão)
morreu de tingüi.
Lá nas Alagoa
lá morreu a toa.
Agora meu boi
eu vou repartir.
Vou tirar o couro
é pra João Besouro.
Tirando a cabeça
presse povão besta.
Vou tirar as tripa
pra véia Chiquita.
E o mocotó
é pra sua vó.
E o sobrecu
é pro Brucutu.
E o chambaris
pra quem vai ali.
Vou tirar o baço
mandei pro Inácio.
A tripa mais grossa
pro povo que gosta.
A tripa do meio
é pra..............
Tirando o filé
pra Dona Dedé.
Vou tirar os ói
é pro seu Elói.
A tripa cagada
prás muié casada.
A tripa mais fina
mando prás menina.
A parte de cima
de dona Carmina.
E o corredor
é do Promotor.
Agora meu Boi
eu vou repartir.
Eu tô terminando
tudo tem um fim.
(26)
Mestre: Ei Cravo Branco.
Mateus: O que é que o senhor quer, hein?
Mestre: Tenha vergonha, rapaz. Mateus, você matou o Boi. Não era pra você ter matado o
Boi. Rapaz, você fazer isso, matar o Boi!?
Mateus II: Aí, ó! (O segundo Mateus dá uma “banana” pro Mestre.)
Mestre: O que foi, hein?
Mateus II: Você matou o Boi.
Mestre: O que foi que fizeram, hein?
Figura: Home diga logo.
Mateus: Eu?
Mestre: Num era pra matar, era pra pegar.
Mateus: Home que conversa é essa que eu já vou é me embora.
Rei: Vai se embora o que? Vai não.
Mateus: Eu?
Rei: Vai nada. Venha pra cá.
Mestre: Você fazer um negócio desses, rapaz!
Mateus: O que foi que eu fiz?
Mestre: Você fez um negócio desse, num era pra você matar esse negócio,
rapaz.
Mateus: Matar o negócio?
Mestre: Matar o Boi.
Mateus: Mestre, o Boi queria dar neu. Fui e matei.
Mestre: Mas rapaz, você num disse que era toureiro que ia apresentar esse
Boi? Eu não quero esse negócio, você matando aqui. Então, você vai ter que caçar uma purga
(um purgante) pra levantar o garrote. Tem que resolver isso.
Mateus: Vou pegar lá dentro um Doutor e vou receitar o Boi, pra ele se
levantar, garanto ao senhor.
(O Mateus entra na casa, pega um rapaz trajado de paletó, um cara “empalitozado”,
com uma bolsinha na mão, imitando o Doutor. Este chega junto ao Boi e, depois de
examiná- lo, passa um remédio.)
Doutor: Rapaz esse Boi tá muito doente, só vai com uma pila (pílula).
(Dá o nome de qualquer pílula.)
Doutor: Bom, é o seguinte, o senhor vai pagar aí essa pila?
Mateus II: Como é, a gente vai comprar?
Mateus I: Num tem dinheiro.
Mateus II: Você tá armado?
Mestre: Meu amigo, você.....
(O Mestre dá uma estocada com a espada no Mateus II.)
Mateus II: Ai, pera aí capitão, oxente, pera aí.
Rei: Agora você vai arrendar o Boi.
Mateus I: Será se vai dar, hein?
(O Mestre exige dos Mateus que paguem, porque tem que tirar o Boi dali.)
Mestre: Bom, você vá já ali com seus colegas, arranjar um dinheirinho.
(Alguém chega e bota uma coisinha de dinheiro debaixo do Boi. E ele começa a
gemer. Ganha mais um bocadinho e acaba se levantando. “A gente canta e o Boi vai se
levanta. Levanta bravo, faz finca pé pra ir no senhor. Quando eu boto o Boi, eu cutuco
mesmo o Mateus. Até o Mateus amansar o boi, ele tem que se rebolar.” Relata
Sebastião Cosm. Quando o Boi se levanta, o Mestre puxa a peça.)
Chegou, chegou, chegou,
lá chegou meu Boi agora.
Se quiser que eu dance eu danço
se não quiser vou embora.
Dança, dança, Boi pachola.
Dança, meu Boi Coração.
Dá uma volta no salão
se despede e vai embora.
Dança, dança (?) ele
sapateia no tijolo.
A barra do teu vestido
é pra tapar esse rolo.
(Em seguida, o Mestre puxa a despedida do Boi.)
Meu Boi vem dançar.
O chocai (chocalho) vem tinindo.
Ê, ê dan, ê dança meu Boi.
Meu Boi é bonito
meu Boi é chinês.
E faz uma vênia
nos pés do teu Reis.
Ê, ê dan, ê dança meu Boi.
Já são quatro horas
o galo já cantou.
Meu Boi se despede,
adeus, que já me vou.
Ê, ê dan, ê dança meu Boi.
(Finalmente, o Mestre apita e o Boi vai embora, levado pelo Mateus.)
As peças do entremez do Boi são todas elas tradicionais. Théo Brandão já registra, na
primeira metade do século, em Alagoas, com pequenas variações, as peças da Pastorinha, a
da repartição do Boi (retirada do antigo Reisado do Antônio Geraldo) e a que começa com os
versos: “Chegou, chegou, chegou/lá chegou meu Boi agora”.
Em Alagoas e no Cariri, o entremez do Boi apresenta algumas variações no seu
enredo. Às vezes, o Boi é do Mateus e o Mestre quer comprá-lo. Neste caso, o Mestre é
quem ordena ao Mateus que mate o Boi por ser “vesp’ra de Natá”. Depois vem o Doutor
e, em meio à comédia do Mateus, cura o Boi, aplicando-lhe um clister (representado por
um menino que é colocado e retirado do interior do Boi). Outras vezes, é o Mateus que
vem vender o Boi ao Mestre. Este não compra mas indica o dono da casa como comprador.
Então o Mateus vende o Boi, pegando uns trocados com o dono da casa e a platéia. Como no
Cariri, só após recolhido o dinheiro, o Mestre puxa a peça da Pastorinha. (BRANDÃO 1953,
pp. 88 a 100)
O episódio do Doutor, típico do Bumba-meu-boi e bem desenvolvido no Reisado de
Caretas, nos Reis de Congo do Cariri, aparece cada vez mais pobre, talvez pela dificuldade
de bem caracterizar os personagens, porque, como disse Mestre Aldenir: “o que é próprio do
Reis de Congo são as batalhas e as embaixadas, por causa da nossa farda”.
ALMA, MIGUEL E CÃO
É talvez o entremez do Reisado mais bem realizado cenicamente. Seu texto, dado
pela tradição, pelo menos no Cariri, é fixo (27) e integralmente cantado. Assemelha-se a
uma pequena ópera. Seu conteúdo é religioso, o que pode apontar para uma origem nos
autos catequéticos dos jesuítas. No Reisado do Mestre Aldenir, como em alguns outros, é o
derradeiro entremez, imediatamente antes da despedida. Tem como personagens:
Alma: brincante com o corpo coberto com um lençol completamente branco, trazendo no
rosto uma máscara de pano ou papelão, também branca, com as linhas do rosto desenhadas
em grandes traços. Pode trazer um rosário na mão. Seu gesto é tremer de medo do Cão.
Cão: às vezes chamado de Diabo. Composto da imagem de Mefistófeles. Traje preto com
grande capa forrada de vermelho, rabo atrás e chifres na cabeça. Usa máscara com olhos
esbugalhados, língua de fora, dentes enormes e pontiagudos. Traz na mão um tridente.
Alguns mestres e brincantes de Reisado referem-se a ele como São Cão. (28)
Miguel: É o arcanjo São Miguel, interpretado geralmente por uma figurinha, no caso
uma menina, ao traje do Reisado, acrescenta-se um par de asas. Traz na mão uma
espada.
Também pode ser representado por uma menina vestida de branco, com asas de anjo, nas
mãos uma balancinha e a espada. Miguel Francisco informa que, antigamente, o traje de São
Miguel era especial, diferente do traje do restante do Reisado. Disse ele: “São Miguel se
veste com o traje do jeito de São Expedito. É umas alpercatas de correinha até o joelho. O
saiote dele vem daqui até cá, cheio de lacinho de fita, fazendo aquele desenho. Veste aquele
saiote curto, só com o marujo, sem a capa, sem nada. O marujo é a blusa. Na cabeça um
capacete. Numa mão ele traz a espada e na outra a balança, pra pesar os pecados da Alma.”
Mais uma vez, farei a descrição do entremez a partir da versão do Reisado do Mestre
Aldenir, completando-a com informações dadas por outros mestres. A ação do entremez é a
seguinte:
(O Rei morre e é retirado do salão. Figurantes cantam. Aliás, os diálogos são
sempre cantados.)
Figurantes: (Cantando) Nosso Rei morreu, morreu
acabou-se o Imperador.
Vamos ver quem fica agora
para o nosso superior.
Governador, Governador
Governador da bandeira Imperial.
(O Cão entra, fazendo grande estardalhaço. Tem a imagem tradicional de
Mefistófeles, traje preto com detalhes vermelhos, manto feito asas, máscara, chifres e rabo.
Mateus tenta enfrentá-lo, mostrando-lhe seu rosário de mamucabas. Enquanto isto, os
brincantes cantam.)
Figurantes: Treme, treme, já tremeu.
Quem é aquele ? É o Herodes.
É o maioral do Inferno.
(Entra no salão a alma do Rei, trazida pelo Mateus. Ela está vestida num
lençol branco, trazendo na cara uma máscara de papelão, também branca, com a
fisionomia
representada em traços pretos. Vem se tremendo toda, com os braços colados ao corpo.)
Figurantes: (Cantando) Ó Alma, tu cuida em rezar
que é pro Demônio
não te carregar.
Prende o bicho malino
que o bicho assassino
quer te carregar.
(O Cão agarra a Alma por trás e ela continua se tremendo toda.)
Mestre: (Cantando) São Miguel, ó Miguel
vai ouvir a quem te chama.
Vai buscar aquela Alma
faz três dias que reclama.
(São Miguel é uma menina com a roupa do Reisado, complementada por duas
asinhas, uma balancinha e uma espada para brigar com o Cão. Trava-se, então, um
diálogo cantado.)
São Miguel : Ô de casa!
Cão: Ô de fora!
São Miguel : O Inferno estremeceu.
Vim buscar aquela Alma,
faz três dias que morreu.
(O Cão impede que São Miguel leve a Alma.)
Cão: Puxa por ali, Miguel,
que essa Alma eu não te dou.
Pois já faz mais de três dias,
que ela por aqui chegou.
Miguel: Nem que faça quinze anos
essa Alma eu sei que levo.
Quem mandou ver esta Alma
foi a Mãe do Padre Eterno.
(Neste momento, São Miguel tenta tomar a Alma do Cão. Os dois disputam-na.)
Figurantes: (Refrão cantado após cada estrofe.)
Eu te prendo serpente horrorosa
com a minha corrente de ferro.
Com os poderes de Nossa Senhora
vai-te Cão se estourar no Inferno.
Cão: Essa Alma quando era viva
ela era uma fina cachaceira.
Iludia as muié casada
e conduzia as muié solteira.
Figurantes : (Refrão)
Cão: Essa Alma quando era viva
Peguei ela na hora da ceia.
Ela tava comendo roubado
e falando da vida alheia.
Figurantes: (Refrão)
(O Cão tenta tomar a Alma em poder de São Miguel, que a defende.)
Cão: Faz três dias que veio do Inferno
essa gente pra uma eleição.
De tanto que eu procurei
achei você a minha disposição.
Figurantes: (Refrão)
( São Miguel fica na frente da Alma, protegendo-a. O Cão cai no chão, derrubado
por São Miguel, que o subjuga colocando um pé e a espada sobre seu peito. Então, o Cão
diz a São Miguel que vai embora.)
Cão: Vou embora, vou embora
pra num atentar ninguém.
Vou embora pro Inferno
esperar pelas que vêm.
Bem aqui tem o Miguel
que só faz o que ele quer.
Já estou aborrecido
com este tal de Miguel.
(Antes de ir embora, o Cão dá um tapa danado no Miguel, depois procura, na
platéia, uma criança para levar com ele. Pega um menino, coloca na corcunda e leva, em
meio às vaias e gargalhadas da platéia. Então os brincantes finalizam cantando.)
Figurantes: Vai-te, vai-te Brasa, Brasa.
Vai-te, vai-te Alma livre.
Vai-te encostar à boa sombra
quem te livrou do perigo.
(Quando São Miguel leva a Alma, o Rei volta.)
O Cão também aparece nos Quilombos, brincando como baliza durante o cortejo. É
um fantasma alegre. Diz Aldenir: “O pessoal não tem medo do Cão, porque aquilo é um
bicho de Reisado mesmo, lustroso, famoso. O pessoal gosta. O Cão é animado. Tira graça
com o pessoal que está assistindo.”
No Reisado de Sebastião Cosmo, a Alma chama-se Rita. Uma das peças diz o
seguinte:
Rita no tempo de moça
era dona do seu coração.
Rita cortava o cabelo
tu ficaste da parte do Cão. (sic)
Em Alagoas, pelo menos nas versões que chegam através de Théo Brandão, este
entremez aparece mais mutilado. Algumas peças são bem semelhantes, como aquela em que
o Cão e Miguel disputam a Alma. Num dos Reisados, aparece o Padre ao lado de São Miguel
para combater o Diabo.
Em nenhum momento, encontram-se indicações sobre a Alma como sendo a do Rei, do
modo como acontece no Cariri. Tal fato leva a duas hipóteses: a de que é um resgate de
significações do entremez que se haviam perdido em Alagoas, ou a de que se trata de
inovação introduzida pelos Mestres cearenses. Em todo caso, parece que o fato de a Alma ser
a do Rei liga o entremez à estrutura do Reisado, que gira em torno da figura do Rei.
GIGANTE
É entremez não muito freqüente nos Reisados do Cariri. Dele, deram notícias Antônio
Romeiro, que costuma apresentá-lo em seu Reisado, e Sebastião Cosmo, que afirma têlo
brincado apenas no Rio Grande do Norte. Este relato do entremez será baseado nas
informações dos dois Mestres. Já o vimos, semelhante ao da descrição de Sebastião Cosmo,
no Reisado da Rua Prado (Reis de Careta), em Granja, Ceará.
As informações de Antônio Romeiro foram sucintas: “O Gigante é um homem
musculoso, vestido numa farda. Entra na sala, falando como querendo esbagaçar todo
mundo, mas, no fim dessa valentia toda, num dá nada. Ele chega e esturra. Num quer que
mais ninguém brinque no salão. Quer brigar, dizendo que quem manda aqui sou eu. O
Gigante usa uma máscara.”
Já de acordo com Sebastião Cosmo, o Gigante tem esse nome por causa da cabeça,
que é muito grande. Ele também se chama Cavalo-marinho, porque vem montado num
cavalo. O Gigante tem sua comédia, que se inicia com a peça de chamada:
Mestre e coro: Gigante, que bicho é esse
que na roda apareceu?
Gigante, que bicho é esse
que na roda apareceu?
Foi por causa desse bicho
que a barquinha se perdeu.
Cavalo-marinho, desenfiador (sic)
dança meu cavalo
mais o meu amor.
Mestre: Me diga uma coisa, de que é que você anda atrás?
Gigante: Eu ando atrás de minha mulher.
Mestre: Mas por que é que você anda atrás de sua mulher?
Gigante: Porque ela me deixou.
Mestre: Por qual motivo?
Gigante: Por uma pata de caranguejo.
(O Mateus chega.)
Mateus: Quanto é que o senhor me dá, pra mim ir atrás de sua mulher?
Gigante: (Batendo a mão no bolso) Eu lhe dou um milhão e seiscentas mil
patacas.
(O Mateus sai e os brincantes cantam.)
Mestre e coro : (Cantam) E era o sapo
e era a rã e era a jia.
Tudo tava convidado
pra casar no outro dia.
Vi como era bom
se sambar de madrugada.
Uma rosa bem botada
no peito de uma morena.
(Enquanto isto, um brincante segura o Cavalo-marinho pela rédea. Quando o
Gigante vê, o outro vem com a mulher dele pela rédea. Aí o Cavalo-marinho fica se
esperneando, dando coice. Então, o Mateus chega.)
Mateus: Pronto, tá’qui sua mulher.
(O Gigante sai corrigindo a mulher de cima para baixo, para saber se é a
dele mesmo. Então, os brincantes cantam.)
Mestre e coro: Gigante ficou contente
quando viu sua mulher.
No dia do casamento
na barquinha de Noé.
(O Gigante sai dançando com ela e os brincantes cantam de novo.)
Mestre e coro: Cavalo-marinho desinfinhador
dança meu cavalo mais o seu amor.
(Obs.: Sebastião explica que “desinfinhador” é porque ele chega naquele momento e
não encontra a mulher dele, “aí entrou as mesma frase e ele é desinfinhador”.)
Este entremez não aparece no livro de Théo Brandão. Parece, na forma descrita por
Sebastião Cosmo, ser resultado da fusão de dois entremezes que aparecem nos Reisados de
Careta cearenses, o entremez do Gigante e o do Cavalo-marinho.
OUTROS ENTREMEZES
Nos Reisado de Congo do Cariri, aparecem também outros entremezes, segundo os
próprios Mestres, mais apropriados para outros tipos de reisado, como os Reisados de Baile
e de Careta. Esporadicamente, porém, podem aparecer numa brincadeira de Reis de Congo.
Entre eles, pode-se encontrar:
. O Mandú: (Muitas vezes confundido com o Mané Pequenino, ou Pequenininho, um
“bicho”, que fica grande e pequeno.) Aparece também em Alagoas e nos Reisados de Careta.
Consiste num menino com uma enorme máscara sustentada nos ombros, vestindo camisa
de manga comprida, com uma vara atravessada à altura dos ombros, fazendo as vezes de
braços. Deste modo, parece uma figura disforme: a cabeça enorme, braços longos e estirados,
corpo e pernas curtas. Sua ação é dançar, com os braços duros, balançando. Sua performance
provoca um interessante efeito cômico.
. O Sapateiro: Descrito por Mestre Antônio Romeiro, o Sapateiro usa máscara e chega para
engraxar os sapatos das figuras do Reisado.
Sapateiro: Eu ando caçando serviço.
Mestre: Tem serviço pra você, engraxe todos estes sapatos destas figuras.
“Aí ele sai engraxando. Mas quando acaba, não tem quem queira pagar. Aí o Sapateiro
faz uma novela medonha querendo obrigar os outros a pagar. Ele quer brigar, mas não pode,
porque são muitos contra ele.”
. O Babau: Entremez muito comum em outros tipos de reisado, especialmente nos de Caretas
e Bailes. Consiste num velho mascarado, envergando um paletó velho, com um chapéu de
massa velho na cabeça. Vem montando um animal, com a cabeça formada por uma caveira
de jumento e corpo de palha. No Recife, diz-se tratar de alusão a antigo e despótico coronel
que, depois de morto, permaneceu no mundo como alma penada. No universo do terror
infantil, toma o nome de Véi Babau. Nos bumbas-meu-boi pernambucanos, veste-se como
soturno fazendeiro: terno escuro, com lenço branco no bolso, laço de fita fazendo as vezes de
gravata, máscara de bigode e barba longa, revólver na cintura e facão na mão, cavalgando o
fantasma de um cavalo.
Aldenir faz do Babau a seguinte descrição: “ um cara mascarado, com a roupa de
estopa e uma palhona de palmeira, ele escanchado naquela palhona, fazendo toda latonia,
ali, com aquele pessoal rinchando que nem animal, com uma cabeça de animal, de burro ou
cavalo. ...Aquilo, a gente acha aquela cabeça, enfeita ela bem enfeitada, com pano, cobre
ela bem cobertinha, num tem quem não diga que não é um bicho mesmo. Aquele Careta
montado naquela palha, com aquela cabeça, fazendo toda a latonia no terreno. O pessoal
correndo e ele correndo atrás dos Caretas e fazendo aquele alvoroço. O Babau só chega
dançando e o tocador fazendo aquele baião. Ele não fala nada.”
. Lobisomem: Segundo Sebastião Cosmo, é um mascarado, trajando macacão velho. Sua
ação é correr atrás das crianças. Tem uma chamada:
Na Mataquiri
corre um Lobisomem.
Se num pisá direito
vem o bicho e come.
Bicho Lobisomem
fulô da bonina.
Se num pisá direito
vem comer menina.
Nos Reisado de Congo, podem aparecer ainda outros entremezes, como o Folharal, o
Bode, o Caipora, o Méi-de-Mundo etc.
DESPEDIDA
Os rituais e peças de despedida, utilizando geralmente motivos líricos e guerreiros,
evidenciam que o Reisado parte em peleja, na qualidade de cortejo de guerreiros e peregrinos
(além de trupe de artistas). Como disse, Zuza Cordeiro: “O Reisado termina dando despedida
para ir pra guerra.” São cantos tristes e arrastados, na maioria.
(Ao comando do apito do Mestre, todos os figurantes curvam-se com a
espada estendida, ponta apoiada no solo, frente ao Rei. Ficam assim abaixados e
cantam.) Figural: Não chore, meu amado Rei,
não vejo de que chorar.
Rei: Só choro pela despedida
que eu quero, que eu quero
que eu quero me arretirar.
Figural: Os olhos do amado Rei
são duas tochas acesas
alumiando o salão
do século, do século
do século da natureza.
Todos: Não sei com qual coração
embarco nesse navio.
Deixei pai e deixei mãe, senhora Iaiá
uma mulher e dois fi’os (filhos).
Não sei com qual coração
embarco nesse vapor.
Deixei pai e deixei mãe,
Senhora Iaiá,
uma mulher meu amor. (Peça tradicional)
Outras peças de despedida:
(Aldenir)
Des
pe
di
da,
me
u bem, despedida. Acabou a nossa
função.
Eu não tenho mais alegria, ó le lê,
ó le lê,
alegria no meu coração.
Despedida, despedida chapéu
fora da cabeça.
O senhor dono da casa
durma com Deus e amanheça.
Despedida, despedida despedida de
alegria.
Ó dono da casa
passe com toda famia.
Marchemos, mana, marchemos que o
passo nosso é marchar.
Essa marcha ela é bem-feita por
saudade que aqui não há. Marcha,
marcha, companheiro tira o chapéu da
cabeça.
O senhor dono da casa
durma com Deus e amanheça.
Licença senhora licença
senhor.
Seu dono da casa
adeus que eu já me vou. (Refrão)
Vamos dar a despedida como
deu a saracura.
As meninas tão dizendo coisa
boa não atura. (Refrão)
Vamos dar a despedida como deu
o beija-flor que quis beijar a
açucena aos pés de Nosso
Senhor. (Refrão)
Botei meu barco n’água onde
embarcou Maria.
Dono da casa adeus até
outro dia.
Ó fulô da aurora, ó fulô da aurora
de madrugada, meu Reisado vai embora. (Refrão)
Dancei, dancei, dancei
eu dancei com alegria.
Dono da casa
adeus até outro dia.
(Refrão)
Dancei, dancei, dancei
eu dancei com como se dança.
Dono da casa
essa fica por lembrança.
Tu não te lembras
daquela tarde
tão primorosa,
adeus pastora, adeus querida
que tu me deste
tua mão por despedida.
O nosso Crato é terra querida.
Minha partida, a saudade é que me mata.
Eu amo o sol, eu amo a lua
No meio da rua
nessa bela serenata. (peça recente)
Nossa Senhora da Conceição
proteja meu batalhão
que amanhã eu vou embora.
Eu vou embora mais o meu Mestre
meu Contramestre
passarim que canta e chora.
E a padroeira do Rio Aido
me protegei com meus dois Embaixador.
Saímos todos de rua afora
nós vamos é nos embora
Reisadinho do amor.
Eu fui chamado pra ir pra guerra brigar.
Meu povo todo vamos dar a despedida.
Minha querida, peço que por mim não chore.
Eu é quem vou arriscar a minha vida.
Ela se benze
quando vem manhecendo o dia.
O marinheiro puxa o ferro
e lá se vai de mar afora.
Ela se benze
mas quando vem rompendo a aurora.
O marinheiro puxa o ferro
e lá se vai de mar afora.
Avistei na frente
uma fortaleza.
A nossa batalha
é uma beleza.
Ó fulô da aurora (bis)
de madrugada
meu Reisado vai embora.
(Dedé
Luna)
É de madrugada
o galo já
cantou, se não
cantou
meu relógio já deu hora.
Não chore meu bem que eu penso,
que o meu Reisado cearense vai embora.
Bandeira verde
manchada d’água vertendo.
Apenas saudades que eu
levo desta morena alagoana.
“BANQUETE”
Os rituais e festejos populares, em seu desenrolar, invariavelmente, incluem o
“banquete”, isto é, a vivência de uma era de abundância, onde se coma e se beba à vontade.
É mais um momento de confraternização e prazer. Além do mais, a hospitalidade natural do
nordestino faz com que seja de praxe receber uma visita com uma merenda ou, pelo menos,
com um café. Por isto, na função do Reisado, não poderia faltar o momento da comilança, ou
seja, os donos da casa agradecem aos brincantes, oferecendo-lhes alguma coisa para comer e
beber, antes da partida.
Aldenir Calou descreve este momento da seguinte forma: “O pessoal da casa bota
aquela mesadinha, uma janta. Meninos, vamos jantar! Quando termina aquela janta, nós
vamos agradecer aquela comida que comemos, um café ou uma janta mesmo. Os meninos
estão tudo lá fora, o dono da casa diz:  Mestre, a janta tá lá na mesa. Venham jantar.  Pois
não. Aí a gente se reúne lá e canta:
Trabalha marujo, trabalhemos bem
ôi quem não trabalhar não ganha vintém.
Trabalha marujo dentro do salão
quem não trabalhar não ganha o pão. (29)
“Então, a gente rodeia aquela mesa ali, aquela turma merenda e quando termina nós
vamos cantar esta peça:
Deus não permita que eu morra
sem pagar o que prometi.
A sua face tão amorosa
seu nome está assentado
na fulô do bugari.
Aí nós damos adeus ao dono da casa e vamos embora.”
QUILOMBOS
No Cariri, o folguedo dos Quilombos (ou Quilombada) é como se fosse uma parte do
Reisado, ou melhor, uma apresentação especial do Reisado. Costuma-se brincar nos dias de
festas, quando normalmente as diferentes companhias de Reisado encontram-se. Acontece
durante o dia e reúne duas companhias de Reisado. Cada uma das companhias percorre ruas
e caminhos com seus cortejos, que além do figural costumeiro, traz mais três personagens
obrigatoriamente: o Cão (abrindo o cortejo como baliza), a Rainha (geralmente representada
por uma menina) e a Catirina.
Os Quilombos relembram as batalhas travadas entre negros e caboclos (30) durante a
histórica guerra dos Palmares. Por isso cada um dos partidos em luta é representado por uma
das companhias de Reisado, no caso o partido dos negros e o partido dos caboclos (índios
que aliados aos brancos atacavam os quilombos).
Depois de acertado quem representa quem, isto é, negros e caboclos, o partido dos
negros levanta sua paliçada (uma cabana de palha, rodeada de plantas, feito um sítio de
Judas), onde a respectiva Rainha é guardada (sentada numa cadeira que representa o trono),
ou, simplesmente, a Rainha pode ser colocada sobre o trono no patamar de uma determinada
casa, enquanto as companhias de Reisado tomam posições, uma para defender a Rainha e
outra para raptá-la.
A um sinal, o partido dos caboclos movimenta-se em marcha, animado por sua Banda
Cabaçal, em direção ao local do combate, defronte à paliçada (ou ao patamar da casa)
onde está posta a Rainha. Enquanto isto, o partido dos negros prepara-se para a defesa. Ao
encontrarem-se, os respectivos Mestres e Reis trocam embaixadas, após se dá o combate,
batendo-se Mestre contra Mestre, Rei contra Rei, Embaixador contra Embaixador, Guia
contra Guia, Mateus contra Mateus etc. No meio da batalha, o Cão atenta os contendores,
enquanto as Catirinas, fingindo medo, zombam da seriedade da luta. Em certo momento do
combate, a Rainha dos negros é feita prisioneira, assim como todo seu “exército”. Então, os
caboclos tratam de vender os negros à assistência, em troca de contribuições em dinheiro ou
prendas.
Esta é a forma antiga do Quilombo, semelhante à encontrada em Alagoas. (RAMOS
1935, pp. 66 a 72) Aos poucos, os Mestres do Cariri foram introduzindo modificações tanto
no desenrolar do folguedo, quanto na maneira de interpretá-lo. Antônio Félix da Silva deu
sua versão: “Quando é tempo de festa, lá vem o Quilombo. Lá vêm os dois partidos. É o Rei
de Congo e o Rei simples. Agora, vai se chamar a Rainha pra vender. Faz o palácio, como
seja um palácio de Judas. Lá vai subindo naquele trono, lá vai botando a Rainha. Aí vão
tomar! É aquela briga, o zabumba tocando. Aí vão batendo espada, até tomar. Quando toma,
vai vender. Ali todo mundo se chama Ioiô e Iaiá. Nós vendia a Rainha por duzentos réis.”
(31)
Pode acontecer também que os Quilombos sejam brincados apenas por uma
companhia de Reisado, que, neste caso, se divide em dois partidos: um comandado pelo
Rei e outro pelo Mestre, como explicou Zuza Cordeiro, ajuntando à descrição do folguedo
sua própria interpretação. Disse ele: “Se faz o circo muito bem feito, faz o trono da Rainha.
Quando acabar bota ela sentada numa cadeira, a cadeira toda bacana, em cima de uma mesa.
Então nós forma o partido, partindo no meio o Reisado. A metade caboco, a metade de nego,
que é o mesmo princípio do mundo, viu? Foi do tempo em que o Rei Gaspar tomou a rainha
de Baltazar, e desde daí vem sendo dois partidos. O partido a favor de Jesus é dos neguim,
dos nego, e o partido dos contra Jesus era o partido do Rei Herodes, compreendeu? Aí foram
e roubaram a Rainha do Reis de Congo (que é o Rei Baltazar). Roubaram a filha do Reis
Congo, que é o Reis pretim. Aí juntou-se Reis Congo com a companhia dele e foi tomar, em
luta, a fi’a. Tomou em luta. Chama-se Rainha. Foi tomada numa grande luta, numa grande
guerra. Nós faz dois partido, quando chega no circo, corre. Os outro bota nós pá correr. Nós
volta e joga a espada sem dó e sem piedade uns pros outros e se emborca e toma a Rainha do
trono e sai prendendo. O Rei dos caboco prende o Rei dos nego e o Reis dos nego prende o
Reis dos cabocos, Embaixador prende Embaixador, Mateus prende Mateus. E a Rainha acolá
na dança. E aquele povo sério, tudo vendido. Vendia, chegava junto à senhora e entregava,
lhe oferecia a Rainha. A senhora já sabia, era uma venda. A senhora comparecia com o que
pudesse. Aí saía com a Rainha e ia oferecer a outro.”
Como foi visto, a luta pela defesa e tomada do reduto dos negros (o Quilombo) passou
a ser um combate entre dois Reisados em disputa das respectivas Rainhas. Neste caso, as
paliçadas (ou simplesmente os tronos) são duas, uma para cada Reisado. É o que acontece
em Campos Sales: “A gente faz assim, faz uma barraca aqui e outra atrás. Aí vai se bater o
Mestre contra o Secretário. O Secretário quer tomar a Rainha do Mestre. Aí começa aquela
batalha. A Catirina é atrás rezando: Num faça isso, deixa!” (Antônio Romeiro)
Presenciei, pela primeira vez, os Quilombos (que foram filmados em super-8, na
ocasião) em julho de 1978, no Crato, numa trilha que ficava entre o Baixio Verde, onde
estava sediado o Reisado de Aldenir, e o Buriti, onde Tico tinha seu Reisado. A Rainha foi
colocada sentada numa cadeira, sobre o patamar alto de uma casa grande, que ficava à beira
do caminho. Os Reisados aproximaram-se, um de cada lado, entrando em combate nas
proximidades da Rainha. Depois de renhida peleja, a Rainha foi feita prisioneira por um dos
partidos.
Outras vezes, simplesmente, os Reisados encontram-se nas ruas ou caminhos, quando
é acertada uma combinação para que a batalha seja travada. Explica Tico: “Os Quilombo
nós começa às sete hora da menhã. Nós vamo ganhar a rua, nós temo que topar aquele sócio
daquele outro Reisado. Digamo: eu vou aqui nessa rua, Aldenir já vem acolá. Aí, ele traz a
Rainha dele e eu levo a minha. Ele vai combater comigo pra tomar a minha Rainha e eu vou
tomar a dele, aí nós damo uma luta de espada e ele agarra na minha Rainha e eu agarro na
Rainha dele. Ele toma a minha e eu tomo a dele. Vamos dar aquele jogo de espada com elas
no braço. Depois nós entrega a Rainha e vamo brincar.”
Nos Quilombos, como disse, entram personagens obrigatórios, além dos costumeiros
figurantes. Um deles é o Cão, que aparece como uma figura fora do entremez da Alma.
Ele vai na frente do cortejo, abrindo alas, correndo atrás do povo e fazendo as maiores
palhaçadas, com uma “macaca” na mão. Na rua, ele aparece bem à vontade. Como diz
Sebastião Cosmo: “O Cão faz espetáculo de Satanás. Ele atenta um, atenta outro. Quando
a gente tão brincando dentro de casa, eu num gosto bem do Demônio não, entende? É uma
coisa que num dá certo, Demônio dentro de casa. Mas na Quilombada o Cão faz aquela
pantera com o povo, corre atrás de um, de outro, só atanazando. Aí tem hora que o povo
fica com medo. É um negócio muito complicado. Às vezes tem mulher que nem pode ver.
Os padres proíbem. O Cão quem bem souber, o Cão não chega na porta da Igreja. O que ele
vai ver na porta da igreja? Ele pode atentar por fora, mas na igreja ele não atenta. A igreja é
de Nosso Senhor Jesus Cristo, é uma igreja benta. Ele num tem força de chegar na porta da
igreja. Ele só se apresenta fora. O Cão, tando dentro do meu Reisado, ele tem que ficar lá
fora. Cada qual tem um limite dentro da brincadeira.”
Por recomendação da Igreja, alguns Mestres chegam a desistir da figura, mas logo a
trazem de volta. Foi o caso de Tico: “O Cão também era uma brincadeira boa. Aí eu deixei.
Comecei a brincar em Juazeiro, aí, o padre:  Rapaz, acabe com esse negócio de Cão. Esse
negócio de Cão num dá certo não! Aí eu acabei. Mas já tô com vontade de ajeitá de novo,
porque só vai com ele, né? Porque é um bicho bom. A gente brincava aí na rua, em Juazeiro,
aquela meninada acompanha, aquele pessoal gosta.”
Na verdade, os temores do padre citado por Tico são infundados, pois foram os
próprios jesuítas que introduziram o Cão em nossas danças: “Os jesuítas conservaram danças
indígenas de meninos, fazendo entrar nelas uma figura cômica do diabo, evidentemente com
o fim de desprestigiar pelo ridículo o complexo de Jurupari.” (FREYRE 1978, P. 129) (32)
A presença do Diabo nos Quilombos caririenses (presença não registrada por Arthur
Ramos nos antigos Quilombos de Alagoas), talvez seja inspirada em sua citação na peça
tradicional, cantada pelo partido dos negros, mas já desaparecida nos Reisados do Cariri,
cuja letra diz:
Folga nego
Branco não vem cá.
Se vier
O Diabo há de levá.
Folga nego
Branco não vem cá.
Se vié
Pau há de levá.
Folga parente
Caboco não é gente. (RAMOS 1935, pp. 68/69)
SIGNIFICAÇÕES
Os Mestres são unânimes em afirmar que o Reisado liga-se ao nascimento do Menino
Jesus e à visita feita a ele pelos três Reis Magos. Em Baltazar, o rei negro, encontram a
explicação para a presença do Rei de Congo. Deste modo, Baltazar é o Rei de Congo, o
Santo Rei. (33)
Para explicar a origem do Reisado, alguns Mestres recorrem a verdadeiras narrativas
míticas. A mais poética delas, foi ouvida da boca do Mestre Antônio Romeiro. Senão, vejase:
“O Reisado é uma devoção aos Santos Reis, é a brincadeira que eu tenho desde
pequenininho e que eu gosto de brincar. O Reis de Congo veio do nascimento do Menino
Jesus. Havia os dois, o Reis de Congo e o Reis do Oriente. Os dois vieram resguardar o
Menino Jesus. Então eles receberam uma ordem de Deus:  Vocês vão brincar pra ganhar o
pão.  Quem foi que disse que nós queríamos brincar para ganhar o pão? Quem disse isso? 
Foi o Menino Deus.
“Esses Reis eram todos pobres. Eram Reis dos pobres. Aí eles começaram a brincar
para ganhar o pão. Deus deu o meio de viver a todos, pra pessoa não ficar vagando pelo
mundo. Então, Deus deu aquelas partes pra pessoa viver, uma arte, uma coisa, trabalho na
roça, um negócio. Deus deu o meio. Depois, Deus disse:  Vocês vão festejar o Santo Reis.
Aí ficou aquela brincadeira. Começaram a festejar quando Jesus nasceu e continuaram até
hoje. “Por detrás daquela igreja, correu estrela e parou, e o Divino Santo Rei, com ela se
alumiou”. (Repete três vezes) Eles estavam pastorando o Menino Jesus. Aí Deus mandou
eles brincarem. Um foi brincar de Reis de Congo e o outro foi brincar de Reis de Careta.
Deus deu o movimento pra eles viverem.
“O Reis de Congo é o Rei dos negros, porque ele é preto. O Reis de Congo é o Reis
que, de manhãzinha, está bem novo e, de tarde, está bem velhinho. Porque ele tinha e tem
milagre. O milagre é esse: a pessoa viver, ficar velha mas num deixar de ser menino. Então,
de manhãzinha, ele estava novinho. Mas quando o sol se ia, de tardezinha, ele tava com o
cabelinho bem alvinho, velhinho.
“O Reis de Careta é o Reis do Oriente. O Reis do Oriente veio do alto. Quando Jesus
morreu, ele foi guardar, mode os judeus não irem tirar Jesus. Ele usava máscara pra eles, os
judas, não conhecerem. Se o Judas visse que era ele, o Judas dava fim.” (34)
No Cariri, particularmente em Juazeiro do Norte, o Reisado penetrou com as bênçãos
do Pe. Cícero Romão Batista, incorporando-se, deste modo, ao universo simbólico religioso
da cidadela sagrada dos romeiros. Foi o que contou Zuza Cordeiro:
“Eu tô com 57 anos que brinco, viu? Cinqüenta e sete anos que conheço o Reisado,
ensinado pelo padroeiro Ciço Romão Batista. Foi ele que me ensinou. Pediu que eu num
deixasse de festejar o Menino Jesus todo ano. Os Mestres mais véi que têm dentro de
Juazeiro sou eu e o Olimpo Boneca. O Reisado nasceu a mandado do Meu Padrinho Cícero.”
O que é confirmado por Miguel Francisco: “O Zuza Cordeiro chegou aqui com três
figuras e o Mestre Olímpio Boneca. Aí o Padre Cícero mandou chamar. Disse: - Como é o
nome dessa brincadeira? Responderam: - Essa brincadeira, na nossa terra, chama-se Reisado.
(35) Aí, meu Padrinho foi, chamou ele pra entrevista mais o doutor Floro, que aquilo era uma
peça tão bonita. Meu Padrinho Cícero achou tão lindo eles cantando aquelas peças, aquelas
músicas que eles inventaram, cantando desde o Nascimento, que nem um sonho, um poeta.
Aí, Meu Padrinho Cícero mandou que eles continuassem a brincar no Juazeiro, num fossem
mais embora não.”
O mesmo Zuza Cordeiro, porém, junta outras significações ao Reisado. Disse ele:
“O Reisado completa guerra. O Reisado bom afinda pra dar despedidas primeiro pra ir pra
guerra e depois continuar.” E mais adiante: “Os entremei representa a safadeza, a grigaiada
do povo, né? O povo acha bonito. O Boi representa a gaigaiada.”
Ao seu modo, os Mestres de Reisado referem-se às várias significações do Reisado.
Primeiro, o fato de ele ser uma devoção, um ritual religioso, ter caráter sagrado. Depois, o
seu aspecto guerreiro, trata-se de uma cruzada, de um batalhão em guerra santa. (Interessante
é observar que o imaginário dessas batalhas, reúne referências à memória de diferentes
episódios guerreiros, entre eles, as guerras entre antigas nações africanas, as batalhas de
Carlos Magno contra os infiéis, os combates dos quilombolas de Palmares e a luta dos
homens de Antônio Conselheiro, em Canudos.) E, por fim, o seu lado profano, grotesco,
a comédia que ele representa, já que também se constitui uma companhia ambulante de
comediantes. Em todo caso, o Reisado é um cortejo, um grupo em travessia, ou como
procissão de peregrinos, tropa que se desloca, ou como trupe de artistas mambembes.
(36)
Particularmente, a explicação de Antônio Romeiro sobre o significado do Reisado
é reveladora do alcance e da ousadia criativa de seu imaginário. Nela vislumbra-se a luz
que poderemos obter mergulhando na sua rede simbólica. (37) Não cabe aqui uma análise
exaustiva do texto oral de Antônio Romeiro, mas vale observar que refaz, entre outras coisas,
tanto a narrativa mítica explicativa da origem divina do Reisado quanto a sua diferenciação
em dois tipos: Reisado de Congo e Reisado de Caretas. Além disto, aponta o sentido cósmico
da brincadeira, o de renovação diária da vida quando fala do ‘milagre’ do Reisado como
sendo o de remoçar e envelhecer no ciclo de um só dia.
Cabe observar também que não poucas peças e embaixadas do Reisado de Congos
fazem referências à condição divina dos reis e aos seus poderes curativos, o que nos remete
diretamente aos reis taumaturgos da Europa Medieval analisados por Marc Bloch em livro.
Além disso, há o entremez, no qual depois de morto o Rei tem sua alma disputada entre o
Demônio e São Miguel para depois reaparecer festivamente na brincadeira. A cena guarda
ligações com os rituais de morte dos Reis primitivos sacrificados por seus povos na velhice
e substituídos por outros mais novos e capazes, costume esse exaustivamente descrito por
Frazer, em seu O Ramo de Ouro.
Após o cortejo e a abertura da porta, o primeiro entremez do Reis de Congo já
encenado no terreiro é o do entronamento do Rei com seu posterior destronamento, ocasião
em que é substituído no trono. O Mateus aproveitando uma desatenção do Rei senta
sorrateiramente no trono e lá instala-se, tornando-se rei durante algum tempo. Do trono
só é tirado pela força da espada, não sem antes se bater desajeitadamente e pôr em prática
algumas de suas artimanhas. Por algum tempo, Mateus, negro e ex-escravo, torna-se, ele
também, rei.
Tal cena nos remete imediatamente, a antigo costume das festas populares medievais
quando reis e bispos malucos (ou meninos) eram entronados pelo povo, enquanto fidalgos
e figuras da alta hierarquia eclesiástica passavam a lhes servir como criados. Tanto no
Reisado quanto na festa medieval, tais destronamentos (dos Reis e Bispos) e entronamentos
(do Mateus, dos reis meninos e dos bispos loucos) materializam o espírito carnavalesco do
mundo invertido, onde as hierarquias são degradadas, o poder é relativizado e pelo riso a
vida é recuperada.
No Cariri cearense, a presença do Padre Cícero vem reforçar, ainda mais, o caráter
de missão sagrada emprestado ao Reisado. Prova são as respostas dadas por mestres e
brincantes sobre o porquê da decisão de se dedicarem ao Reisado, respostas estas quase
sempre relacionadas com as bênçãos do Taumaturgo de Juazeiro. Deste modo, fica
estabelecida uma ligação entre o Reisado caririense e o projeto de cidade santa imaginado
pelo Padre Cícero e seus romeiros em torno de Juazeiro do Norte.
Além do mais, no Reisado, o Rei (ou o Mestre) não é um superior hierárquico que
impõe sua dominação pela força ou pelo poder econômico. Ele é um companheiro, um
igual, dos demais brincantes. Mesmo tendo em vista não o espetáculo e a hierarquia que
nele está representada, mas o grupo de brincantes formado por trabalhadores de baixa renda,
a relação entre o Mestre e os demais integrantes do Reisado é de camaradagem e parceria.
Sua liderança advém do fato de ele deter a memória do Reisado, numa reprodução do que
acontece em alguns tipos de dominação tradicional, como os estudados por Max Weber.
(38)
A partir daí, o Reisado mostra-se como um grupo de iguais. Todos os seus integrantes
são pessoas portadoras de uma missão sagrada à qual dedicam a vida. Os capacetes e espadas
que o conjunto das figuras portam (menos o Mateus e Catirina) mais que apetrechos de
guerra são coroas e cetros reais, não apenas no sentido simbólico, mas na maneira como
são confeccionados e conduzidos. Na verdade, todos os brincantes são uns para os outros
como reis, pessoas tocadas pelo divino com dons especiais que as permitem, enquanto dura a
brincadeira, ter satisfeitos todos os seus sonhos e desejos além dos limites físicos e sociais.
Fica assim evidente que o Reisado não é apenas um modo de trazer à tona em forma
de símbolo, um dos arquétipos fundamentais da psique coletiva, o do Rei (e o da Rainha que
é seu inverso), mas é também um veículo de reconciliação de homens e mulheres com o
Rei e a Rainha que guardam dentro de si. Tal observação ganha maior importância quando
sabemos que, na teoria junguiana do inconsciente coletivo, o Rei é o princípio integrador
da psique masculina madura (o mesmo acontecendo com a Rainha em relação à psique
feminina). Nele estão incluídos o Guerreiro, o Mágico e o Amante que integrados em sua
figura dão sustentação ao desenvolvimento sadio da nossa personalidade.
Arquétipo encontrado no universo simbólico de todas as civilizações, o Rei é aquele
que faz a ligação entre o profano e o sagrado, entre o humano e o divino. É ele o responsável
por combater o caos, dar ordem ao mundo e renovar a vida com sua energia. Protetor dos
fracos contra os fortes, fonte de justiça, o Rei é o reconciliador, o transformador, o procriador
e o estruturador (segundo terminologia dos psicanalistas norte-americanos Robert Moore e
Douglas Gillette). Sua presença na psique humana significa a possibilidade de tornarmo-nos
homens generosos e ativos tocados pelo divino.
No Cariri, especialmente, o cortejo do Reisado representa um batalhão de peregrinosguerreiros,
transitando em cruzada na defesa do Menino Jesus e da Nova Jerusalém dos
Nordestinos, como é chamado o Juazeiro do Padre Cícero. Um cortejo messiânico em busca
do Paraíso Perdido, da Idade de Ouro Saturnal, que, enquanto caminha, vive o mundo
invertido do cômico popular, a segunda vida do povo, que é também a vivência da utopia,
do desejo de uma sociedade de igualdade, liberdade e abundância, onde homens e mulheres
sejam Reis e Rainhas de suas próprias vidas.
O outro grande arquétipo tematizado pelo Reis de Congo é o do Boi-pai. No episódio
da repartição do Boi está o corpo grotesco despedaçado e a paródia do testamento. Em sua
morte e ressurreição está o sacrifício e recuperação do herói, está o ritual de renovação da
vida. Arthur Ramos lembra que, “psicanaliticamente, o animal-totem é o símbolo do Pai. O
pai primitivo, morto pela horda rebelde, e substituído pelo filho herói, na fase do matriarcado
(ciclo das rainhas), volta divinizado depois do sacrifício do filho, mas metamorfoseado
em animal protetor do clã.” (RAMOS 1935, p. 126). E, mais adiante, fala sobre a cena da
‘repartição’ do Boi: “Será preciso repetir que o testamento do boi é um repasto totêmico?
Repasto de que todos participam. Cada um vai comer um pedaço do pai. (...) Após esta
comunhão simbólica (velho tema de todas as religiões!), todos se redimem. Desaparece o
sentimento de culpa. Cessam o luto e a dor. O Pai está redimido. E o totem, todo poderoso
desce sobre o grupo, envolvendo-o num amplexo de proteção”. (RAMOS 1935, pp.
127/128)
A ESTÉTICA DOS MESTRES
Reisado bom é o que respeita a tradição, o que brinca como é para ser brincado. Nisto,
os Mestres são unânimes. Porém, cada um deles afirma ser o seu Reisado o mais original, o
mais verdadeiro, no sentido de ser o que mais preza a tradição. Todos igualmente afirmam ter
o melhor Reisado, o mais bonito. Às vezes, há disputas entre as diversas companhias. Ganha
quem canta as peças, dança e joga espada melhor. Nenhum dos Mestres admite que haja
perdido uma disputa.
A reclamação mais freqüente é de falta de apoio para bem trajar as figuras. E isto é
fundamental. O que Sebastião Cosmo mais admira num Reisado é o traje das figuras. Os
entremezes podem usar figurinos improvisados, aproveitando-se materiais que estejam à
mão, roupas velhas, estopa, palha, pedaços de papelão e de plástico etc. As figuras, porém,
precisam estar trajadas “como Reis”.
Enquanto o Reisado de Caretas usa cores sóbrias e neutras, tão ao gosto dos vaqueiros
e roceiros do sertão, o Reis de Congo, talvez por sua origem africana, gosta do brilho,
dos espelhos, lantejoulas e tecidos cintilantes, das cores primárias e dos tons fortes. Tem
preferência pelo vermelho, pelo amarelo e pelo verde. Suas combinações mais usuais são o
vermelho com o amarelo e o vermelho com o verde.
Antônio de Mariquinha, brincante de Reisado em Campos Sales, faz uma comparação
entre o Reis de Congo e o Reis de Careta: “O povo gosta mais do Reis de Congo porque
é mais decente, mais bonito e é da igreja, tem combate, combate de guerra. O Reis de
Careta tem aquelas máscaras na cara e é mais feio, já é mais por fora. É um Reisado mais
descontrolado.” Como disse o jovem Mestre Raimundo Nonato: “O Reisado é uma coisa
muito fininha! O Reisado é muito fino. O Reis de Congo é uma coisa muito fina e que exige
muita disciplina.”
Da exigência estética vem a necessidade da disciplina, não só do bom comportamento
dos brincantes, mas do rigor no ritmo e na execução dos passos. Tudo é parte da tradição,
que se deve obedecer. Tanto no espetáculo, quanto na organização da companhia, explica
Antônio de Mariquinha, “as coisas são assim, porque já vem do começo.”
Que o Reisado cante bonito é fundamental. Mas se o Mestre possuir uma espada,
com as iniciais do imperador gravadas no cabo, tanto melhor. Estes são os motivos por que
Miguel Francisco considera o Reisado do Mestre Olímpio Boneca insuperável: “A diferença
do Reisado dele para os de hoje era a entonação, era a pisada que nós chama trupé, era a
chegada, era cantar entoado. Eu fazia todo o empenho nas músicas dele, porque eles cantava
bonito. Pra começar, ele tinha a maior galarias na vida deles, de carregar uma espada de D.
Pedro, D. Pedro I, D. Pedro II. Essas espadas são amoladas, bateu em qualquer canto, é bater
e fica o jaço na pessoa.” (Miguel Francisco)
De todos os entremezes, o Boi é o que mais agrada ao público e aos brincantes. Depois
vêm o Jaraguá e a Burrinha. Mas há quem admire mais
os tipos grotescos, como a Velha, o Velho e o Anastácio. É o caso de Seu Henrique, um
brincante do Reisado da Bela Vista. Ele gosta mais “do Véio e da Véia porque eles são mais
quinturento, mais cheios de graça.” Já o povo, segundo ele, gosta mais de assistir ao Jaraguá
e ao Velho Anastácio: “Porque o Véio Anastácio pega aquelas quintura, quer ser valente e só
sai apanhando. O Jaraguá é porque é um passo (pássaro) muito interessante.”
No entanto, a parte “séria” do Reisado (as embaixadas, batalhas e, principalmente,
a devoção) é que enche de sentido a vida dos brincantes. Raimundo Nonato confessou
emocionado: “Eu quando brinco num dispenso uma renovação do Coração de Jesus para
cantar o Divino. Eu gosto muito de cantar o Divino: o sofrimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo, o nascimento, ou quando ele morreu que sepultou-se, que assubiu ao reino da Glória.”
A televisão não parece ter a influência que se costuma atribuir junto aos brincantes do
Reisado, embora quase todos sejam assíduos telespectadores. Talvez ela os fascine apenas
como palco, possibilidade de divulgação. O sonho maior declarado por muitos Mestres de
Reisado, vivos e falecidos, é um dia aparecer no programa do Sílvio Santos. Consagração
mais alta não poderia haver. Porém, imitar o que sai na televisão, nem pensar. “No tempo em
que o Reisado começou, não tinha televisão”, explicou Zuza Cordeiro. Uma vez, Sebastião
Cosmo, vendo um filme antigo, de guerreiros romanos, quis imitar um capacete. Mas
confessou: “ficou parecendo um capacete de Judas”. E logo voltou aos modelos tradicionais.
Nas funções dos Reisados não é notória a influência dos meios de comunicação de
massa. Talvez uma ou outra “peça crônica”, inspirada em notícias ouvidas no rádio ou na
televisão. Nem por isso, no Cariri, o Reisado deixa de ter seu público fiel: “Quando a gente
vem brincar aqui, perto de casa, eu ou a Margarida, (39) enche de gente”.
Em Juazeiro do Norte, os brincantes não escondem a admiração que sentem pelo
Reisado alagoano, mesmo assim preferem o cearense. E Miguel Francisco justifica: “o
Reisado cearense tem o ritmo das peças mais bonito, mais apressado.”
Observando os espetáculos dos vários Reisados, chama a atenção a riqueza de
elementos do que Bakhtin chamou de ‘realismo grotesco popular’. Velhas grávidas, velhos
libidinosos, corcundas, vivos carregando mortos, centauros, lobisomens e outros seres
híbridos (homens-animais, homens-vegetais etc.), gigantes, anões, homens travestidos de
mulher, loucos alegres, espantalhos cômicos, demônios e anjos são personagens presentes
em todos eles.
Também é comum a linguagem cômica de rua, as máscaras, as destrezas acrobáticas,
as caretas, as contorções, os chutes no traseiro, as burlas e facécias, os partos, a morte
sucedida por ressurreição, a boca escancarada, os grandes narizes, a voz anazalada em alto
volume, os gestos largos dos atores, as coreografias com movimentos amplos, enfim, o modo
de interpretar dos saltimbancos e artistas circenses. Sua literatura dramática é repleta de
paródias a ritos oficiais (religiosos ou civis), de degradações das formas sérias, de repetições
de fórmulas e matrizes tradicionais, de reproduções fragmentárias de lendas e de narrativas
míticas, toda ela rica em variações e recheada de improvisos como costuma acontecer às
literaturas orais.
Trata-se, como vemos, de algo muito próximo ao mundo cômico popular da Idade
Média estudado por Bakhtin, da vida festiva da praça com sua linguagem grotesca e seu
sentido de renovação do mundo. Podemos até dizer que ao Reisado não falta nenhum dos
elementos do carnaval popular, onde Bakhtin encontrou a manifestação da utopia universal,
do desejo de volta à idade de ouro saturnal. Também no Reisado há a inversão do mundo e a
materialização do que o autor de A Cultura Popular na Idade Moderna e no Renascimento
chamou de a segunda vida do povo.
Tanto é que, ao Reisado, seja de que tipo for (e não apenas ao Reis de Congo), nunca
falta o bufão, o bobo, o personagem cômico que, por brincadeiras, paródias e peripécias,
desfaz toda hierarquia, relativiza toda verdade, rompe toda estabilidade, rebaixa tudo o que
é sério e pretensioso, finalmente, põe o mundo de ponta cabeça. É ele o Mateus e a
Catirina (no Reis de Congo), os velhos Caretas (no Reis de Careta), os Papangus (no
Reisado de Caboclo), o Palhaço (no Boi da periferia de Fortaleza).
NOTAS
(1) Por ‘entremeio’, além do pequeno quadro dramático inserido no corpo do folguedo,
designa-se, também, sua figura principal. Assim, diz-se que são entremeios o Boi, o
Jaraguá, a Burrinha, o Sapo, o Velho Anastácio etc.
(2) ‘Contra’, no sentido que é empregado para as figuras do Reisado, é um segundo, o vice, o
que vem logo após, o que substitui o primeiro. Nos engenhos de cana-de-açúcar, empregavase
o termo nestas acepções, havia um banqueiro e um contrabanqueiro, por exemplo.
(3)Mestre Miguel Francisco, de Juazeiro do Norte, informou que Mestre Olímpio Boneca
possuía uma dessas velhas espadas, o que era motivo de orgulho por parte dele e
admiração de todos. Disse também que Dedé Luna tinha também uma espada com a marca
de Dom Pedro II.
(4) Em Portugal, durante as festas de São Gonçalo, havia “as enfiadas de rosários fálicos,
fabricados de massa de doce, vendidos e “apregoados em calão fascetino” - informa
Luís Chaves - pelas doceiras à porta das igrejas.” (FREYRE 1978, p. 248)
(5) Talvez os Mateus tenham derivados do Arlequim, ou Arlequino, da Comédia “Dell’arte”,
que usava uma máscara preta no rosto, ou dos palhaços circenses. Gilberto Freyre informa
que, no engenho Monjope, Pernambuco, ainda no período colonial, “houve não só Banda
de Música de negros, mas circo de cavalinho em que os escravos faziam de palhaços e
acrobatas.” (FREYRE 1978, p. 417)
(6) Diferentemente dos antigos reisados alagoanos, no Cariri, não aparece o Palhaço,
formando o trio de cômicos junto com o Mateus.
(7) Esta falta de sensualidade da Catirina coincide com o que observa Gilberto Freire sobre a
mentalidade do Brasil Colônia, em relação às mulheres “negra é para trabalhar, branca para
casar, mulata para fuder.” (FREYRE 1978, p. 10)
(8) No caso do Reisado de Antônio Romeiro, os cordões são puxados, um pelo Contramestre
e o outro pelo Secretário. Os dois Embaixadores vêm logo atrás de cada um deles.
(9) Para compor este pelo-sinal, utilizei às versões de Dedé Luna e de Miguel Francisco.
Uma preencheu as lacunas da outra.
(10) O varrimento do salão da casa, ou do terreiro (junto com seu aguamento), onde o
Reisado vai ser brincado, além de servir para evitar poeira, há um sentido mágico de limpar
o local dos maus espíritos.
(11) ) Mestre Aldenir assim justifica a presença de Herodes nos versos: “Herodes era o
mais malvado, não é desfazendo da nação do mundo, é porque Herodes deu em Jesus, quer
dizer, começou.”
(12)Acrescentei também alguns diálogos tirados de espetáculos e entrevistas com os Mestres
Tico e Dedé Luna.
(13) Na verdade, esta peça é resultado da junção de outras peças diferentes numa mesma
melodia.
(14) Peter Burke, em seu livro Cultura Popular na Idade Moderna, dedica um capítulo
inteiro à explicação do que consistem essas “fórmulas tradicionais”.
(15) Referências a Antônio Conselheiro e à guerra de Canudos aparecem em várias peças do
Reis de Congo. Quando não citam o nome do personagem histórico, aparecem nelas versos
(“fórmulas fixas”) usados em canções folclóricas que tratam do episódio como os versos de
uma outra peça: “Quando eu cheguei na ponta da rua/avistei de longe a corneta tocar/só me
lembro de ir para a guerra/ai amor, ai amor, ai amor”; que também aparecem (com
variações) em conhecida canção tradicional gravada por Fagner, onde a referência a
Canudos e Antônio Conselheiro é direta.
(16) Batalha de Oliveiros com Ferrabraz, Juazeiro do Norte, filhas de José Bernardo
da Silva, 1976.
(17) No cordel de Leandro Gomes de Barros, o verso que aparece é narrativo e vem entre
parênteses: “(disse o turco com furor)”, daí talvez a confusão do Mestre de Reisado em
colocá-lo no diálogo entre o Mestre e o Rei.
(18) No cordel de Leandro Gomes de Barros, os versos iniciais desta estrofe são também
narrativos: “Beijou a cruz da espada/prosseguiu uma oração”
(19) Estas duas últimas estrofes não constam do cordel de Leandro Gomes de Barros,
Batalha de Oliveiros e Ferrabraz.
(20) Durante a execução desta peça, os figurantes fazem uma interessante coreografia,
acocorando-se e levantando-se.
(21) Em Juazeiro do Norte, várias vezes, os romeiros do Padre Cícero reuniram-se em
torno da Matriz para defender a imagem de Nossa Senhora das Dores, a santa padroeira,
em
resposta a boatos que davam como certo que tropas sediadas no Crato iriam invadir Juazeiro
para roubá-la.
(22)As peças da Burrinha ou Cavalo-marinho, citadas por Théo Brandão, em Reisado
Alagoano, p. 114, datam da primeira metade deste século e trazem versos como: “Meu
Cavalo-marinho/É das ondias do má./ Isto tudo é louvô/Isto tudo é louvá./ Aprantei
bananera/Nasceu bananá./Isto tudo é louvô/Isto tudo é louvá.” Ou como estes: “Tinha
sete camisa/Mandei as lavá/Lavadeira me disse/Que fosse buscá./Eu não sou bananera/Eu
não sou bananá./Quem quebrou as cadeira/Que as mande soldá.”
(23) No Reisado de Antônio Romeiro, o dono da casa mata o Boi com uma cacetada, mas
quem vai dar conta do Boi é o Mateus. O dono diz que não foi ele, porém o Mateus acusao,
diz que foi ele mesmo, o dono da casa: “Aí o Mateus prova mostrando o cacetinho com
que o dono da casa matou o Boi. Então o Mateus vai arranjar uma pila (pílula) para
ressuscitar o Boi. O Boi toma a pila e se levanta. Antes dele se levantar, é feita a repartição
do Boi.”
(24) Para refazer o entremez, utilizei como base uma apresentação do Reisado do Mestre
Aldenir, mas completei com contribuições dos depoimentos de Antônio Romeiro,
Antônio Félix, Tico, Sebastião Cosmo, Miguel Francisco, Raimundo Nonato e Zuza
Cordeiro.
(25)Aldenir faz uma diferença, dizendo que, no Reis de Couro, agora, mata-se o Boi e, em
seguida, faz-se sua repartição. Diz ele: “Num é interessante, um pessoal trajado de
Reisado partir o Boi. Quem parte tem que ser trajado que nem um Doutor.” Com isso,
Aldenir quer dizer que a representação do entremez do Boi fica melhor no Reis de Couro
(ou Careta) ou no Bumba-meu-boi, porque os personagens têm um traje característico.
Talvez por isso, Aldenir não se sinta à vontade para desenvolver tanto o entremez do Boi
num Reisado de Congo, onde o figural brinca trajado de guerreiro.
(26) Esta forma de repartir o Boi, com o detalhamento do seu baixo-ventre, além de ter
relação com o corpo grotesco despedaçado, parece guardar uma correspondência
sociológica. Informa Antonil: “O certo é que não somente a cidade, mas a maior parte dos
moradores do recôncavo mais abundante, se sustentam nos dias não proibidos da carne do
açougue, e da que se vende nas freguesias e vilas, e que comumente os negros, que são em
número muito grande nas cidades, vivem de fressuras, bofes e tripas, sangue e mais fato de
reses, e que no sertão mais alto a carne e o leite é o ordinário mantimento de todos.”
(ANTONIL 1967, p. 312)
(27) Em Alagoas, o entremez apresenta-se em versões diferentes. Nos registros colhidos por
Théo Brandão, aparece menos desenvolvido e com visíveis “mutilações”.
(28)Aldenir chama o Diabo de Cão, ou melhor, de São Cão. Ele referiu-se várias vezes a São
Cão durante a entrevista. Por exemplo, neste trecho:
ALDENIR: Aí, ele vai e diz, São Miguel. Que é os dois falando: São Cão e São Miguel.
OSWALD: São Cão, é?
ALDENIR: Eh?
OSWALD: São Cão, se chama?
ALDENIR: É o Cão mesmo.”
(29)As peças que trazem referências a tripulantes de navios e fatos relativos à navegação,
geralmente, têm procedência das Marujadas ou Fandangos (como são chamadas aqui no
Ceará).
(30) Embora Palmares tenha sido atacada por tropas a serviço de Portugal e comandadas por
brancos, o corpo dessas tropas era formado, em sua grande maioria, por índios ou caboclos.
Daí que, na memória popular, tenham ficado os caboclos (termo usado muitas vezes como
sinônimo de índio) como inimigos das forças negras.
(31) Interessante é que 200 réis são também a quantia citada por Arthur Ramos como sendo o
preço de venda da Rainha nos antigos Quilombos alagoanos. (RAMOS 1935, p. 67)
(32) Gilberto Freyre refere-se aqui ao processo de demonização de Jurupari, principal herói
civilizador dos índios tupis, levado a efeito pelos jesuítas.
(33) Para alguns Mestres, no Quilombo, Gaspar é o Rei dos caboclos.
(34) O Reis de Careta, a que se refere Antônio Romeiro, é outra modalidade de Reisado, na
qual as principais figuras usam caretas (máscaras). Junto com o Reisado de Congos,
constitui as duas mais importantes modalidades de Reisado encontradas no interior do
Ceará.
(35) Zuza Cordeiro era natural do interior de Pernambuco, região próxima ao Cariri
cearense. Olímpio Boneca era de Alagoas.
(36) Pretendo, em trabalho posterior, aprofundar a discussão sobre o significado do Reisado.
Mas aqui já se encontram elementos para intuir que se trata de um cortejo de brincantes,
representando cruzados em missão dada pelo profeta (Jesus), comandados por um herói
guerreiro (o Mestre), que vive, pelo riso, a utopia (o mundo alegre do povo, a que alude
Bakhtin).
(37) Segundo conceito de CASTORIADIS, Cornelius: A Instituição Imaginária da
Sociedade. 3a. ed., tradução de Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.
142.
(38)Ver WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol. I, cap. III: Os Tipos de Dominação.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1991.
(39)Margarida é uma mestra de Guerreiro, que morava no mesmo bairro de Sebastião
Cosme, no Juazeiro do Norte.
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APÊNDICE
REFERÊNCIAS D A PESQUISA DE CAMPO (registros)
MESTRE ALDENIR CALOU:
-Julho de 1978: apresentação do Reisado no sítio Baixio Verde, Crato.
-Julho de 1978: apresentação dos Quilombos, envolvendo os Reisados de
Aldenir e do Mestre Tico.
- 17 de setembro de 1989: entrevista na Vila Padre Cícero (depois Bela Vista),
Crato.
- 31 de outubro de 1989: entrevista no Juazeiro do Norte.
- 27 de julho de 1995: Crato, Ceará. Apresentação no distrito de Bela Vista, do Reisado
Juvenil Feminino (organizado por Aldenir), conhecido como Reisado das Meninas, que
tem como mestra Luiziana, neta de Aldenir.
- 27 de julho de 1995: entrevista no distrito de Bela Vista, Crato, Ceará.
- 28 de julho de 1995: apresentação do Reisado, Bela Vista, Crato, Ceará,
- 29 de julho de 1995: apresentação do Reisado das Meninas, da mestra
Luiziana (sob orientação de Aldenir) em Bela Vista, Crato, Ceará.
- 29 de julho de
1995: apresentação do Reisado no distrito de Bela Vista, Crato, Ceará, em
frente à casa da irmã do Mestre.
- 30 de julho de 1995: apresentação do Reisado, no pátio da Escola de 1o. Grau Maria
Sônia Calou de Sá. Distrito de Bela Vista, Crato, Ceará.
MESTRE TICO
- 25 de julho de 1978: entrevista realizada na localidade de Capim, Crato.
- 25 de julho de 1978: apresentação do Reisado na localidade de
Capim, Crato.
- Julho de 1978: apresentação dos Quilombos, com a participação dos
Reisados de Aldenir e Tico.
MESTRES ZUZA CORDEIRO, MIGUEL FLORENTINO, ANTÔNIO FÉLIX E
RAIMUNDO NONATO
- 20 de julho de 1978: entrevista em Juazeiro do Norte.
- 21 de julho de 1978: apresentação do Reisado da Rua Delmiro Gouveia, em
Juazeiro do Norte, com a presença dos Mestres citados, além de Sebastião
Cosmo.
MESTRE ZEQUINHA
- 12 de setembro de 1989: apresentação do Reisado em frente à igreja matriz
de Juazeiro do Norte.
MESTRE SEBASTIÃO COSMO
- 21 de julho de 1978: Apresentação do Reisado da Rua Delmiro Gouveia, em Juazeiro do
Norte
- 13 de setembro de 1989: entrevista na sua casa, em Juazeiro do Norte.
- 13 de setembro de 1989: apresentação do Reisado, em Juazeiro do Norte.
MIGUEL FRANCISCO (Mateus)
- 17 de setembro de 1989: entrevista na sua residência, em Juazeiro do Norte.
ANTÔNIO MONTEIRO DA SILVA (brincante)
- 14 de dezembro de 1989: entrevista realizada no município de Jardim, Sítio
Lameirão.
MESTRE ANTÔNIO ROMEIRO
- 15 de dezembro de 1989: entrevista na Lagoa dos Paulinos, município de
Campos Sales.
- 15 de dezembro de 1989: apresentação do Reisado no sítio Lagoas,
município de Campos Sales.
ANTÔNIO DE MARIQUINHA (Mateus)
- 15 de dezembro de 1989: entrevista realizada no sítio Lagoas, município de Campos Sales.
Ele era o Mateus do Reisado de Antônio Romeiro.
MESTRE DEDÉ LUNA
- 18 de agosto de 1996: entrevista realizada no Sítio Lobo, cidade do Crato.
MESTRE CHICO OLIVEIRA
- 27 de outubro de 1996: entrevista realizada no vilarejo de Rosário, município
de Milagres, durante a festa de Nossa Senhora do Rosário.
MESTRE JOSÉ RIBEIRO MENEZES (de Missão Velha)
- 27 de outubro de 1996: entrevista realizada no vilarejo de Rosário, município
de Milagres, durante a festa de Nossa Senhora do Rosário.
- 27 de outubro de 1996: apresentação do Reisado em Rosário, município de Milagres,
durante a festa de Nossa Senhora do Rosário.
DADOS BIOGRÁFICOS DOS PRINCIPAIS INFORMANTES
ALDENIR CALOU
Nasceu em 1933, no Baixio Verde, um sítio à beira de um canavial, no coração do Vale
do Cariri, dentro do município do Crato, próximo à Vila Padre Cícero (que depois viria a
chamar-se Bela Vista). Foi registrado com o nome de José Aldenir de Aguiar. Como seus pais
não eram ainda casados no civil, ganhou apenas o sobrenome da mãe, Aguiar. Seu pai tem
o sobrenome Calou, que passou para os irmãos de Aldenir, menos para ele. Mesmo assim,
Aldenir é conhecido por muita gente como Zé Calô. Desde menino trabalhou na roça, mas
nunca possuiu terra. Recentemente, empregou-se numa granja e agora é morador do Sítio
Lobo, de propriedade do folclorista Elói Teles, no Crato. Nunca estudou em escola. Sabe
apenas assinar o nome, não lê, nem escreve. Toda sua cultura é unicamente oral. Teve 10
filhos.
Começou a brincar Reisado no ano de 1955, com Dedé Luna, no sítio Cobra. Dedé
Luna era o Mestre e Aldenir, o Rei. No ano seguinte, botou Reisado por conta própria no
Baixio Verde. Depois, mudou-se para a Vila Padre Cícero (hoje Bela Vista), onde moram
ainda hoje muitos dos seus familiares e onde seu Reisado está sediado. Há três anos fundou
um Reisado composto de mocinhas (no qual somente os Mateus são meninotes), liderado
por sua neta Luiziana, e conhecido pelo nome de Reisado das Meninas. Foi o principal
informante.
ANTÔNIO FÉLIX DA SILVA
Nasceu em 1914, no Juazeiro do Norte. Depois dos 40 anos, transferiu-se para o Crato.
Com idade de 10 anos já brincava Reisado, “como caboco, nu da cintura pra cima, a cara
melada de tinta, com meu vestuariozinho de pena.” Seu primeiro Mestre foi Olímpio Boneca.
No Crato, brincou com Mestre Aprígio. Diz, com muito orgulho, que “Dedé Luna, que hoje
é o melhor Mestre que tem dentro do Crato, aprendeu com esse aqui (mostra a si mesmo),
brincando, sendo figura mesmo.” Já estando com seu Reisado formado no Crato, Antônio
Félix voltou ao Juazeiro: “Depois eu vim de lá, pra dar em Olimpo, que já tinha sido tenente
meu. Vim de lá pra dar nele, aqui.”
No Reisado, já foi quase tudo: “Já fui Soldado, já fui Mateus, já fui Cangaceiro. Já
fui Deus, já fui o Cão, já fui mulher, tudo isso eu fui.” Mas um dia trocou o Reisado, onde
era Mestre, pelo Maneiro-pau, como simples brincante. E explica a razão: “Depois fui
brincar o Maneiro-pau, por causa de eu ter perdido meu Reisado completo. O meu Reisado
era grande, que eu já fui chamado pra Fortaleza, pra todo canto eu fui chamado. Mas eu fui
abaixo, porque eu comecei a dançar naquelas pontas de rua, quando terminava, saía o Mateus
impariado com uma dona, e o Mestre, que era eu, com outra e aí foi se danando.”
DEDÉ LUNA
José Francisco Luna, natural de Juazeiro do Norte, nasceu em 11 de julho de 1931.
Quando tinha poucos meses de idade, sua família mudou-se para o Crato. Seu pai era
morador do Coronel Filermon Fernandes Teles, para quem trabalhava, sem poder cultivar
roça sua. O menino nunca freqüentou escola. Aos 14 anos, assumiu responsabilidade de
família, indo trabalhar com a enxada. Casou muito cedo “pra ver se diminuía a luta.”
Começou a brincar o Reisado desde criança. Aos oito anos viu a primeira brincadeira
de Reis de Congo. Ficou encantado: “Então aquela mancha pegou na minha alma.” Foi no
sítio Taquari, que fica em Juazeiro do Norte, em direção a Caririaçu: “Eu morando lá, soube
que ia ter uma brincadeira de Reisado e o pessoal adulto me levaram. Ali eu era quem tava
mais ansioso que todo mundo. Custou muito a chegar. Aquela época não tinha eletricidade.
Com especialidade nos sítios era na base da luzinha de candeeiro. Quando eu vi se
aproximando aquele grupo, tudo com aqueles espelhozinhos brilhando, tudo trajando numa
roupa parecido uma com a outra, eu fiquei encantado. Então, durante o tempo da brincadeira,
quase a noite inteira, eu passei observando aquilo ali. E aquilo pregou na minha alma. Por
isso eu levei bonitas pisas do meu pai. Naquele tempo, o de menor tinha punição e ele não
queria que eu fizesse essa brincadeira, porque era um negócio sem futuro. Era pra gente
irresponsável, que chamavam vagabundo. E eu já com aquilo na minha alma, com aquela
mancha, fiquei brincando escondido dele. E toda vida que ele sabia me chamava a atenção.”
Aos 10 anos, começou a brincar o Reisado na casa de um tio seu, de nome Pedro
Luna, no sítio Fernandes, de propriedade do Cel. Filermon Fernandes Teles. Depois, brincou
com o Mestre Moisés Ricardo do sítio Baixio Verde, que fica depois de Bela Vista, no Crato.
Em 1955, já casado, formou seu próprio grupo no Sítio Cobra, município do Crato.
Informa que, desde que se entende por gente, no Cariri, existia o Reis de Congo e o
Quilombo. Depois foi que veio a conhecer o Bumba-meu-boi e o Guerreiro.
Antigamente, sua brincadeira era conhecida como Reisado do Dedé Luna. Só muito
recentemente, deu o nome de Grupo Melindre ao último grupo de reisado que criou. Já
criou uns dez grupos de reisado. “Essa turma aqui do Crato, quase todos eles foram meus
discípulos. Depois, com a continuação, entrosados com o pessoal do Juazeiro, mudaram o
ritmo, as peças. Então eles não gostam mais daquelas peças tradicionais, aquelas sonoras.”
Por último Dedé Luna formou dois grupos de reisado de moças e um de crianças. Eles
acabaram porque, segundo Dedé, as moças começaram a namorar.
MIGUEL FLORENTINO
Miguel Florentino da Silva entrou para a primeira companhia de Reisado aos 22 anos,
com o Mestre Zuza Cordeiro. Depois, passou para o Reisado do Mestre Olímpio Boneca.
Quando este deixou de brincar, Miguel Florentino tomou seu lugar à frente do Reisado, do
qual foi Mestre até a década de oitenta. Modestamente, não se diz Mestre: “Sou o herdeiro, o
representante do Mestre.”
Miguel também faz mágicas e tentou apresentar-se, durante muito tempo, no programa
do Sílvio Santos, sem conseguir. Para isto chegou a fazer 15 viagens de Campinas (onde
morou) para São Paulo.
MIGUEL FRANCISCO DA ROCHA
Nasceu no distrito de Palmeirinha, em Juazeiro, no ano de 1939, filho de pais
pernambucanos. Seu avô, João Francisco Feitosa, era Mestre de uma Banda de Pífano em
Caruaru, Pernambuco. Com ele, tocavam seus filhos Pedro, Santino e Clemente, o pai de
Miguel. Na romaria de 1908, a banda que eles formavam veio pela primeira vez o Juazeiro
do Norte.
“Vieram na festa de setembro, aí meu Padrinho Cícero achou muito bonito o compasso
da música deles, chamou e perguntou se eles não queriam vir morar em Juazeiro. Eles
disseram que não vinham não. Eles não eram acostumados a passar fome e Juazeiro era
muito fomento. Aí, Meu Padrinho Cícero disse a ele que, se ele viesse pra’qui, a Mãe de
Deus ia dar com que eles passar até criar o derradeiro, a quinta geração deles.”
O pai de Miguel, ainda vivo, “mora num sítio, lá no Baixio”. Miguel herdou
sua Banda Cabaçal. No Reisado, começou muito cedo, sempre brincando de Mateus.
Inicialmente, brincou com o Mestre Olímpio Boneca; depois, passou a brincar com “Zé Calô
Filho” (Aldenir); em seguida, com Dedé Luna (durante dois anos e meio); finalmente, com o
Mestre Manuel Cordeiro, do Juazeiro do Norte.
Na época em que Miguel nasceu, sua mãe possuía um pedaço de terra, a três léguas de
Juazeiro, no distrito de Ponta de Serra. Seu avô, entretanto, endividou-se, e sua mãe pagou a
dívida ao Dr. Macário de Brito com a venda do dito terreno. Seu pai morou durante 30 anos
no Baixio Verde, mesmo local da antiga morada do Mestre Aldenir.
Miguel trabalhou na roça até os 19 anos de idade, com o pai. Depois, foi “prá rua,
negociar”. Hoje, ganha a vida na profissão de carroceiro. Na arte, além da Banda Cabaçal,
começou cantando Embolada de Coco, só depois passou para o Reisado.
É casado com uma alagoana, Ana Célia, que conheceu quando esteve em Alagoas,
durante um festival de pífano. Pai de 13 filhos, todos eles participaram ou participam, com
ele, da Banda Cabaçal.
Por último, desistiu de brincar Reisado. Justifica: “Um nego só não serve a dois
senhores. Preferi ficar somente na Cabaçal, porque ela é administração da criação de meu
povo e o Reisado é a criação de outro auditório, sem ser do meu povo.”
ANTÔNIO ROMEIRO
Nasceu em 1922, no Juazeiro do Norte, terra de seu avô e de seu pai, José Rafael,
conhecido como Zé Romeiro, que, como ele, também brincava Reisado na figura de Mateus.
Ainda menino, Antônio entrou para o Reisado do Mestre Zé Alves, a quem deve tudo
o que sabe da brincadeira. Quando foi para Campos Sales, Zé Alves acompanhou-o, para
“ensinar nós aqui”. Depois, Zé Alves “ficou velhinho” e Antônio organizou um reisado
por sua conta. A sede do seu Reisado (onde a maioria dos brincantes mora) é na Lagoa dos
Paulinos, embora Antônio resida na cidade de Campos Sales. Com seu Reisado já saiu para
brincar no município cearense de Araripe e também na Paraíba e em Pernambuco.
Trabalha na agricultura, pagando a renda de cinco sacos de legume por tarefa. Como
ele, todo o pessoal do seu Reisado trabalha na roça, inclusive mulheres e meninos: “Nesse
trabalho da roça, aí quando nós faz a broca, queima, cerca, aí sobra um tempinho, aí nós
brinca.” Só uma de suas filhas é professora. Além do Reis de Congo, que já brincava desde
menino, aprendeu a brincar o Reis de Careta aos 18 anos de idade.
SEBASTIÃO COSMO
Nasceu em Natal, Rio Grande do Norte, em 1940. Chegou a Juazeiro do Norte em
1958, juntamente com a mãe. Foi morar na Rua São Miguel, onde conheceu o Mestre
Manuel Cordeiro, com quem passou a brincar o Reisado. No Rio Grande do Norte, conhecia
o Boi de Reis, no qual as figuras usam calça comprida, com uma lista dos lados. Entretanto,
nunca havia participado.
Com Mestre Manuel Cordeiro brincou mais ou menos seis anos. Depois, o Mestre
adoeceu e Sebastião Cosmo passou para o Reisado do Mestre Miguel Florentino. Em
seguida, foi brincar com o Mestre Damião. Este também deixou de brincar e Sebastião
transferiu-se para o Reisado de Zuza Cordeiro, irmão de Manuel Cordeiro, seu primeiro
Mestre. Passou também pelo Reisado do finado Mestre Pedro. Até que foi morar na Rua
Delmiro Gouveia e resolveu formar um Reisado por sua conta. Ensaiava na casa do
finado Cazuza. Isto no início da década de 80. Seu Reisado tomou o nome de Reisado São
Sebastião.
Estudou numa escola particular, mas só aprendeu a assinar o nome. É vendedor
ambulante, vende espanador, corrente, coleira etc.
TICO
Francisco Felício Mage, Mestre Tico, nasceu no sítio Capim, município do Crato, em
1922. Sempre trabalhou na agricultura. Queixa-se: “Minha profissão é agricultura. Vivo da
agricultura. Eu trabaio arrendado. Aqui, na terra dos home. Um terronizim eu tenho só o
chãozim da casa. Arrendo as terra dos Calô, do Rui Calô, do Seu Orlando Bezerra, trabaio
nesses terreno dele, aqui. A renda é o seguinte: a gente paga cinqüenta conto por tarefa, paga
cum feijão. Uma tarefa, uma cuia de feijão. Uma tarefa de mandioca, meia quarta de farinha.
Eles aqui cobra é por tarefa. Mas ninguém tira nada não, porque num dá nem pra tirar a
renda. Só trabaia mermo porque o jeito é trabaiar.”
No Reisado, começou ainda garoto, com uns dez anos, como figurinha. Mas aos 20
anos, resolveu parar. Explica: “Quando cheguei na base de 20 ano, aí, parei. Deu vontade de
casar... Você sabe: começa a brincar um menino desse assim, vai brincano com o gosto maior
do mundo, quando começa a ser rapaz, dessa bitola, aí, já começa a namorar, aí, num quere
mais. Alguns, que são frios pra namorar, é que fica brincano. Esses que são mei medonhe...
Ah, eu num quero mais não, porque num dá certo.”
Mas depois de algum tempo, já pai de família, resolveu voltar para o Reisado,
brincando com o Mestre Antônio Félix: “Entonce meu Meste num quis mais brincar. Nós
brincava aqui no Crato, brincava em Fortaleza. O chefe era o finado Dr. Zé Figueredo. Ele
morreu. Aí, meu Meste num quis mais brincar. Achou que num dava certo. Também ele
cuidava em muitos negócio, aí ele desestiu. Entonce deixou eu aqui pra ir brincano e eu
fiquei brincano devagarzinho mais os menino. Foi o tempo que ele morreu. Aí fiquemos com
o finado Pedro Teles. Depois seu Pedro Teles morreu e seu Elói tomou conta. Aí nós vem
brincando.”
(Obs.: Tanto Zé Figueredo, como Pedro Teles, eram uma espécie de padrinhos, protetores, do
Reisado. Eles intermediavam convites para espetáculos e cuidavam do interesse do Reisado.
Não eram Mestres. Atualmente, no Crato, o radialista e folclorista Elói Teles desempenha
esse papel.)
Hoje, o Reisado do Mestre Tico está quase desativado. Não é para menos, já há 18
anos, ele mostrava-se cansado: “Enquanto nós tamo aqui, levano... Inté eu já disse a ele (Elói
Teles) que ia deixar a brincadeira que já tô véi, num agüento mais, esse horaro de Reisado
é grande! Eu tenho o jogo de espada, por isso eu vou deixar agora pros pequeno, pros novo
qu’eu já tô véi, cinqüenta e seis ano, nem agüento mais não! Mas ele num quer qu’eu deixe.
Tem minha turma... Mas eu vou entregar a ele, mas eu fico sempre por ali, né? Numa hora
por outra, se precisar, eu tô dano umas pernada.” (Este depoimento foi prestado no ano de
1978.)
ZUZA CORDEIRO
José Gomes da Silva, conhecido pelo apelido de Zuza Cordeiro, nasceu no ano de
1908, em Pernambuco, tendo chegado ao Ceará aos cinco anos de idade: “Cabei de me criar
nos pés do Meu Padrinho Ciço. Estou com setenta e cheguei aqui com cinco. Passei sessenta
e cinco anos aqui, junto com Meu Padrinho. Meu pai vendeu o terreno lá e veio embora pra
aqui, porque tinha gosto e vontade. Queria acabar de criar nós aqui. Peguei amor e simpatia
pelo lugar. Deus me defenda d’eu andar por fora e morrer por fora e me sepultar por fora.
Tenho gosto de me sepultar aqui, porque Meu Padim e minha mãe tão sepultados aqui.”
Trabalhava na agricultura com o pai, que tinha um terreno e plantava mandioca: “de
uns certos anos para cá, vou vivendo assim, de Reisado, de uma coisa, de outra, de um
negócio.”
“Eu tô com 57 anos que brinco, viu? Cinqüenta e sete anos que conheço o Reisado,
ensinado pelo padroeiro Ciço Romão Batista. Foi ele que me ensinou. Pediu que eu num
deixasse de festejar o Menino Jesus todo ano. Os Mestres mais véi que têm dentro de
Juazeiro sou eu e o Olimpo Boneca. Meu grupo era daqui de dentro de Juazeiro. Tá com
cinco anos que eu não brinco porque não posso trajar meu pessoal.”
“O coração tá ruim, mas nessa hora ou ele endireita ou desata duma vez! Se é pra
representar. Sou velho assim, mas quando chega num Reisado que eles me pedem pra tirar
uma pecinha ou duas..” (Trechos de depoimento prestado por Zuza Cordeiro em 1978. Anos
após ele veio a falecer.)
DE RETORNO ÀS FONTES DO TEATRO
(Diário de viagem da equipe do Projeto Mestre Pedro Boca Rica ao Cariri, realizada
em julho de 1995)
Queríamos ser acolhidos como uma espécie de trupe de circo. Algo a um só tempo
estranho e familiar. Não íamos para ensinar, nem mesmo para fazer pesquisa acadêmica.
Éramos artistas e estávamos lá para trocar, intercambiar espetáculos, conhecimentos e
amizade. Além disso, precisávamos registrar tudo em vídeo, fotos e fitas sonoras. Nossa
visita era algo inusitado. Pela primeira vez, um grupo de artistas de Fortaleza apresentavase
no pequeno povoado de Bela Vista, a 20 quilômetros do Crato. Mas era perfeitamente
aceitável, visto que é comum artistas perambularem de povoado em povoado mostrando seus
espetáculos.
O local do estágio fora escolhido a dedo. Bela Vista sedia dois grupos de Reisado
(modalidade Reis de Congo), um de crianças e outro de adultos, além de um Maneiro-pau e
tenta organizar uma Banda Cabaçal. Mestre Aldenir Calou e sua numerosa família formam
o núcleo de brincantes. Já nós éramos 16 ao todo, entre atores (Gonçalves da Silva, Rejane
Reinaldo, Teta Maia, Silvana Garcia, Cláuber Mateus, Socorro Marques, Sâmia Bittencourt,
Karin Virgínia, Marlene Martins e Gláucia Alencar), músicos (Nádia Almeida, Myreika
Falcão, Teddy Aldous e Tereza Tavares) e pesquisadores (Vanúsia e Sandra da Silva), além
de mim, autor do texto e diretor da encenação experimental que a Companhia de Brincantes
Boca Rica estava levando.
Eu conhecia Mestre Aldenir desde quase 20 anos e já estivera em Bela Vista quando
ainda chamava-se Vila Padre Cícero. Entre os atores alguns eram familiarizados com a arte
popular tradicional. Mas um bom número deles iria ter contato com os folguedos populares
pela primeira vez. Íamos em busca do teatro primordial, plenamente integrado com o mundo
anímico e social dos homens e procurávamos elementos que renovassem nossa estética
cênica.
O REISADO DAS MENINAS
Chegamos no dia 27 de julho de manhãzinha. A recepção não poderia ser mais cordial.
Estavam lá Fernando Piancó, presidente da Fundação Cultural J. Figueiredo, o folclorista
Elói Teles e Mestre Aldenir, todos velhos amigos e dispostos a colaborar conosco. Ficamos
no Crato Hotel de onde partíamos cedo da manhã para Bela Vista e só voltávamos tarde da
noite. Na Bela Vista, ficamos na Escola. Havia quatro salas de aula, uma cozinha, banheiros
e um grande pátio de terra batida, onde realizamos alguns espetáculos. Os treinamentos e
ensaios fazíamos numa das salas de aula. Outra funcionava como refeitório e salão de vídeo.
As restantes serviam de camarim durante as apresentações e de local para confecção de
adereços.
No primeiro dia, só as crianças assistiram ao nosso treinamento, timidamente
colocadas nas portas e janelas. À tarde, fizemos uma leitura dramática do texto do nosso
espetáculo, agora presenciada também por alguns adultos. Surgiram os primeiros risos e o
ambiente descontraiu-se. De noite, o Reisado das Meninas fez sua primeira apresentação. A
Mestra tem 12 anos, chama-se Luiziana e é neta de Aldenir. Os brincantes são todos meninas,
menos os dois Mateus. O espetáculo aconteceu no terreiro de uma casa. Mestre Aldenir fez
peças (canções) novas pras meninas cantarem, falando de aventuras e amores juvenis. Elas
brincam cheias de vivacidade, trajes vermelho e branco, com um toque de amarelo. Muito
brilho e graça. O Boi brinca com o público. Eliane conhecida como Ném, outra neta de
Aldenir, faz o papel de Rei. Também aparece como Zabelinha, montando a Burrinha. Seu
porte altivo e sua dança faceira comovem a todos. Nós a elegemos símbolo de nossa viagem.
Na manhã seguinte, as meninas do Reisado participaram de nosso treinamento.
Começamos os exercícios com um aboio do Mateus mirim, seguido de uma gaitada. Depois
alguns brincantes do Reisado adulto achegaram-se, assim como atrizes vindas do Crato.
À tarde, as meninas do Reisado ensaiaram conosco. Engrossaram o coro e o cordão
de dançarinas. Ensinaram-nos passos e, na canção da Zabelinha, Mestra Luiziana tomou
o comando. De noite, fizemos nossa primeira apresentação. Terreiro de terra batida
(aguado) delimitado por carteiras no pátio da Escola. Mais de 200 pessoas em torno, muita
expectativa. Espetáculo animado. Os atores renderam o dobro, cheios de energia. O público
ria e participava. Identificava-se com personagens já conhecidos, como o Mateus, o Boi e a
Catirina. Perdemo-nos um pouco nas entradas de cena, estranhando o espaço. As meninas
dançaram e cantaram conosco, alinhadas em cena. Um senhor ria e comentava as diabruras
do nosso Mateus. Sua mulher explicou que ele brincara como Mateus durante a metade de
sua vida. E uma menina perguntou se, além de de circo, éramos também de teatro.
TROCANDO ESPETÁCULOS
Mais tarde, o Reisado de adultos fez sua primeira apresentação. Tudo muito bonito e
forte. A hierarquia guerreira das duas fileiras de brincantes, o Rei ao centro, o Mestre à frente
e os dois Mateus invertendo a ordem do mundo pelo riso. De entremeios, mostrou apenas o
Boi e o Jaraguá. Aldenir colocou o neto de três anos para brincar. Ele dançou e lutou espada,
depois ficou enjoado e chorou o tempo todo. Mesmo assim, Aldenir fez questão que ele
permanecesse em cena. Deste modo as crianças iniciam-se na arte popular tradicional.
No dia seguinte, mostramos vídeos de folguedos de vários municípios cearenses
para os brincantes da Bela Vista. Aldenir passou a manhã preparando novos personagens
para mostrar à noite. À tarde, esteve conosco e elogiou as peças (canções) dos mestres
Boca Rica e José Maria que introduzimos no nosso espetáculo. As crianças representaram
para nós paródias de cenas da nossa apresentação. Chamavam nossos atores pelo nome
do personagem. Cláuber, que fez o boi, ficou conhecido como “Boião”. Descobrimos,
orgulhosos, que nosso espetáculo, como os folguedos tradicionais, agrada igualmente adultos
e crianças. Tardezinha, apresentou-se novamente o Reisado das Meninas. À noite, Aldenir
acrescentou ao espetáculo dos adultos os entremeios do Italiano com o Urso e o drama da
Alma, do Cão e de São Miguel.
Domingo foi o dia mais movimentado. Vieram vários artistas do Crato, entre eles
Abdoral Jamacaru e Tica Fernandes. Os espetáculos começaram às três da tarde, embaixo
de mangueiras, e terminaram às dez da noite no pátio da Escola. Apresentaram-se os dois
Reisados e nossa Companhia, além de números de humor feitos por Fernando Piancó,
Daniela Inácio e Tranqüilino Repuxado. Para surpresa nossa, apresentou-se também a Banda
Cabaçal dos Irmãos Anicetos. No fim da noitada, dançamos a despedida com o Reisado do
Mestre Aldenir.
A segunda-feira foi de avaliação e despedida. Nádia, da parte dos músicos, disse
que a exemplo do “Mistério das Vozes Búlgaras”, havia o mistério das vozes do Cariri. O
brilho e a expressividade com que os brincantes entoavam suas peças desafiavam tudo o que
ela aprendera. Aldenir e o pessoal da Bela Vista participaram da avaliação. Destacaram a
amizade e o carinho nascidos do encontro. As meninas choraram abraçadas conosco. Tiramos
fotos. A tarde foi de festa e conversa fiada. Aldenir confessou que pra ele só há duas coisas
importantes: Reisado e Banda Cabaçal. Sonha com Reisado. Nós dissemos: passamos cinco
dias levando vida de verdadeiro artista. Voltaremos, no fim do ano, com o que aprendemos
incorporado ao nosso espetáculo.
A COMÉDIA DO BOI
(texto de Oswald Barroso)
PERSONAGENS
1 - Mateus 07 - Mestra Teodora
2 - Catirina 08 - Aeromoça
3 - Carolina 09 - Jaraguá
4 - Sua Alteza 10 - Sapo
5 - Toinho Malvadeza 11 - Urubu
6 - Boi Tungão 12 - Babau
(Peça é encenada com brincantes todos no palco. Os que não estão protagonizando a
cena fazem o coro, que comenta a cena e compõe o ambiente. Para iniciar o espetáculo,
atores/ brincantes entram do fundo da platéia, um por um, apresentando seus personagens
e, no palco, vão compondo o ambiente de uma praça popular. O último a entrar é Mateus,
vendendo suas mercadorias. Encontra Sua Alteza, fazendo acrobacias. Ela procura
chamar a atenção do Mateus.)
MATEUS: Borracha pra panela de pressão. Consolo de viúva pra criança enfezada.
Ventilador de calcinha pra vitalina aperreada. (Para Sua Alteza) Olha aí a pivete, parece que
é do circo!
SUA ALTEZA: Pivete não, respeita as caras, viu!?
MATEUS: Pois não, Sua Alteza. (À parte) A menina é braba!(Para Sua Alteza) Posso
lhe chamar de Sua Alteza?
SUA ALTEZA : Deixa de conversa, cara. Vai vender as suas coisas.
MATEUS: Desentupidor de tripa pra cólica intestinal.
SUA ALTEZA : E aí, Mateus, vendeu muita coisa hoje?
MATEUS: Você sabe meu nome?
SUA ALTEZA : Você é manjado aqui cara, tá é por fora.
MATEUS: E é?... Prótese de porcelana pra homem sem serventia.
SUA ALTEZA : Ah, mas o cara num sabe vender não!
MATEUS: Quem é que num sabe vender, menina? Vai campear macaco.
SUA ALTEZA : O que é isso, cara?
MATEUS: Camisinha de alumínio pra beneficiar donzela.
SUA ALTEZA : (Puxando conversa) E aí, cara, você é casado?
MATEUS: Não... Pomada japonesa pra levantar quem está deitado.
SUA ALTEZA : Mora só?
MATEUS: Moro. Por que? Qual é o problema?
SUA ALTEZA: Num quer me adotar não?
MATEUS: Adotar o que, menina? Você tá doida?
SUA ALTEZA: Cara, eu posso ajudar.
MATEUS: Você lá sabe fazer nada.
SUA ALTEZA: Você tá é por fora. Eu moro aqui mesmo na rua. Ando por aqui tudo,
conheço tudo. Tem um fiscal que vive por aqui tomando mercadoria de tudo quanto é
camelô. Tem cuidado ó. O nome dele é Toinho Malvadeza.
MATEUS: Eu lá tenho medo de nada.
SUA ALTEZA : Ele é fogo, toma mesmo. E ele vem aí.
(Mateus tenta disfarçar, mas o fiscal já está em cima.)
TOINHO MALVADEZA : Que movimento é esse aí?
MATEUS: Desculpe, Seu Toinho, tô aconselhando Sua Alteza aqui a ir pra casa.
TOINHO MALVADEZA : Que história de Sua Alteza é essa, sujeito? Você tá é fazendo
comércio ilícito.
MATEUS: Sexo explícito? Não sou nem tarado pra fazer sexo com menor. Estou aqui é
trabalhando.
TOINHO MALVADEZA: Tá querendo me enrolar, sujeito? Você tá é com marretagem.
Querendo enganar o povo!
MATEUS: Enganar o que? O sujeito acredita em mim se quiser. Não obrigo nada a
ninguém.
TOINHO MALVADEZA : Mas aqui é proibido. Você tá fazendo concorrência desleal ao
comércio. Tem que pagar uma multa.
SUA ALTEZA: (Se metendo) O que é isso, Seu Toinho? O homem chegou agora.
TOINHO MALVADEZA: Vai pra lá, menina. Lhe prendo já por vadiagem. E você também,
Seu... Como é mesmo o seu nome?
MATEUS: Mateus Cravo Branco Flor do Dia da Silva, às suas ordens.
TOINHO MALVADEZA: Pois é, lhe prendo por desacato à autoridade.
MATEUS: (Implorando) Num faça isso comigo não.
TOINHO MALVADEZA: Num prendo agora. Mas vai ganhar uma multa pra saber que com
um fiscal da Prefeitura não se brinca.
MATEUS: (Implorando) Num me dê essa multa não.
TOINHO: Dou. Você tá infringindo a lei. Cem reais de multa.
(Enquanto Toinho Malvadeza anota a multa, Sua Alteza sorrateiramente aproxima-se,
arranca da mão dele o talão de multas e sai correndo. Toinho Malvadeza persegue-a.
Sua Alteza engana-o com um drible de corpo e Toinho Malvadeza cai. Espalha-se no
chão um monte de papel com propaganda política de sua candidatura a vereador.
Mateus, que se preparava para fugir, tem sua atenção chamada por aqueles papéis
voando e pega um deles.)
MATEUS: (Para a platéia) Olha aí, o homem é candidato a vereador! Vou ajudar ele a se
levantar.
SUA ALTEZA: O rapa caiu. Se há de escorregar é mió caí, num é seu rapa?
MATEUS: O que é isso, menina? Respeite a autoridade. (Baixinho para Sua Alteza) O
homem é candidato a vereador. (Para Toinho Malvadeza) Ah, Seu Toinho, o senhor é
candidato a vereador, devia ter me dito. Desculpe a falta de educação desta menina.
TOINHO MALVADEZA: Seu Mateus, me ajude aqui, parece que eu desloquei as cadeiras.
(Mateus ajuda Toinho Malvadeza a levantar-se.)
MATEUS: Ih, Seu Toinho, você tá andando assim meio de banda. (Para Sua Alteza) Sua
Alteza, junte aí a papéis de Seu Toinho. A gente precisa ajudar na candidatura dele.
TOINHO MALVADEZA : Pois é, Seu Mateus, tou pleiteando minha candidatura. (Estende
a mão para Mateus, num gesto típico de vereador.)
MATEUS: Homem, não se acanhe, diga logo. Você quer o meu voto, num é?
TOINHO MALVADEZA : Bom... preciso mesmo do seu voto. Vou defender o direito dos
vendedores ambulantes, do comércio informal, como dizem.
SUA ALTEZA: (Mastigando um dos papéis de propaganda de Toinho) Mas Seu Toinho
Malvadeza, sua propaganda tem um gosto ruim, parece carniça.
TOINHO MALVADEZA: O que, sua moleca?
MATEUS: Nada não, Seu Toinho. Tou dizendo, que vai votar no senhor, eu e todo mundo lá
de casa, mulher, filhos, pai, mãe, sogra.
SUA ALTEZA : É mentira dele, Seu Toinho. Ele mora só, num tem mulher, nem filho.
TOINHO MALVADEZA: Ah, sujeito, você tá querendo me enrolar. Vou já é apreender sua
mercadoria.
(Toinho Malvadeza pega a mala de mercadorias de Mateus, por um lado, para apreender.
Mateus segura a mala pelo outro. Mateus está perdendo na disputa. Sua Alteza, que está
ao lado, tem então uma súbita crise aguda de dor de barriga. Caí no chão gritando, com
as mãos na barriga, e contorcendo-se.)
SUA ALTEZA: Ai, ai, ai, ai, me acuda Seu Toinho! Ai, ai, ai, ai.
TOINHO MALVADEZA: (Largando a mala de Mateus) O que foi isso, menina?
SUA ALTEZA: Foi sua propaganda que me lascou. Ai, ai, ai, ai.
(Mateus aproveita a confusão e sai correndo com a mala na mão.)
TOINHO MALVADEZA : (Percebe a fuga de Mateus) Ai, que sujeito safado!
(Toinho Malvadeza sai correndo atrás de Mateus. Sua Alteza pára o fingimento, levantase
e dá um vaia saudando a esculhambação.)
SUA ALTEZA: Iiiiiiiiiííí...queima!
(Mestra apita terminando a cena. Brincantes dançam e cantam a chamada de
Catirina, que se apresenta dançando na frente.)
BRINCANTES: (Cantando) Catirina, mucama,
mandei te chamar
lá no bananeiro
lá no bananá.
Catirina, minha nega,
teu senhor quer te vender
lá pro Rio de Janeiro
para nunca mais te ver. (1)
(Mestra apita, dando início à cena seguinte. Num salão de manicure próximo, Catirina e
Carolina conversam, enquanto esperam freguês. Elas são irmãs e Carolina, a mais velha,
é a dona do salão).
CATIRINA: Vida chata, esta de manicure, a gente vive só de esperar freguês.
CAROLINA: Se não fosse a pensão que meu marido me deixou, a gente já teria morrido.
(Beija o retrato do marido que traz nas mãos.) Ah, eu adoro este finado. É até hoje quem me
dá sustento.
CATIRINA: E meu artista? Eu vivo esperando um artista, de cinema, de televisão, de show.
Tenho fé que um dia ainda há de entrar por aquela porta, alguém que...
(Entra Mateus esbaforido, como que perseguido, olhando para trás, para ver se o
rapa ainda vem.)
CAROLINA: (Apavorada) Chega meu Padrinho Ciço, um ladrão!
MATEUS: (Compondo-se) Não sou ladrão não, minha senhora. (Coloca a mala no chão.)
Sou um cantor, muito famoso, Mathius.
CATIRINA: (Serelepe) Um cantor!
CAROLINA: E essa mala aí, o senhor está de viagem?
MATEUS: Não, aí é meu órgão.
CAROLINA: (Excitada) E seu órgão é assim tão grande, pra você carregar numa mala?
MATEUS: (Modesto) Não, até que é pequeno.
CAROLINA: (Recompondo-se) Bem, não interessa. Mas o que foi mesmo, que o senhor veio
fazer aqui?
MATEUS: Onde é que eu estou?
CATIRINA: Numa manicure. Num salão de manicure, Seu Mathius.
MATEUS: Ah, lógico. Vim fazer as unhas.
CATIRINA: (Derretida) Pois venha fazer as unhas comigo. (Mateus senta-se na cadeira
da manicure e Catirina toma sua mão para fazer as unhas.)
MATEUS: Olhe, pode me chamar de Mateus. Mathius é meu nome artístico.
Você sabe, esta vida de shows, de estúdios é tão cansativa. Gosto que os amigos me chamem
de Mateus, meu nome verdadeiro. E as amigas. Seu nome, como é?
CATIRINA: Catirina. Sabe, eu nunca peguei assim na mão de um artista. Suas unhas são tão
bonitas!
MATEUS: Suas mãos são tão leves, Catirina, parecem algodão!
(Carolina, que estava na porta, vê que alguém que elas esperam vem chegando e faz
sinais insistentes para Catirina.)
CATIRINA: Já sei, Carolina. Ele que espere.
MATEUS: Quem é?
CATIRINA: É um sujeito chato, vem aqui pra fazer as unhas e pegar na minha mão. Minha
irmã quer que eu namore com ele. Mas eu não gosto quando ele pega na minha mão. Com
você é diferente. Eu não deixo qualquer um pegar na minha mão. Você foi o primeiro. Não
pense que eu...
(Nisto chega Toinho Malvadeza, muito cortês. Carolina recebe-o.)
CAROLINA: Bom dia, senhor vereador.
TOINHO MALVADEZA: Candidato, Carolina, candidato.
CAROLINA: Catirina, chegou o Toinho. Dê um bom dia ao rapaz.
CATIRINA: (De má vontade) Bom dia.
TOINHO MALVADEZA : Bom dia, querida.
CAROLINA: Toinho, você é a cara do finado. Olhe. (Mostra o retrato do finado para
Toinho Malvadeza.)
MATEUS: (Depois de reconhecer Toinho Malvadeza) Minha princesa, vou ter que sair.
CATIRINA: Num vá não, agora foi que eu fiz uma mão.
MATEUS: É que eu me lembrei agora de um compromisso urgente. Tenho que ir.
CATIRINA: Fico esperando.
(Mateus tenta sair de costas para que Toinho não lhe veja. Vai até a saída, mas esquece a
mala.)
CAROLINA: Ei, rapaz, vai esquecendo o seu órgão!
(Mateus volta-se de costas, pega a mala e já vai saindo, mas não resiste, olha para
Toinho Malvadeza, dá uma risada e sai correndo. Toinho faz menção de perseguí-lo, mas
desiste.) TOINHO MALVADEZA: Ah, cabrinha safado. Eu ainda pego esse elemento. Parto
a cara dele.
CATIRINA: Não faça isso que ele é artista.
TOINHO MALVADEZA: Que artista que nada! Aquilo é um camelô muito do semvergonha.
CAROLINA: Pois ele jurou que era um artista.
TOINHO MALVADEZA: Aquilo é um marreteiro.
CATIRINA: Eu não achei nada de marreteiro.
TOINHO MALVADEZA : Mas esqueça aquele elemento. Vim aqui foi fazer as unhas.
CAROLINA: Vai fazer as unhas, mulher, do Seu Toinho. Atende o freguês.
(Emburrada, Catirina vai atender Toinho Malvadeza. Escondido, Mateus assiste a toda
a cena.)
MATEUS: (Para a platéia) Eu num agüento. Um xuxuzinho daquele fazendo as unhas de
um marmanjão grosseiro como esse tal de Malvadeza. Vou já acabar com a alegria daquele
rapa. (Mateus sai.)
TOINHO MALVADEZA : (Para Catirina) Cuidado, mais devagar!
CATIRINA: Eu só sei cortar assim.
SUA ALTEZA : (Lá da porta, fazendo mugango.) Ei, Seu Toinho Malvadeza, baitola!
TOINHO MALVADEZA : (Levantando-se enfurecido) Êita, moleca safada!
(Toinho Malvadeza sai correndo atrás de Sua Alteza. Ficam Catirina e Cartolina.)
CATIRINA: Ainda bem que aquele antipático foi embora.
CAROLINA: E você ficou no prejuízo.
CATIRINA: Mas sei que Mateus vai voltar.
CAROLINA: Volta nada!
MATEUS: Voltei, belezas!
CAROLINA: Ah, voltou o artista de araque.
MATEUS: Artista sim. Já cantei até no Carneiro Portela. Fique sabendo.
CAROLINA: É camelô. Seu Toinho disse.
MATEUS: Sou camelô também. Por enquanto. Por que? Num pode.
CATIRINA: (Empurrando Carolina) Carolina, vai ver se eu estou na cozinha.
CAROLINA: O que?
CATIRINA: Vai saindo discretamente, mulher. O Mateus veio completar as unhas.
CAROLINA: (Saindo) Tomara que ele pague.
CATIRINA: Claro que vai pagar. Desculpe, Mateus, aquela minha irmã, sabe... Sente aí,
Mateus. (Começa a fazer as unhas de Mateus.) Sabe, tive medo que você não voltasse.
MATEUS: Era impossível. Depois que senti o macio da sua mão... (Mudando subitamente
de tom) Já tou com ciúmes. Fiquei mordido quando vi você pegando na mão do Malvadeza.
Aquele sujeito me persegue. Quer acabar meu negócio.
CATIRINA: Peguei na mão mas foi como se não pegasse. Tudo profissional.
MATEUS: Tá bem, mas você sabe, esse negócio de pegar na mão pra fazer as unhas, num dá
certo.
CATIRINA: Mas este é meu ganha pão. Toda mulher tem que ter uma profissão, um dinheiro
seu.
MATEUS: Se você casasse comigo, eu num ia querer que você continuasse trabalhando de
manicure.
CATIRINA: Casar, Mateus? Você pensou em casar comigo, assim tão depressa?
MATEUS: E se eu pensasse mesmo, você faria isso por mim? Deixaria de ser manicure?
CATIRINA: Bem, isso eu não sei. Ia pensar. Mas lhe prometo que não faço mais as unhas do
Toinho Malvadeza.
MATEUS: Olhe, Catirina, domingo agora vou cantar num show de forró lá no
Pirambu. Você num quer ir?
CATIRINA: Se quero! Sou doida por um forró. E com você cantando, então? (Cantam: “Oh,
meu vaqueiro, meu peão...”)
(Mestra apita encerrando cena. Dias após, no mesmo salão de manicure. Carolina
e Catirina conversam.)
CAROLINA: E como foi lá seu tal de forró? Não sei como você troca o Toinho, homem
bem posto na vida, fiscal da Prefeitura e candidato a vereador, por um pé rapado daqueles,
cantorzinho de subúrbio e camelô.
CATIRINA: Pois foi ótimo. Nós passamos a noite toda se esfregando assim. (Imita o gesto)
E você aí, de água na boca, agarrada com o retrato do finado.
CAROLINA: (Magoada) O que é isso, Catirina? Sou sua irmã.
CATIRINA: Desculpe. Disse isso, porque você falou tão assim... contra o Mateus.
Sabe, Carolina, ele é bem bonzinho! Me pediu em casamento. Pela segunda vez. Assim,
indiretamente, mas pediu.
CAROLINA: (Interessando-se) Em casamento? Conta.
CATIRINA: Prometeu que casaria se eu deixasse a profissão de manicure.
CAROLINA: Eu também acho. Mulher casada não pode ser manicure. Já estou até gostando
daquele Mateus!
CATIRINA: Mas Carolina, hoje em dia, em toda casa, trabalha homem e mulher.
CAROLINA: Olha, está chegando aí o Toinho, pra fazer as unhas.
CATIRINA: Mas eu não vou fazer, Carolina. Prometi ao Mateus.
CAROLINA: Deixe comigo.
TOINHO MALVADEZA : Bom dia! Como é, Catirina, vamos completar as unhas?
CAROLINA: Desculpe, Catirina está meio indisposta. Deixe que eu mesma completo.
(Carolina leva Toinho Malvadeza para a mesinha de manicure. Os dois sentam-se.) Ah, mas
você tem as unhas parecidas com as do finado!
(Nisto, entra Mateus e faz sinal para Catirina, pelas costas de Malvadeza. Catirina vai até
ele. Os dois falam baixo para Malvadeza não ouvir.)
MATEUS: Como é, Catirina, decidiu-se?
CATIRINA: Decidi-me. Mas quero primeiro que você me jure uma coisa.
MATEUS: Tá certo. O que é?
CATIRINA: Jura que me ama, que faria qualquer coisa por mim? Até abandonar sua
profissão de cantor?
MATEUS: Mas por que isso agora, Catirina?
CATIRINA: (Insistindo) Jure, Mateus. Eu preciso que você jure.
MATEUS: Tá certo, Catirina. Juro que te amo e que faria qualquer coisa por ti.
CATIRINA: Pois tá certo, Mateus. Deixarei minha profissão de manicure, pra casar contigo.
Mas continuarei trabalhando.
MATEUS: Eu lhe ajudo a conseguir um emprego de balconista. Tenho uma amiga...
(Mestra apita encerrando cena. Alguns dias após, no salão de manicure. Catirina
e Carolina conversam.)
CATIRINA: Tô tão feliz, Carolina. Mateus é um homem bom. Arranjou um emprego pra
mim e vamos nos casar.
(Sua Alteza põe a cabeça na porta e chama.)
SUA ALTEZA: Catirina! (Esconde-se.)
CAROLINA: Que marmota é essa? Estão lhe chamando, Catirina.
CATIRINA: (Procurando) Quem é? (Olha pela porta e vê Sua Alteza.) É Sua Alteza, aquela
menina amiga do Mateus.
CAROLINA: Ih, essa pestinha. Agora vive rondando por aqui. (À parte) Essa Catirina me
arranja cada uma!
CATIRINA: Venha cá, Sua Alteza. Chegue aqui.
CAROLINA: Vai embora, menina. O que é que você tá querendo?
CATIRINA: Deixa a menina. Venha, Sua Alteza. Vou lhe fazer as unhas.
CAROLINA: Ih, o esmalte está caro!
CATIRINA: Venha.
SUA ALTEZA: Vou não, que essa mulher quer me bater.
CATIRINA: Olhe aí, Carolina. A menina tá com medo de você.
CAROLINA: Pode vir, menina. Deixe de fingimento.
CATIRINA: Me mostre suas mãos. (Sua Alteza mostra os pés imundos.) Virgem, precisa
primeiro limpar.
(Catirina cuida das unhas de Sua Alteza, enquanto conversa com a irmã.)
CAROLINA: Mas me conte, Catirina, o que vocês combinaram.
CATIRINA: No começo vou morar na casa do Mateus. É uma casa pequena e um pouco
estragada, mas com amor a gente ajeita.
CAROLINA: Bote amor nisso, porque aquela casa mais parece lata de sardinha.
CATIRINA: É só por enquanto, Carolina. E é melhor porque a gente fica bem juntinho.
SUA ALTEZA: E eu, Catirina? Num tem um cantinho pra mim?
CATIRINA: Você!?
CAROLINA: Mas olha, essa pivete tá querendo uma mãe!
CATIRINA: Deixa, Carolina, a pobrezinha.
CAROLINA: Menina, a Catirina vai morar com o marido dela. Num vai querer uma pivete
no meio, atrapalhando.
SUA ALTEZA: Eu num atrapalho não.
CATIRINA: Se ao menos a casa fosse maior...Você é que podia ficar aqui com ela, Carolina.
CAROLINA: Eu? Tou é viva, minha irmã. Se ela ficasse comigo, o Toinho não metia mais os
pés aqui. Do jeito que ele tem raiva de pivete infratora!
(Sua Alteza se zanga, puxa as mãos e pula fora da cadeira de manicure.)
SUA ALTEZA: Eu é que não gosto daquele Malvadeza ladrão. (Depois fica emburrada
num canto.)
CATIRINA: Ei, menina, venha terminar as unhas.
CAROLINA: Deixa ela pra lá, Catirina. Me conte sobre o casamento.
SUA ALTEZA: É com o Mateus, não é?
CAROLINA: Olha a menina se metendo!
CATIRINA: Você gosta do Mateus, não é, Sua Alteza?
SUA ALTEZA: Gosto.
CATIRINA: Pois eu também.
SUA ALTEZA: Eu gosto mais.
CAROLINA: Mas veja o tamanho disso! Vai te criar, menina.
CATIRINA: Que implicância, Carolina. Presta atenção, mulher. Como eu ia dizendo, nós
estamos fazendo economia. Ruim é que, na praça, Seu Toinho continua pegando no pé do
Mateus. Atrapalhando os negócios.
(Sua Alteza começa a fazer acrobacias, tentando chamar a atenção para si.
Mexe com Carolina, pisa no seu pé, implicando com ela, enquanto Carolina fala.)
CAROLINA: Deixe o Toinho comigo, que ele acaba se ajeitando. Já está até gostando de
fazer as unhas com a mamãe aqui. Logo ele lhe esquece e deixa o Mateus de mão.
(Falando para Sua Alteza.) Ei, menina, não atrapalha a conversa com esses pulos. Vai-te
embora,
vai. (Avança em direção à Sua Alteza, ameaçadora. Sua Alteza recua e vai saindo. Antes
de correr, grita.)
SUA ALTEZA: Aquele Toinho Malvadeza é baitola.
CAROLINA: Ah, bichinha atrevida!
CATIRINA: Deixa, Carolina, ela é artista, não viu as acrobacias. Olhe, o que ela me ensinou.
(Catirina faz uma acrobacia.)
CAROLINA: (Rindo) Ah, minha irmã, só você com essa mania de artista! Vou ter saudades.
(Pára de rir.) Azar o meu que vou ficar morando aqui sozinha.
CATIRINA: Por pouco tempo. Tenho palpite que você também se ajeita, logo logo.
(Mestra apita encerrando cena. Casa de Mateus. Certo dia, ele está deitado e ouve
o mugido de um boi à sua porta.)
BOI: Mooon...
(Mateus levanta-se e dá de cara com o focinho do boi enfiado porta a dentro.)
MATEUS: Oxente, vai pra lá, bicho feio!
(Junto com o boi, vem Teodora, a Mestra, uma jovem conhecida de Mateus, do tempo
de criança, no interior.)
TEODORA: Deixa o bicho, Mateu. Que o boi é teu.
(Mateus sai do meio e o boi entra casa adentro. Muge e toma conta do espaço.)
BOI: Mooon.
MATEUS: (Acalmando o boi) Ô meu mansinho!
TEODORA: Vejo que você ainda não perdeu o jeito de vaqueiro!
MATEUS: Quem é você, moça?
TEODORA: Sou Teodora, filha do Mestre Zuza Cordeiro. Você num se lembra?
MATEUS: Você, aquela cabritinha, deste tamanho, que chorava pra brincar no Reisado?
TEODORA: Pois é, e vim trazer este boi pra você.
MATEUS: Pra mim!
TEODORA: Seu pai mandou.
MATEUS: Meu pai! Aquele vaqueiro rabugento tará ficando doido?
TEODORA: Ele morreu.
MATEUS: Meu pai?
TEODORA: Seu pai tá morto, Mateus.
(Mateus baixa a cabeça cheio de tristeza.)
TEODORA: Ele morreu tardezinha, aboiando, sentado no alpendre, vendo o gado passar.
Antes, pediu que eu lhe trouxesse este boi. Era o único que ele tinha. Sua herança.
MATEUS: (Levantando a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas) Ah, meu pai! Eu nunca
devia ter vindo, abandonado ele. Antes tivesse abraçado a profissão de vaqueiro, como ele
queria.
TEODORA: Seu pai gostava muito de você. Dizia que você tinha cabeça.
MATEUS: Eu também gostava dele. Nunca disse. Mas gostava. Admirava sua coragem.
Achava bonito ele metido no gibão, em cima do cavalo. Aquela armadura de couro. Parecia
um guerreiro. Um artista.
TEODORA: Meu pai também morreu.
MATEUS: O Zuza Cordeiro?
TEODORA: Deixou o Reisado, pra eu levar pra frente. Vim aqui pra Capital, porque as
coisas no sertão estão muito difíceis. Mas pretendo ainda reorganizar meu Reisado.
MATEUS: Sabe, eu achava tão bonito o Reisado! Trouxe comigo a espada de guerreiro, do
tempo em que eu brincava. (Puxa um saco de baixo da cama e retira a espada.)
TEODORA: Deixa eu ver a espada.
(Teodora pega a espada e experimenta lentamente alguns gestos/passos. Som de
instrumental de Reisado ao fundo. Teodora canta o solo do Jaraguá. Mateus põe-se em
cena como o Jaraguá. Depois dança.)
TEODORA: (Cantando, acompanhada de coro de brincantes.)
Estava debaixo de um arvoredo
ao meio-dia estava descansando
ouvi um canto tão saudoso
só me parece um passarim cantando.
Oh, que bicho feio, Virgem Mãe de Deus!
É o Jaraguá, ó maninha, vem pegar Mateus.
Vem com a boca aberta, ó maninha,
pra pegar Mateus.
Chegou, chegou, já chegou meu Jaraguá.
O bichinho é bonitinho, ele sabe vadiar.
Faz meia lua Jaraguá, faz lua cheia Jaraguá.
O bichinho é bonitinho, ele sabe vadiar.
Entra na roda, Jaraguá, entra na roda, Jaraguá
o bichinho é bonitinho ele sabe vadiar .
Tu danças bem, meu Jaraguá, tu danças bem, meu Jaraguá.
O bichinho é bonitinho... (2)
(Mateus, que estava embaixo do Jaraguá, cansa e pára de dançar.)
TEODORA: Já cansou, Mateus?
MATEUS: Esse negócio de Reisado, na cidade não dá certo. Tem a televisão, os discos, os
shows. A mídia, compreende? Estou começando uma carreira de cantor, cantor de forró. Um
negócio mais moderno.
TEODORA: É Mateus, mas o Reisado a gente não esquece.
MATEUS: Pode ser.
TEODORA: Ainda vou lhe ver brincando no meu Reisado.
MATEUS: Tou achando difícil. Mas quem sabe?!
TEODORA: Bom, vou andando. Já lhe trouxe o boi, fiz minha obrigação.
MATEUS: Obrigado, Mestra. (Teodora vai saindo.) Como é mesmo o nome do boi?
TEODORA: Tungão, Mateus. Boi Tungão.
(Sozinho, Mateus brinca com o boi. Aboia.)
MATEUS: Ê, boi, ôôôô, Boi Tungão, aí aí...
BOI: Mooon!
(Mateus, enquanto fala, observa as patas, o pelo e os dentes do boi.)
MATEUS: Que diabo eu faço com você, meu boinho? (Boi fica em silêncio.)
Você come muito? Está com sede, não está? Se ao menos fosse uma vaca pra dar leite!
CATIRINA: (Da entrada) O que é isso, Mateus? Falando só?
MATEUS: Olhe aqui, Catirina, o que eu ganhei?
CATIRINA: Que diabo esse bicho faz aqui, Mateus?
MATEUS: Foi meu pai que me mandou.
CATIRINA: Seu pai está doido?
MATEUS: Ele morreu, Catirina.
CATIRINA: Oh, Mateus! Você deve estar muito triste.
MATEUS: Pai é pai, Catirina. A gente sempre fica triste. Ainda mais o meu... Nem pude me
despedir... Mas olhe, que boi formoso. Herança de meu pai.
CATIRINA: Seu pai pensou em nós, Mateus. É o presente de casamento.
MATEUS: Mas meu pai nem sabia!
CATIRINA: Ele adivinhou. Pai é assim, adivinha. Já dá pra comprar a cama e a televisão.
MATEUS: Como?
CATIRINA: Ora, Mateus, com a venda do boi.
MATEUS: O nome dele é Boi Tungão, Catirina. Meu pai me pediu pra tomar conta.
CATIRINA: Ora, Mateus, pra que é que serve um boi na cidade, se não pra ir pro açougue?
MATEUS: O boi está com fome, Catirina. Precisa de ração.
CATIRINA: Você tem que arranjar um lugar pra botar esse boi, enquanto não vende. Aqui
ele não pode ficar.
MATEUS: É só por enquanto, Catirina. Vou arrumar um cantinho pra ele.
CATIRINA: Aqui mal cabe você, Mateus. Depois imundiça nossa casa.
MATEUS: Vou ter que sair, Catirina. Pra arranjar o de comer do bicho.
CATIRINA: Ah, Mateus, pensei que a gente ia namorar.
MATEUS: O bicho está com sede, Catirina. Vam’bora.
CATIRINA: Espera aí, homem. Vou também.
(Mestra apita terminando a cena. Mais tarde, Mateus, sozinho em casa, dá de comer
ao Boi.)
MATEUS: Êh, meu mansinho! Tá precisando de sal pra ficar com o pelo mais lustroso. Hoje
só tem isto, meu boinho. Fique comendo aí, que eu vou dormir.
(Boi fica comendo. Mateus deita-se. Coro de brincantes entoa cantigas de boi.)
BRINCANTES: (Cantando) Anda pra frente, boi véi
chega ao pé do mourão
sou vaqueiro e tenho fama, boi véi
para pegar barbatão.
Anda pra frente, boi véi
dá um berro e cheira o chão
pois está relampeando, boi véi
está chovendo no sertão.
O meu garrote nasceu
nasceu no jardim da flora
tem um olho que espia, patrão
o outro diz que namora.
Quem não viu meu boi dançar, ô patrão
pois tudo começa agora, eh eh eh. (3)
(Mateus tem um pesadelo. Entra Toinho Malvadeza com dois rapas seus auxiliares.
Vêm vestidos de guerreiros de Reisados, mas em vez dos trajes coloridos, vestem preto.)
TOINHO MALVADEZA : Vim levar o Boi, Mateus. Você não tem licença pra vender o
animal.
MATEUS: (Puxando da espada) Meu Boi daqui vocês não levam.
(Rapas atacam, espada em punho. Mateus defende-se. Trava-se feroz batalha.
Mateus perde terreno até ser desarmado e jogado ao chão. Apito da Mestra ou corte de
luz. Desaparecem Toinho Malvadeza e os rapas. Mestra apita ou luz acende. Mateus está
no chão dormindo. Acorda estremunhado. Ouve lamento.)
BOI TUNGÃO: Aqui me sinto tão sozinho! (Mateus, espantado, não sabe de onde vem a
voz.) Longe do pasto, do sertão. Você podia comprar um cavalo e uma burrinha pra me fazer
companhia, Mateus. (Intrigado, Mateus percebe que a voz vem do Boi.)
MATEUS: Oxente, é você? Cala a boca. Quem já se viu boi falar?
BOI TUNGÃO: Mooon.
MATEUS: Melhor assim. Boi só pode mesmo é mugir.
BOI TUNGÃO: Ah, Mateus, sofri tanto quando você deixou o sertão.
MATEUS: (Novamente intrigado) Não é que é você mesmo!
BOI TUNGÃO: Desde você menino, lhe preparei pra ser vaqueiro, que nem eu.
MATEUS: Mas eu queria viajar. Correr mundo. Botar meu cavalo adiante dos bois.
BOI TUNGÃO: Você podia esperar ao menos que eu morresse, Mateus.
MATEUS: Eu nunca esqueci o sertão, meu pai. Queria ir lá, pra lhe rever. Mas o senhor
morreu tão ligeiro, nem deu tempo.
BOI TUNGÃO: Agora quero ficar com você aqui.
MATEUS: (Aboia de mansinho, enquanto passa a mão na cabeça do boi.) Ô, meu boi. Ôôô,
meu Boi Tungão.
CATIRINA: (Entrando, depois de observar a cena. Meio furiosa.) Ah, Mateus, continua
caducando com esse boi? Pensei que já tivesse vendido.
MATEUS: Entre, minha princesa, veja como ele é mansinho.
CATIRINA: (Choramingando) Não vejo, Mateus. Você prometeu vender o boi e agora só
vive comprando ração importada pra esse bicho feio.
MATEUS: Catirina, não chore, deixe de besteira.
CATIRINA: (Enfurecida. Soltando-se de Mateus.) Deixo não, você gasta o dinheiro da gente
todo com esse boi. E eu perdendo as noites, preparando enxoval. Fazendo hora extra. Se ao
menos desse pra gente ganhar dinheiro com ele!
MATEUS: Ganhar dinheiro, como?
CATIRINA: Ora... sei lá.
MATEUS: É mesmo. Eu podia amestrar o bicho e me apresentar com ele no circo!
CATIRINA: Com esse boi!? Isso lá sabe fazer nada.
MATEUS: Mas eu ensino.
CATIRINA: Quero é ver!
MATEUS: (Para Catirina) Me dê essa cadeira aí.
(Catirina dá a cadeira ao Mateus, que com a ajuda dela tenta amestrar o boi.)
MATEUS: (Doce) Vamos, meu boinho, bote a pata aqui. Ô boi, se anime, meu boinho!
BOI: Moon. (O boi muge mas não obedece.)
MATEUS: (Zangado) Êia! Bote as patas aqui, Boi Tungão.
CATIRINA: (Dá uma risada.) Isso é um bicho bruto do mato. Lá sabe fazer nada.
BOI: (Triste e lamentoso.) Moon....
MATEUS: (Desistindo) Você tem razão, Catirina. Esse boi num dá pra circo mesmo não.
CATIRINA: Só sabe é mugir assim, olhando pra longe... (imitando o boi) moon.
MATEUS: É se lembrando do sertão, Catirina. Eu sei como é isso. Às vezes, eu fico como
ele, parado na beira da estrada, olhando a sombra das serras lá longe. Dá vontade de mugir,
de saudade.
CATIRINA: Eu noto mesmo você assim, com a boca aberta, meio abestado. Como é que
quer ser cantor desse jeito?
MATEUS: Isso é coisa de matuto, Catirina.
CATIRINA: Tou vendo que a companhia desse boi tá lhe fazendo mal.
MATEUS: Tenha paciência comigo, minha princesa.
CATIRINA: (Choramingando de novo) Você agora só quer saber desse boi, Mateus.
MATEUS: (Consolando Catirina.) Espere, que tudo se resolve.
CATIRINA: (Novamente com raiva, soltando-se de Mateus.) Espero não, Mateus, vou-me
embora. Só volto aqui, quando esse bicho tiver saído.
MATEUS: Não exagere, Catirina. Só tou cuidando do boi, como meu pai pediu.
CATIRINA: Pois fique cuidando do boi e do seu pai. Thau. (Pega suas coisas e sai
furiosa.)
MATEUS: (Voltando-se para o boi.) Viu o que você fez? Agora Catirina não quer mais saber
de mim. E tem razão. Como é que ela vai morar numa casa que mais parece uma estribaria?
BOI TUNGÃO: Antes fosse uma estrebaria, Mateus. Antes eu tivesse uma burrinha e um
cavalo aqui comigo.
MATEUS: (Como sua mãe) Você sempre querendo trazer esses seus amigos pra cá. Desse
jeito eu é que acabo saindo de casa.
BOI TUNGÃO: Tá falando igual à sua mãe, Mateus. Ela não gostava dos meus amigos. Você
era muito pequeno, num se lembra.
MATEUS: (Como menino) Bem que me lembro. Do barulho, pai. O senhor chegando
embriagado. Minha mãe chorando. (A mãe de Mateus aparece em sua imaginação
feito Nossa Senhora.) Aquele povo bebia, hein, pai?
BOI TUNGÃO: Sua mãe nunca entendeu. Um vaqueiro é feito um barbatão, não pode viver
preso.
MATEUS: Depois o senhor saiu de casa. Fui criado por minha mãe. Quando ele morreu, vim
pra Capital.
BOI TUNGÃO: Você sempre preferiu sua mãe, desde pequeno. Gostava de olhar pra ela
balançando sua rede, lhe pondo pra dormir. (Na imaginação de Mateus, aparece sua mãe lhe
pondo para dormir.) Você ria e num dormia. Sua mãe não era má, Mateus. Só muito teimosa.
Opiniosa feito essa moça, a Catirina.
MATEUS: Catirina é uma boa moça.
BOI TUNGÃO: Parece que não gosta de mim. Quer me ver fora de sua casa.
MATEUS: Como o senhor disse, é feito minha mãe. Quando decide uma coisa, não volta
atrás. Talvez não haja mais casamento.
BOI TUNGÃO: (Brincando) Ah, então é isso, hein rapaz? O sapo quer se casar!
MATEUS: Mas agora tá faltando a noiva.
BOI TUNGÃO: Então dance, meu sapo. É preciso dançar.
(Mateus vai no saco, pega o disfarce do sapo, fica de cócoras e dança, junto com
Catirina, como um sapo, enquanto os brincantes cantam e dançam.)
BRINCANTES: Meus senhores todos, oxente,
o sapo quer se casar.
Mas tá lhe faltando uma noiva, oxente,
a Catirina é quem vai dar.
Oxente, oxente,
tá bom demais.
Oxente, oxente,
tá bom demais. (4)
BOI TUNGÃO: Pronto, Mateus, você tem meu consentimento pra se casar.
MATEUS: Mas, meu pai, Catirina só volta, quando não houver mais bicho nenhum aqui
dentro de casa.
BOI TUNGÃO: Ah, Mateus, venho morar com você, depois de tanto tempo, e você me põe
pra fora de casa!
MATEUS: Quem sou eu, meu pai.
BOI TUNGÃO: Antigamente, você gostava de me ajudar a selar o cavalo, esperava horas por
isso. Depois, eu saia e você ia comigo, na garupa. Sua mãe ficava de longe. (Na imaginação
de Mateus aparece sua mãe dando adeus) Eu ria por dentro, de orgulho de ser pai.
MATEUS: O senhor nunca me disse isso. E eu precisava tanto. Pensei que meu pai ignorasse
o filho, num reparasse nele. O senhor era tão esquisito.
BOI TUNGÃO: Só por fora, meu filho. Só por fora.
MATEUS: Quando o senhor brigou com milha mãe, achei que tivesse se apartado de mim
também. Pegado antipatia ao filho, como ela dizia.
BOI TUNGÃO: Mesmo de longe, acompanhei seu crescimento. Quando sua mãe morreu,
imaginei que meu filho ficaria comigo. Mas você danou-se no mundo. Num deu notícia.
Agora, quer me ver fora de sua casa.
MATEUS: Não é isso, meu pai. É que preciso de Catirina. Estou na idade de casar. Além
disso, aquela neguinha até que é gostosa!
BOI TUNGÃO: Ah, Mateus, você quer me abandonar de novo?
MATEUS: Não, meu pai, mas preciso de uma casa e de dinheiro pra me casar.
(Mestra apita mudando cena. No salão de manicure, conversam, Carolina e
Toinho Malvadeza.)
CAROLINA: Não fique deprimido, Toinho. Isto pode acontecer a qualquer um.
TOINHO MALVADEZA: Não comigo, Carolina. Eu não estava acostumado a perder. E logo
de tanto!
CAROLINA: Pense positivo, homem. Que perder coisa nenhuma. Um homem forte como
você.
TOINHO MALVADEZA: Mas, Carolina, eu quase não tive voto. E olhe que dispensei muita
multa. Falei fino, Carolina. Tou devendo até as calças.
CAROLINA: Toinho, pelo menos serve de experiência.
TOINHO MALVADEZA: Mas, Carolina, foi voto muito pouco.
CAROLINA: Então, Toinho, deve ter havido fraude. Vai ver que roubaram seus votos.
Corrupção, homem. Em política é só o que dá. Algum figurão com nome parecido, só pode
ser. Porque eu não acredito, Toinho. (Insinuante) Você é um homem querido, muito querido.
E eles têm inveja.
TOINHO MALVADEZA: Que nada, Carolina. Aposto que nem mesmo você votou em mim.
CAROLINA: Ah, Toinho, que ingratidão! Torci tanto por você. Eu lhe defendia, Toinho.
Quando aqueles camelôs falavam mal de você, eu dizia: Toinho é um homem bom, honesto,
trabalhador, simpático. Aquele sim, dá um ótimo marido.
TOINHO MALVADEZA: Mas não votou.
CAROLINA: Não votei porque perdi meu título. Mas ganhei o voto da Catirina.
TOINHO MALVADEZA: Ela também não votou em mim.
CAROLINA: Como é que você sabe, se o voto é secreto? Votou sim.
TOINHO MALVADEZA: Sei porque só tive dois votos.
CAROLINA: Dois votos?
TOINHO MALVADEZA: Sim, e um foi meu.
CAROLINA: O outro foi da Catirina.
TOINHO MALVADEZA: Foi não.
CAROLINA: Por que?
TOINHO MALVADEZA: Foi da minha mãe. Pelo menos ela votou em mim.
CAROLINA: Ah, Toinho, eu mato aquela Catirina.
TOINHO MALVADEZA: Deixa ela pra lá. Catirina nunca gostou mesmo de mim. Eu devo
ser muito ruim, ter muito pecado.
CAROLINA: Não, Toinho. Você só não devia era perseguir tanto os camelôs.
(Catirina vai entrando e ainda escuta.) O Mateus, por exemplo.
CATIRINA: (Se intrometendo) O que é que tem o Mateus?
CAROLINA: Eu dizia que o Toinho devia maneirar com ele.
CATIRINA: Maneirar o que? Eu pouco estou ligando. Seu Toinho Malvadeza tem razão.
Besteira minha foi querer aquele Mateus.
CAROLINA: O que é isso, Catirina?
CATIRINA: É que estou fula com o Mateus. (Mudando o tom) O senhor não gostaria de
passear de mãos dadas comigo, em frente à casa do Mateus?
TOINHO MALVADEZA: (Resoluto) Carolina, me dê licença que eu vou saindo. Outro dia
volto pra continuar a conversa. (Áspero)Boa noite, dona Catirina.
CAROLINA: Boa noite, Toinho. Não demore.
(Toinho Malvadeza sai.)
CATIRINA: Virgem, o que deu naquele homem? Eu estava só queria fazer ciúmes ao
Mateus.
CAROLINA: Ele perdeu as eleições.
CATIRINA: Que novidade! Pensou bem que ia ganhar! Pobre e ainda besta.
CAROLINA: Ah, minha irmã, logo agora que o Toinho está ficando manso...
CATIRINA: Manso com você. Notei que vocês dois, hein? Estão se afinando.
Faço gosto.
CAROLINA: Deixe de brincadeira.
CATIRINA: Desculpe, Carolina. Eu não devia tá nem brincando.
CAROLINA: O que foi que houve?
CATIRINA: Continua, mulher. O Mateus com o diabo daquele boi. Não sei que loucura deu
naquele homem.
CAROLINA: É loucura mesmo, feitiço dos grandes. Vai ver, aquele é um animal
amaldiçoado.
CATIRINA: Com certeza. Ele me olha com uns olhos tão feios!
CAROLINA: Você tem que fazer Mateus desistir daquele boi.
CATIRINA: Pois é, Carolina, deixe comigo. Já sei como conseguir dobrar o Mateus. Tenho
um plano infalível.
(Mestra apita mudando a cena. Catirina vai à casa de Mateus. Lá encontra ainda o
boi, mas por artimanha não se enfurece. Fala manso.)
CATIRINA: Ah, meu amor, tava com tanta saudade. Vim mesmo que você não tenha vendido
o boi.
MATEUS: O boi eu não posso vender Catirina, ele é um bichinho de Deus.
CATIRINA: Mas todo bichinho é de Deus, Mateus.
MATEUS: O boi não é como os outros, Catirina. Ele fala comigo. Nós conversamos muito.
Acho que ele é a alma de meu pai.
CATIRINA: Você está louco, homem. Já se viu boi falar. Ter alma, pior ainda. Você tá é
enfeitiçado por esse bicho. Ele deve ser o demônio. Não vou casar com você com esse bicho
dentro de casa. (Catirina bate o pé no chão.)
MATEUS: (Exaltado) Pois não case comigo, case com o Malvadeza, aquele Ferrabrás. Não é
isso que você quer? Casar com um maricas!
CATIRINA: (Insultando) Maricas é você, Mateus, que troca sua mulher por um boi.
MATEUS: (Teimando) Nem que a vaca tussa, vou vender meu boi.
CATIRINA: Por que não, Mateus? Você tem sua vida. Seu pai está morto. Esse boi ele
mandou mesmo pra você vender.
MATEUS: Foi não, Catirina. Ele pediu que eu criasse.
CATIRINA: Mas na cidade você não pode.
MATEUS: Meu pai morreu de desgosto.
CATIRINA: De desgosto, você quer me matar agora, Mateus. (Catirina chora.) MATEUS:
(Enternecido) Calma, meu amor. Tudo se resolve.
CATIRINA: Ai, Mateus, tou sentindo um negócio esquisito!
MATEUS: Vou buscar um copo d’água.
CATIRINA: Ai, Mateus, vou vomitar. (Catirina vomita, bota os bofes pra fora.)
MATEUS: Eco! Você deve ter comido alguma porcaria.
CATIRINA: Comi não, Mateus. Isto é tontura de mulher grávida!
MATEUS: Como é que você sabe?
CATIRINA: Sei porque minha irmã disse.
MATEUS: E ela já teve filho?
CATIRINA: Teve não, mas teve uma vizinha que teve.
MATEUS: Tem certeza, Catirina, nós vamos ter um filho?
CATIRINA: Tenho Mateus, mulher conhece essas coisas. Já estou até tendo um desejo.
MATEUS: Então, Catirina, é verdade mesmo. Quando mulher tem desejo é porque está
grávida. Pode pedir, minha neguinha. O que é que você deseja?
CATIRINA: Pois é, Mateus, e você sabe que, se o desejo não for satisfeito, o filho nasce
morto.
MATEUS: Não tenha medo, neguinha. Qual seu desejo? Chupar limão, chupar tamarina, ou
quer um pedaço da lua? O que você pedir eu trago, que é pro nosso neguinho nascer bem
bonito.
CATIRINA: Eu quero a língua do boi, Mateus.
MATEUS: A língua do boi não, Catirina.
CATIRINA: Ah, Mateus, você se lembra que um dia você disse que faria tudo por mim? Foi
uma prova de amor que você me deu.
MATEUS: Lembro não, Catirina. Lembro não.
CATIRINA: Ah, desalmado, foi no dia que eu deixei minha profissão de manicure para ficar
com você. Você disse que era capaz até de desistir de ser cantor.
MATEUS: Pois é, Catirina, eu disse. Mas matar o boi eu não mato.
CATIRINA: Mentiroso, ingrato. Você me enganou dizendo que me amava. Meu filho vai
morrer por sua causa, seu desgraçado. E eu me mato pra nunca mais lhe ver.
MATEUS: Não é assim, Catirina.
CATIRINA: Você não acredita, mas acredita em boi falando.
MATEUS: Mas eu falei mesmo com ele.
CATIRINA: Pois fique aí com seu boi, porque de besta você não me faz.
MATEUS: Num vá embora, Catirina.
CATIRINA: Vou sim, vou procurar o Toinho.
(Catirina sai. Mateus fica só com o boi e maldiz o companheiro.)
MATEUS: Ah, desgraçado, Catirina tem razão. Depois que você apareceu em minha vida,
só tem dado confusão. Já nem cantar, canto mais. Só fico pensando em boi, roça, capoeira,...
(enternecendo-se) vaquejada, banho de rio, (retomando o tom anterior) essas coisas de
matuto. Desse tempo antigo que eu já abandonei. Agora acabo de perder a mulher e também
um filho.
BOI TUNGÃO: Você não vai fazer essa ingratidão com seu pai. Vai, Mateus?
MATEUS: Vou sim. Não vou deixar meu filho morrer por causa de um boi falador como
você.
BOI TUNGÃO: Você vai me matar, Mateus?
MATEUS: Vou sim, seu Boi Tungão de uma figa, pra arrancar essa sua língua.
BOI TUNGÃO: (Ri.) Rá, rá, rá, rá. É mais fácil você morrer.
(Mateus tira a espada do saco, atrai o boi com um manto vermelho e os dois entram
numa disputa de morte. Depois de algumas escaramuças, Mateus consegue enfiar a espada
no lombo do boi, que cai por terra agonizante.)
MATEUS: (Pesaroso.) Não chore, meu boinho. Vou chamar um médico pra lhe curar.
BOI TUNGÃO: Ah, Mateus, você me matou pela segunda vez.
MATEUS: Vou chamar um padre pra lhe dar a extrema unção, meu boinho.
BOI TUNGÃO: Não tem jeito, Mateus a morte vai me levar prás profundezas dos infernos.
MATEUS: Não, meu boinho, você vai pastar no céu.
BOI TUNGÃO: Vou não, Mateus. Pra boi não tem céu.
MATEUS: Então enviveça, meu boinho. Vou chamar um feiticeiro, pra lhe fazer ressuscitar.
BOI TUNGÃO: Ah, Mateus, que dor! Adeus, Mateus, eu lhe queria tanto bem.
(Mateus chora o boi quando chega uma aeromoça. Entra suavemente em sua casa.)
AEROMOÇA: Senhor Mateus, vim levar seu boi. O avião decola daqui há dez minutos.
MATEUS: Uma aeromoça!
AEROMOÇA: A viagem será maravilhosa.
MATEUS: Que viagem?
AEROMOÇA: Ele irá num Boing 666.
MATEUS: Não, meu boinho num vai.
AEROMOÇA: Não se preocupe, senhor Mateus. Será um vôo seguro e confortável para os
campos celestes. Ele irá num avião supersônico e eu, pessoalmente, me encarregarei dos
serviços de bordo.
MATEUS: A senhora parece mesmo fina. E como é bonita!
AEROMOÇA: Acompanharei seu boi durante todo o vôo, como um anjo da guarda. Cuidarei
para que nada lhe falte.
MATEUS: Devia ser bom mesmo, meu boinho comendo e bebendo, olhando aquelas revistas
cheias de fotos, vendo filme, ouvindo música com fone no ouvido e uma moça de voz muito
suave perguntando: O senhor deseja mais alguma coisa?
AEROMOÇA: (Como se falasse à bordo do avião.) Senhores passageiros, estamos a oito mil
pés de altura. O tempo está bom. Tenham todos um vôo tranqüilo.
MATEUS: (Como hipnotizado) Então a gente vai flutuando sobre as nuvens, leve como pena
de passarinho, olhando o sol e as estrelas bem de pertinho.
AEROMOÇA: Até que a gente adormece e vira nuvem também.
MATEUS: (Despertando, de repente) Não quero que meu boinho vire nuvem.
AEROMOÇA: Quando a gente morre, Mateus, faz uma viagem sem volta. E seu boi morreu.
MATEUS: Precisei matar meu boinho. Mas eu num queria.
AEROMOÇA: Não se impressione, Mateus. Ele é só um boi, como os outros que todo dia
morrem no matadouro para alimentar os homens. (Rindo) Quando você come um bom bife,
pergunta pela alma do boi? Por quem matou o boi?
MATEUS: Meu boi tem um nome, Dona Aeromoça. Nome de barbatão, bicho livre. Serve
pra me dar coragem.
AEROMOÇA: Pois, então, Mateus, se não quer que eu leve o boi, vou ter que levar você.
(Aeromoça mostra sua capa preta e seus dentes de vampiro.)
MATEUS: Não, eu não. Estou ficando com medo da Dona Aeromoça.
AEROMOÇA: Sim, afinal você matou seu pai. Sua alma está condenada.
MATEUS: Mas a senhora mesma num disse que o boi é só um animal?!
AEROMOÇA: Já está na hora do avião partir. Preciso levar alguma alma.
MATEUS: Se é isso, não tem problema. Conheço uma alma ali, muito simpática. A senhora
vai gostar. Uma alminha bem pequenininha. (Sai)
AEROMOÇA: (Sozinha com o boi) Esse boi não me escapa. (Faz força, mas tem
dificuldade em levar o boi. Até que chega Mateus com Sua Alteza.)
MATEUS: Taí, Sua Alteza, a mulher que quer levar você.
SUA ALTEZA: Ela vai me dar uma casa?
AEROMOÇA: Vou, minha filha, venha comigo.
MATEUS: (Baixo, para Sua Alteza) Ela é do Juizado.
SUA ALTEZA: (Choramingando) Não vou pro Juizado não.
AEROMOÇA: Vamos, minha filha. Vamos passear de avião.
(Sua Alteza recua. Aeromoça mostra capa preta e dentes de vampiro. Tenta pegar
Sua Alteza, ela não deixa.)
AEROMOÇA: Ah, pivete safada!
SUA ALTEZA: (Enfurecida) Pivete não, respeite as caras! (Dribla a Aeromoça, vai por
trás dela e morde-lhe o traseiro.)
AEROMOÇA: Ai, ai, ai...
(Aeromoça corre gritando com Sua Alteza atrás, em sua perseguição.)
MATEUS: (Rindo) Vai-te retro, satanás.
BRINCANTES: (Cantando e dançando em torno do Boi morto.)
O meu boi morreu
a vaca chorou
pobre do bezerro, ô patrão,
nunca mais mamou.
O meu boi morreu
que de mim será
manda buscar outro, ó maninha,
lá no Quixadá.
Levanta meu boi
não queira morrer
que os urubus da serra, ó maninha
querem te comer. (5)
(Mestra apita mudando cena. Sua Alteza chega vexada à casa de Teodora.)
TEODORA: Atrasada de novo, Sua Alteza!
SUA ALTEZA: Desculpe.
TEODORA: Isso é que é gostar de rua! Vamos lá. Vamos à lição de hoje.
(Teodora cantarola e ensina danças rituais e passes mágicos à Sua Alteza. Ela procura
imitar a Mestra, mas, de vez em quando, faz alguma gaiatice. A Mestra repreende-a.)
TEODORA: Não é assim não, menina. Preste atenção. Se você quer trabalhar comigo, tem
que aprender. (Ensina mais alguns passes, até ser interrompida por Sua Alteza.)
SUA ALTEZA: E o que é que eu vou ser, Mamãe?
TEODORA: Mamãe não, Sua Alteza. Mestra, me chame de Mestra. Você vai ser auxiliar de
vidente.
SUA ALTEZA: O que é isso?
TEODORA: Vidente, que vê tudo, que adivinha. Você vai ser assistente de adivinha. Tá
certo?
SUA ALTEZA: Eu nem preciso adivinhar. Porque eu sei de tudo. Por aqui eu sei de tudo o
que se passa.
TEODORA: Deixe de besteira, menina. E trate de aprender, de prestar atenção ao que eu
faço. Você precisa compreender a psicologia das pessoas.
(Catirina e Carolina aproximam-se. Vêm fazer uma consulta à Mestra Teodora.
Catirina chora.)
CATIRINA: Ihiiiiiiiííí!
CAROLINA: Deixa de chorar, mulher! Quem já viu?
(Teodora pressente a aproximação das duas.)
TEODORA: Lá vêm duas clientes. Sente aí, Sua Alteza. Coloque o véu cobrindo o rosto.
Fique na posição de meditação e deixe tudo comigo.
(Sua Alteza obedece. Ao ver Teodora, Catirina lança-se aos seus pés.)
CATIRINA: Ah, me acuda, Mestra Teodora. Minha vida está se esvaindo.
TEODORA: Quem é esta menina tão aflita? O que lhe traz tanta agonia?
CAROLINA: Ela é Catirina, minha irmã. Chora porque ...
SUA ALTEZA; (Interrompendo, fazendo um sinal cabalístico e com a voz modificada.) Já
sei! Chora porque o noivo a trocou por um boi.
CATIRINA: Ah, minha Mestra, sou uma desgraçada.
TEODORA: Desculpe, não leve a sério. Ela é minha assistente. Ainda está aprendendo.
CAROLINA: Mas ela adivinhou, Mestra.
TEODORA: (Para Sua Alteza.) Volte à sua meditação, Zabelinha.
CAROLINA: Zabelinha?
TEODORA: Sim, Zabelinha. Esta menina é descendente de uma princesa egípcia. Está aqui
comigo, desenvolvendo seus dons de vidência.
CAROLINA: Mas a senhora não é de Juazeiro? Viemos aqui porque soubemos, que havia
uma donzela muito formosa e sábia chegada de Juazeiro. Que tudo sabia e a tudo respondia.
TEODORA: Sou de Juazeiro, mas a bisavó de Zabelinha era do Egito. (Mudando o tom da
conversa.) O que foi mesmo que aconteceu com sua irmã?
CATIRINA: É verdade, minha Mestra. Ele me trocou por um boi.
TEODORA: E quem é esse homem tão desalmado, que preferiu um boi a essa menina tão
bonita?
SUA ALTEZA: (Repetindo o gesto mágico.) Já sei... O nome dele é Mateus.
Mateus Cravo Branco Flor do Dia da Silva.
CATIRINA: (Ainda choramingando.) É, minha mestra, foi o Mateus, aquele ingrato.
TEODORA: O Mateus! Agora compreendo.
CAROLINA: (Muito admirada.) A menina adivinha mesmo! Está lhe passando pra trás,
Mestra.
TEODORA: Deve ter lido meu pensamento. Conheço muito bem o Mateus.
CAROLINA: Pois esse homem estava de casamento marcado com minha irmã...
SUA ALTEZA: Já sei... Mas agora deu para criar um boi dentro de casa.
CAROLINA: Ah, menina danada! (Observando Sua Alteza.) Onde foi que a senhora arranjou
essa pivete?
SUA ALTEZA: (Perdendo a compostura) Pivete não, respeite as caras, viu?!
CAROLINA: Ei, a menina é zangada! Parece uma que eu conheço.
TEODORA: O que é isso, Zabelinha? Respeite a cliente.
SUA ALTEZA: Essa mulher implica comigo.
CAROLINA: (Para Teodora) Ela deve estar doida. Eu nem conheço a menina, como é que
eu posso implicar. É parecida com uma que eu conheço. (Pensando consigo mesma.) Só se
for... (Intrigada, fica observando Sua Alteza.)
TEODORA: Zabelinha, volte para sua meditação. (Baixo, só para Sua Alteza.)
Não se meta mais, que agora eu estou entendendo o caso. (Para Catirina.) Venha cá, minha
filha. (Catirina obedece) Olhe, o Mateus tem razão. Fui eu quem trouxe aquele boi pra ele.
CATIRINA: Ah, minha Mestra, pior foi que eu pedi pro Mateus matar o boi.
TEODORA: E ele matou, Catirina?
CATIRINA: Não sei, minha Mestra. Mas de todo jeito estou perdida. E talvez ele também
esteja.
TEODORA: Explique-se melhor.
CATIRINA: É que eu estou grávida.
CAROLINA: Você está grávida, minha irmã? Pensei que tudo fosse um ardil pra convencer
Mateus a desfazer-se do boi.
CATIRINA: E era, Carolina. Mas na casa dele, eu fiquei tonta e vomitei mesmo de verdade.
Então, talvez por castigo, tive aquele desejo, com toda sinceridade.
TEODORA: Desejo de comer a língua do boi, não foi Catirina?
CATIRINA: Foi sim, minha donzela. Mas como a Mestra sabe?
TEODORA: Conheço bem essa estória, Catirina.
CATIRINA: Ah, minha Mestra, sou mesmo uma desgraçada. Queria saber logo a verdade.
Mateus matou o boi ou não matou?
TEODORA: Por mais que eu me concentre, não consigo uma resposta.
CAROLINA: Pergunte à menina, Mestra Teodora. Ela não adivinhou tudo!
TEODORA: Vamos, Zabelinha. Ajude a tirar Catirina dessa aflição. Concentre-se.
(Sua Alteza faz o gesto de quem está se concentrando, mas finalmente faz sinal
de desânimo com a cabeça.)
CAROLINA: Mestra, faça uma ligação da cabeça da menina com a da Catirina.
CATIRINA: Não, com a minha cabeça mesmo não.
TEODORA: Boa idéia, Carolina. Calma, Catirina. (Com a ponta dos dedos, liga a cabeça
de Sua Alteza à de Catirina. Faz o barulho da passagem de energia, mas em vão.)
TEODORA: Parece que aquela zanga que ela teve da senhora, prejudicou a concentração de
Zabelinha.
CAROLINA: Sem razão, eu não fiz nada com a menina. Ela é zangada mesmo.
SUA ALTEZA: Você é um espírito mau.
CAROLINA: Espírito mau, eu!? Deixe eu ver a cara dessa menina.
(Avança para arrancar o véu do rosto de Sua Alteza.)
CAROLINA: Deixa eu te ver, pivete.
SUA ALTEZA: Não, não.
CATIRINA: O que é isso, Carolina? Ficou doida?
TEODORA: Calma, calma, que eu tiro. (Tira o véu do rosto de Sua Alteza.)
CAROLINA: Eu sabia. Êita, bichinha danada!
CATIRINA: Sua Alteza!
(Sua Alteza corre para Catirina, que lhe abraça.)
TEODORA: (Acalmando Carolina.) Eu explico tudo. Encontrei essa menina na rua, tive
pena e resolvi criar. É muito simples como vêem.
CAROLINA: E precisava ensinar a enganar os bestas?
TEODORA: Ora, isso ela aprendeu na rua. Ela já conhecia vocês e tirou proveito da
situação. Eu mesma fiquei espantada. (Ri) A menina é esperta.
CAROLINA: Essa menina é o cão.
TEODORA: Um cão de inteligente, Carolina. Olhe, a Catirina até esqueceu sua tristeza.
CATIRINA: Nada, Teodora, eu só tou pensando aqui no Mateus.
TEODORA: Pois fique tranqüila, meu bem. Enxugue suas lágrimas. Para isto tenho meu
Reisado. E vê se enche o rosto de alegria. (Teodora puxa o canto e dança acompanhada
pelas demais.)
TEODORA: (Cantando) Cigana morena do Egito
com cheiro de cravo e canela
balança as pulseiras de ouro
e a saia de seda amarela.
BRINCANTES: Ai, ai, ciganinha bela
quem te deu cravo e canela?
TEODORA: Cigana agita o pandeiro
que trouxe na viagem dela
nas linhas da mão ela lê
a sorte que a vida revela.
BRINCANTES: Ai, ai, ciganinha bela
quem te deu cravo e canela? (6)
(Mestra apita mudando a cena. Mateus está em casa, chorando a morte do Boi. Aos
poucos, vão aproximando-se os brincantes do Reisado de Mestra Teodora. Até que se ouve
uma gaitada. É Catirina. Ela entra no raio da cena onde está Mateus.)
CATIRINA: É você que está aí, meu Mateus?
MATEUS: Sou sim. E quem me chama é minha nega Catirina?
CATIRINA: É sim, meu Mateus.
MATEUS: É você mesmo, Catirina? Você voltou?
CATIRINA: Voltei sim, Mateus. E o que é que está havendo aqui, meu Mateus? MATEUS:
Meu boinho morreu, Catirina.
CATIRINA: Pois eu vim comer a língua dele.
MATEUS: Pode comer, Catirina. Meu boinho morreu mesmo.
CATIRINA: Nós vamos é repartir esse boi, pra vender, meu Mateus.
(O Urubu chega, como assombração, querendo bicar o boi morto.)
MATEUS: Pois vamos, Catirina. Porque o Urubu já está ali, querendo bicar meu boinho.
CATIRINA: (Enxotando o urubu.) Vai pra lá marmota do cão!
MATEUS: Olhe, Catirina, agora é o Babau que vem pra levar meu boinho.
CATIRINA: Com ele, a parada é mais difícil, Mateus. Tou com medo. Ai, Mateus, me acuda
homem!
(Mateus vai enfrentar o Babau, mas é encurralado por ele. Neste momento, Mestra
apita, invadindo a cena com seu grupo de brincantes - entre eles Toinho e Carolina - e
afugenta o Babau.)
CATIRINA: É Teodora! (Para Teodora) Pensei que fosse deixar o Véi Babau comer a gente!
MATEUS: Ah, minha Mestra, o que veio fazer aqui? Veio chorar meu boinho, não foi?
TEODORA: Nada, Mateus. Vim foi repartir esse boi e apurar dinheiro para o casamento de
Catirina.
MATEUS: E Catirina vai casar, com quem?
CATIRINA: Com Toinho é que não é, porque ele já está ali amancebado com a Carolina.
MATEUS: E com quem é então, minha nega?
CATIRINA: Não é contigo, homem? Ô homem abestado!
MATEUS: Pois eu quero casar mesmo, com minha nega Catirina. Fiz até um bucho nela!
(Mateus e Catirina abraçam-se às gaitadas. Mestra Teodora puxa um trecho da cantiga
da repartição do boi.)
TEODORA: E do boi a tripa
BRINCANTES: Assim mesmo é
MATEUS: Pro Doutor Futrica
BRINCANTES: Assim mesmo é
TEODORA: E do boi a mão
BRINCANTES: Assim mesmo é
MATEUS: Pro Padre Pidão
BRINCANTES: Assim mesmo é
TEODORA: E a tripa do rim
BRINCANTES: Assim mesmo é
MATEUS: Vai pro Seu Toim
BRINCANTES: Assim mesmo é
TEODORA: E a tripa gaiteira
BRINCANTES: Assim mesmo é
MATEUS: Prás muié solteira
BRINCANTES: Assim mesmo é
TEODORA: A tripa mais fina
BRINCANTES: Assim mesmo é
MATEUS: Vai pra Carolina
BRINCANTES: Assim mesmo é
TEODORA: E do boi a língua
BRINCANTES: Assim mesmo é
MATEUS: Vai pra Catirina
BRINCANTES: Assim mesmo é
TEODORA: E a tripa de fora
BRINCANTES: Assim mesmo é
MATEUS: Vai pra Teodora
Assim mesmo é. (7)
(Teodora e o Reisado estancam o canto.)
MATEUS: Pronto, Teodora. Meu boinho era tão magro, que acabou ligeiro. Agora só tem a
carcaça.
CATIRINA: Boi de pobre é assim mesmo, só tem bofe.
TEODORA: Pois agora você vai ver, Mateus, as artes de uma donzela.
(Teodora abre um lençol na frente do boi. Escondido pelo lençol, coloca-se a carcaça de
um boi de brincadeira sobre o ator que faz o boi. Embaixo da carcaça do boi de
brinquedo, entra também Sua Alteza. Teodora retira o lençol. Aparece para a platéia e
brincantes, um boi de brinquedo, como o do Bumba-meu-boi. Continuando seu ritual de
magia, Teodora enfia a mão dentro do boi e puxa Sua Alteza, que sai correndo e se abraça
com Catirina.) CATIRINA: (Brincando) Olhe, Mateus, é sua filha. Já nasceu correndo. E
foi com medo da sua feiura, meu nego.
MATEUS: Mas repare, Catirina, meu boinho tá se mexendo. Veja, Catirina, meu boinho
ressuscitou!
TEODORA: Esse boi quer é dançar. Dança Boi Tungão!
(Teodora puxa canção do boi. Todos cantam, dançam e brincam. Mateus e Catirina fazem
suas palhaçadas. Atiçam o público. Em seguida, grupo de Reisado canta a despedida e, em
cortejo, sai do palco e atravessa a platéia. Os atores voltam ao palco para agradecer os
aplausos.)
TEODORA E BRINCANTES: (Cantando e dançando)
Boa noite, senhores
Ê, lê, lê bumba
Boa noite, senhoras
Ê, lê, lê bumba
Eu venho de longe
Ê, lê, lê bumba
Cheguei agora
Ê, lê, lê bumba
Boi maravilha
Ê, lê, lê bumba
Faz cortesia
Ê, lê, lê bumba
Faz um peneirado
Ê, lê, lê bumba
Faz um requebrado
Ê, lê, lê bumba
Tiro, liro, liro, liro, liro
liro, liro, lito, liro, Boi Tungão
Boi do maioral
Quando eu chamava
meu mansinho vinha
vou apanhar maçarandinha
meu mansinho num vá
meu Boi Tungão. (8).
(...................................................)
Toca, toca despedida
do meu boi das pontas fina.
Vou embora pra São Paulo
embarco meu boi pra Minas.
Se despede Boi Tungão
é do coração das meninas.
A estrela mais bonita
quando vem rompendo o dia
todos os passarinhos cantam
e as aves sentem alegria.
Se despede Boi Tungão
e dê adeus até um dia.
O Boi Tungão se despede e vai embora.
morena bela, olhe lá não vá chorar.
Eu me despeço é com saudade, moreninha,
Muita pena de não poder te levar.
Adeus, belos senhores.
Adeus, belas senhoras.
Diga adeus, amor, o Boi Tungão já vai embora.
Diga adeus, amor, o Boi Tungão já vai embora. (9)
(1) Catirina, canção folclórica dos Congos de Alagoas e Reisados cearenses.
(2) Jaraguá, canção folclórica dos Reisados do Cariri cearense, coletada no Crato, com
Mestre Aldenir Calou.
(3) Boi Tungão, canção folclórica, dos Reisados cearenses, coletada em Fortaleza, com
Mestre Pedro Boca Rica.
(4) O Sapo, canção dos Reisados do Cariri cearense, coletada no Crato, com o Mestre
Aldenir Calou.
(5) Ciganinha, canção folclórica dos Pastoris, do Cariri cearense.
(6) A Morte do Boi, canção folclórica dos Reisados cearenses, coletada em Guaramiranga,
com o Mestre Vicente Chagas.
(7) Repartição do Boi, canção folclórica dos Reisados cearenses, coletada no Crato, com
Mestre Aldenir Calou.
(8) Boi Tungão, canção folclórica dos Reisados cearense, coletada em Fortaleza, com Mestre
Pedro Boca Rica.
(9) Despedida do Boi, canção folclórica do Bumba-meu-boi cearense, coletada em Fortaleza,
bairro do Pirambu, com Mestre José Maria.
xxx FIM xxx